Maquiagem, salto e mensagem

Lembrando o Dia Internacional Contra a Homofobia, Lesbofobia e Transfobia,
comemorado na próxima terça, mostramos uma nova geração de drags em Caxias




Na tarde cinzenta da última terça, o último álbum da Beyoncé era a trilha sonora que se escutava no sótão da casa noturna caxiense Level. Enquanto a diva cantava sobre empoderamento e autoconhecimento, quatro rapazes passavam cola bastão nas próprias sobrancelhas. É justamente esse o primeiro passo para uma maquiagem de drag queen: uniformizar os pelos acima do olho com várias camadas da substância, para depois escondê-los por completo com base e desenhar a nova sobrancelha mais acima no rosto, dando imponência ao olhar. A cola pode até representar o princípio da transformação, mas os quatro rapazes no recinto haviam iniciado aquela jornada bem antes, curiosos por novas descobertas e amparados num contexto social que permite que isso aconteça cada vez mais cedo.

Se há algumas décadas ser drag era um papel assumido geralmente depois dos 30 ou 40 anos, hoje é fácil encontrar uma geração mais jovem dando continuidade ao caminho trilhado pelas mais antigas. Eles saíram da adolescência há pouco, são homossexuais que recém passaram dos 20 anos, mas já encontraram em si a coragem para brincar com a própria imagem, negando convenções de gênero durante muito tempo impostas sem exceção. Agora, eles levantam a bandeira da diferença com orgulho, mas miram um futuro onde a igualdade possa ser cada vez mais possível.

— A aceitação está maior, hoje é mais fácil de conseguir informação, na internet tem muitos tutoriais de maquiagem, não é preciso esperar que alguém te mostre, seja teu mentor — diz Leonardo Kowaleski, 23 anos, que divide a vida profissional num atelier de costura com a função de hostess da Level, assumindo a persona da drag Veronica Kowaleski.

O ambiente da própria casa noturna onde Leonardo "se encontra com" Veronica todos os fins de semana é um dos palcos que tem permitido o protagonismo da geração mais nova de drags da cidade. Por lá já foram realizadas até oficinas para quem tem interesse em criar uma personagem drag.

— A Level é aberta à diversidade, é a possibilidade de vir numa balada e ser quem você é, sem ter de se preocupar com que máscara terá de vestir hoje — explica Felipe Esteves, um dos produtores da casa.

Foi na Level que Leonardo (Veronica) viu outros amigos descobrindo suas próprias personagens drags. O auxiliar em confecção de roupas Guilherme Vargas, 21, criou Isabella Rockfield; o cabeleireiro e maquiador Renan Luz, 21, criou Queenie Storm, e o DJ Mauricio Lopes, 22, criou Tyra Lopez. Claro que a concepção de cada personagem foi um processo pessoal, a decisão de se tornar uma drag também; mas há muito trabalho coletivo a fortalecer o grupo. Eles já performaram juntos, trocam referências de figurino, de maquiagem, e acima de tudo, estão unidos pela mesma causa.

— Ser drag é como ter um escudo, um personagem que se cria para encarar várias situações. Muitas coisas eu não faria como Guilherme, já como Isabella... (risos) — diz Guilherme.

Original Image Isabella Rockfield
Guilherme Vargas


— Drag é como uma armadura contra o preconceito — sentencia Mauricio (Tyra).



A gente muda por dentro. Uma vez maquiei uma prima minha como drag e ela se sentiu super poderosa
Renan Luz (Queenie Storm)



Espelho, espelho meu



Apesar de todos se sentirem muito diferentes quando "montados", Veronica, Isabella, Tyra e Queenie são parte muito importante de Leonardo, Guilherme, Mauricio e Renan. Tanto que quando estão conversando entre si, eles costumam se chamar pelos nomes de drags, mesmo vestidos de garotos.

— Como Mauricio tenho muitos problemas de autoestima, com a Veronica é bem diferente — compara.

Original Image Veronica Kowaleski
Leonardo Kowaleski

É inegável que uma personalidade acaba influenciando um pouco a outra.
— A cada montaria (o ato de se montar de drag), a gente se descobre um pouco mais — acrescenta Renan.

Original Image Queenie Storm
Renan Luz

O processo todo demora quase três horas e costuma envolver perucas, muita fita crepe para segurar o cabelo original, enchimentos de espuma para moldar o corpo, várias meias-calças colocadas uma em cima da outra, unhas e cílios postiças, saltos altíssimos e maquiagens de todas as cores e tipos possíveis. A frequência em se montar não é igual para os quatro.

Leonardo, por exemplo, encarna Veronica todas as semanas na Level, já Guilherme veste Isabella apenas quando tem algum trabalho marcado, enquanto Mauricio costuma fazer a Tyra em casa mesmo, duas vezes por semana, para tirar fotos e ficar se encarando em frente ao espelho.

— Eu me monto e fico olhando o carão (risos) — diz Mauricio (Tyra).

Original Image Tyra Lopez
Mauricio Lopes

— Cada um no grupo tem uma história sobre como descobriu que queria ser drag, ou sobre como a família e os amigos reagiram. Mas a maior parte dos relatos se parecem e mostram que os desafios enfrentados no meio LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) são coletivos.

Estamos cansados de um LGBT morrer a cada 27 horas, não estamos fazendo drama. Uma drag tem que saber disso, não somos só um look, tem que ter conteúdo, não pode ser vazio. O papel principal é entreter, mas ser drag é um ato político. Estamos quebrando paradigmas, somos homens que se transvestem, sempre tem uma mensagem por trás disso — revela Leonardo, apontando dado divulgado ano passado no Relatório Anual de Assassinatos de Homossexuais no Brasil.

Preconceito e falta de informação são questões ainda muito presentes no ambiente das drags, inclusive dentro do próprio meio LGBT, segundo elas. Em algum momento, todas já tiveram que explicar que não são travestis (saiba mais no quadro ao lado), ou que não estão se transformando em mulher. Cada um faz sua parte para tentar deixar seu recado com relação a isso. Mauricio Lopes, por exemplo, usa a figura de sua drag, Tyra, para subverter qualquer padrão.

— Gosto de brincar com o gênero, não curto ser tão binário. A Tyra é feminina, mas pode ser o que quiser — diz Mauricio, que não costuma colocar sutiã ou enchimento na personagem.

Drag é arte, é expressão — complementa Guilherme, que sonha um dia poder ganhar a vida só com sua personagem Isabella

No início, minha mãe perguntou se eu ia virar mulher. Demorou um tempo para ela começar a entender. Na última festa, ela veio ver minha apresentação. Foi o melhor momento da minha vida
Guilherme Vargas (Isabella Rockfield)

Refletindo o momento




Para entender o movimento crescente de drags cada vez mais jovens, é preciso primeiro entender o que é uma drag. A palavra vem de um termo do teatro shakespeareano — "dress as a girl" — usado para determinar homens que faziam papel de mulheres nos palcos. No meio LGBT, essa figura foi incorporada à alegria e ao bom-humor, mas com um objetivo sempre vigente.

— As drags conseguem se popularizar e trazer essa imagem do feminino empoderado se inserindo na sociedade como artista e, com isso, conseguem chamar a atenção para as discussões de gênero e diversidade (...). A drag é arte, a arte é uma expressão, uma representação do real, uma nova composição. Assim, esse olhar artístico é livre para conter ou exagerar, isso depende da necessidade da discussão a ser levantada e da estética no processo criativo. A drag é como um palhaço, um bufão do século 21, ou seja, ela aparenta alegria e festa, mas no fundo é reflexo da sociedade — explica o cearense Silvero Pereira, 33 anos, diretor do coletivo artístico As Travestidas, e ator do espetáculo BR Trans, em circulação esta semana pelo Estado.



Em oito anos de existência, o coletivo tem criado alternativas artísticas de abordagem a questões de gênero e diversidade, numa preocupação de promover mais conhecimento sobre o assunto. Essas ações, somadas a outras iniciativas construídas em terrenos como a televisão, o cinema, as artes visuais, a dança e o teatro, têm ajudado a preparar um ambiente contemporâneo um pouco menos opressor para os jovens LGBTs.

A arte sempre foi movida pela necessidade de uma sociedade, se ela muda de ética e estética é por conta daquilo que estamos vivendo, nos inquietando. A arte é o lugar de provocar e questionar o social. Logo, se esse movimento vem a tona é por conta do contexto que estamos vivendo. Vimos isso acontecer com a arte de rua, com o movimento negro, religioso, feminista e agora com essa questão de gênero e diversidade. Portanto, é natural, já que esse é um assunto evidente e recorrente — reflete Silvero.

João Carlos Castanha, 55, percebe em Porto Alegre o mesmo movimento de empoderamento de jovens drags que ocorre em Caxias. Há 33 anos trabalhando na profissão, ele vê com bons olhos a chegada dessa geração.



Com o tempo, foi caindo o rótulo de que a gente só fazia show em inferninho, esse tipo de coisa. Essa nova leva de drags ajudou a criar uma coisa mais artística, mais teatral, que vai além do 'se vestir de mulherzinha'. É legal também porque atinge um público diferente, um pessoal moderno, que não frequenta só casas gays — diz o artista, que em 2014 foi tema do premiado documentário Castanha, dirigido por Davi Pretto.

Personalidades icônicas no meio LGBT como Castanha e Silvero Pereira ajudaram a abrir o caminho que segue sendo construído pelas gerações mais novas. Para que a evolução continue ativa, é bom ouvir quem já é veterano na luta.

— Se informar é muito importante, ter assunto. Tu podes contar histórias engraçadas, mas que coloquem ideias na cabeça das pessoas — ensina Castanha.

— Pra mim, travestir-se é um processo artístico que parte de inquietações com o que vejo acontecendo ao meu redor: o Brasil como um país assassino de travestis e transexuais, a educação como um lugar perverso ao diferente, a família como um lugar de negação e os casos de suicídios promovidos por uma intolerância social. Tudo isso me faz intervir e travestir, para, por meio do meu ofício artístico, provocar, questionar e tentar modificar esse quadro — analisa Silvero.

Ser drag é como tirar férias todas as noites
Leonardo Kowaleski (Veronica Kowaleski)

Fenômeno RuPaul




Uma das drags mais famosas do mundo, a norte-americana RuPaul é uma das responsáveis diretas por uma nova popularização do cenário drag. Desde 2009, ela comanda o reality show RuPaul's Drag Race, que escolhe uma drag superstar a cada temporada. Sempre com muito bom-humor, a ideia do programa é mostrar os multi talentos dessas artistas. Há cerca de um ano o programa estourou no Brasil, e está atualmente disponível no Netflix. RuPaul's Drag Race é praticamente uma unanimidade no meio drag e inspirou, inclusive, um projeto que se encontra em avaliação no Financiarte de Caxias.

Os proponentes são os amigos Marina Procházka, 25 anos, e Samuel Pereira, 32, que desenvolveram uma proposta de documentário em formato de batalha entre drags, batizada de Divine (em homenagem à protagonista do filme Pink Flamingos). A produção foca atenções justamente na nova geração de drags da cidade.

— O programa terá provas relacionadas a coisas de Caxias, numa tentativa de envolver mais as drags socialmente — comenta Pereira.

Produtor de festas, Pereira acabou incentivando a movimentação da nova geração de drags por meio da festa My Diva, que organiza em Caxias. Desde 2014, a celebração ganha uma edição especial por ano, homenageando RuPaul e convidando todas as drags para dominar a pista. Impressionado pelo talento das artistas, Pereira pretende inseri-las cada vez mais em ambientes que vão além da vida noturna (daí a ideia do projeto documental).

As drags me ajudaram a ver a arte em sua amplitude, me sinto mais liberto — diz Pereira.
A designer gráfica Marina é parceira de Pereira no projeto Divine, e na paixão pelo mundo drag — tanto que ela já se montou como uma por duas ocasiões.

— É muito louca a sensação, tu faz tudo que tem vergonha de fazer, encarna a diva mesmo. Tudo é possível, tu pode ousar — explica ela.

Junto com Samuel, Marina quer seguir lutando por mais espaço para as drags na cidade em que vive.

— Sou hétero e não conhecia várias questões enfrentadas pelas drags. Nosso projeto quer mostrar o dia a dia delas, como é em casa, como é lidar com as expectativas, com os preconceitos. Nosso objetivo é espalhar a palavra drag e fazer a presença delas mais constante — diz Marina.

Deixei de frequentar Parada Gay, acho que expõe a gente como um produto de entretenimento. É como se lá fosse aceitável ser LGBT, mas fora não é bem assim
Mauricio Lopes (Tyra Lopez)







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Reportagem:

Siliane Vieira

Fotografia:

Diogo Sallaberry

Caíque Cunha, reprodução

Infografia:

Guilherme Ferrari