Tiro acidental matou Ana Clara

Tiro acidental matou Ana Clara

Inquérito apontará que suspeito do crime não tinha intenção de matar a estudante

A investigação de um dos crimes de maior repercussão dos últimos anos em Caxias do Sul será encerrada nos próximos dias com o apontamento de um suspeito. Para a Polícia Civil, a estudante Ana Clara Benin Adami, 11 anos, foi morta durante um assalto frustrado cometido por Gedson Pires Braga, o Cavernoso, 24 anos. A criança morreu com tiro nas costas quando seguia com uma amiga para a catequese no bairro Pio X, no dia 16 de julho do ano passado. Um mês depois, Braga foi executado a tiros no bairro Euzébio Beltrão de Queiróz numa disputa envolvendo grupos de traficantes.

O inquérito da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) deve ser concluído e remetido à Justiça na primeira semana de julho. O relatório não terá indiciamento de Braga porque ele morreu durante a investigação. Nesse caso, o delegado responsável apenas atribuirá a autoria do crime a ele. Caberá ao Ministério Público e à Justiça avaliar se o inquérito será arquivado ou se cabe nova investigação.

Desde o início da investigação, Braga sempre foi apontado como o único suspeito. Uma testemunha confirmou ter visto o jovem circulando pelas ruas do Pio X nos dias anteriores à morte da criança. Naquela época, moradores também afirmaram que dois homens cometiam roubos a pedestre em ruas do bairro. Relatos de conhecidos do suspeito indicaram que um desses assaltantes seria Braga, pois ele estaria cometendo pequenos roubos supostamente para comprar drogas e saldar dívidas com um traficante. Numa das investidas, teria decidido atacar Ana Clara e a amiga, a poucos metros da Igreja Pio X. As duas meninas estavam sozinhas e com celulares à vista, o que chamou a atenção de Braga. Naquele momento, não havia outras pessoas naquela quadra.

Ass garotas estavam de costas e não perceberam a aproximação do jovem. Com base numa perícia e no relato da amiga da estudante, a Delegacia de Proteção a Criança e ao Adolescente (DPCA) concluiu que Braga sacou a arma e disparou acidentalmente antes mesmo de anunciar o roubo. Assustado com o disparo, Braga fugiu correndo sem roubar nada. Ana Clara morreu mais tarde no hospital.

Dias depois, a colega da vítima esteve na delegacia para o reconhecimento de suspeitos por meio de fotos. Ela apontou Braga como o autor do crime, mas não deu 100% de certeza por um motivo: ela viu o atirador apenas de relance. O suspeito foi descrito na época como moreno claro, de cabelo curto e aparentando cerca de 20 anos, características semelhantes a de Braga. O reconhecimento pessoal, que estava nos planos da DPCA, não ocorreu justamente em razão da morte do suspeito.

Depoimentos de outras pessoas também reforçam os indícios contra o jovem. Vizinhos do Euzébio Beltrão de Queiróz, comunidade onde Braga morava, estranharam o comportamento dele. Na mesma tarde em que Ana Clara foi baleada, ele chegou no bairro apavorado e repetia a conhecidos: "fiz merda, fiz merda". Contudo, não revelou o que havia ocorrido.

O delegado responsável pelo caso, Joigler Paduano, preferiu não comentar sobre o inquérito da DPCA.

A arma estaria engatilhada




O principal indício de que Ana Clara foi morta acidentalmente é a trajetória da bala. Segundo a perícia, o disparo atingiu a garota de baixo para cima, entrou pela região lombar, à esquerda, atravessou o corpo da garota e saiu pelo abdômen. O ângulo do ferimento, conforme a perícia, é muito improvável para alguém que está portando uma arma com a intenção de render ou atirar em alguém. Nesse caso, se a intenção é matar, o atirador geralmente mira o peito ou cabeça da vítima. Ou seja, a trajetória da bala deveria mais reta.

Outra hipótese para o disparo acidental é de que Braga tropeçou do meio-fio da calçada quando se aproximou das garotas e arma disparou a arma que já estaria engatilhada. Na investigação da vida de Braga, conhecidos relataram que ele tinha o costume de andar no Euzébio Beltrão de Queiróz com a arma engatilhada e fazendo ameaças.

Por mais de uma vez a investigação reconstituiu a fuga do suspeito, com os possíveis caminhos entre o local do crime e o Euzébio Beltrão de Queiróz. Os agentes não conseguiram localizar nenhuma imagem de câmeras de videomonitoramento ou testemunha.

Hipóteses descartadas:



A partir da morte de Ana Clara, a DPCA recebeu diversas denúncias sobre os possíveis motivos do crime. Com exceção do envolvimento de Gedson Pires Braga, as demais hipóteses abaixo foram descartadas:

- Ameaças: havia informações de que Ana Clara recebia ameaças pela internet, mas análises no perfil da garota não encontraram qualquer indício no celular, notebook e redes sociais da vítima. Nada de anormal foi encontrado. A denúncia surgiu apenas no início da investigação, porém, não passou de boatos.

- Briga: havia informações de que Ana Clara teve desentendimentos com bondes por causa de uma colega de escola. Essa colega, apontada como autora de ameaças, negou qualquer desavença e garantiu que as duas eram amigas.

- Vingança: não se confirmou problemas de relacionamento ou dívidas envolvendo familiares que poderiam ocasionar retaliação contra Ana Clara.

Trâmites




- Um inquérito policial ser remetido sem indiciamento devido ao óbito do principal suspeito não é comum, mas está previsto na legislação, segundo a promotora de Justiça Fernanda Soares Pereira.

- As evidências e o apontamento da autoria são analisadas pelo promotor responsável que pode decidir pela realização de novas diligências. Se concordar com a opinião do delegado, é feito um pedido de extinção da punibilidade devido ao óbito do autor, o que é decidido por um juiz.

- Caso o magistrado não concorde com a solicitação do representante do Ministério Público (MP), o processo pode ser conduzido para o Procurador-geral de Justiça emitir uma segunda opinião.

- Se o procurador também discordar da autoria apontada, o processo é devolvido ao MP e destinado a um novo promotor.

- O processo pode ser reaberto a qualquer momento em caso de novas evidências.

Suspeito se envolveu na criminalidade ainda na adolescência




edson Pires Braga Gedson Pires Braga nasceu em São Luiz Gonzaga e veio para Caxias do Sul em seguida. Em fevereiro de 2006, quando tinha 15 anos, participou de um roubo de veículo, segundo registros na Polícia Civil. Dois dias depois, se envolveu em uma tentativa de homicídio. Por esses delitos, foi internado no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case).

Braga também se envolveu com traficantes e se tornou usuário de drogas. Ele chegou a ser expulso de casa pela mãe quando começou a furtar pertences da família para sustentar o vício, de acordo com a investigação. Ingressou pela primeira no sistema penitenciário em 4 de agosto de 2009. No total, teve cinco passagens diferentes por presídios, o que totalizou 674 dias de prisão.

Durante investigações sobre a guerra pelo controle do tráfico de drogas no Euzébio Beltrão de Queiróz, a Polícia Civil apontou Braga como suspeito de participar do bando chefiado por um casal. Pouco antes da morte de Ana Clara, ele foi absolvido da acusação de uma dupla tentativa de homicídio. O jovem também foi indiciado pelo assassinato de Jacson Daniel de Almeida Rodrigues, 23 anos, em 4 de fevereiro de 2014. A vítima era apenado do regime semiaberto e foi atingida por vários disparos no peito. Testemunhas identificaram Braga como um dos dois suspeitos.

O desespero do crack começou a consumir o rapaz nos meses anteriores ao caso Ana Clara. Além dos confrontos com grupos rivais, Braga estava em débito com os traficantes dos quais era aliado. O rapaz era mal visto porque, principalmente quando estava sob efeito de entorpecentes, não respeitava algumas regras de convivência como, por exemplo, não fazer disparos ou iniciar um confronto próximo a crianças e idosos.

Nos dias seguintes ao crime, quando Braga já era considerado o principal suspeito do assassinato de Ana Clara, a DPCA começou a monitorar os passos do rapaz. Ele tentava se esconder e dormia em um endereço diferente a cada noite. Na mesma época, porém, o rapaz compareceu na Delegacia de Homicídios e Desaparecidos (DHD) e prestou depoimento, como testemunha, sobre o homicídio de um amigo. Extraoficialmente, os agentes da DHD questionaram Cavernoso sobre a morte de Ana Clara. O rapaz negou qualquer envolvimento. Sem um mandado de prisão ou provas, o rapaz foi liberado.

Na sequência, Cavernoso foi vítima de uma tentativa de homicídio e recebeu atendimento em um hospital. Aos poucos, os rumores de que ele era suspeito da morte de Ana Clara cresceram e familiares começaram a lhe negar refúgio. Isto dificultou o monitoramento realizado pela Polícia Civil.

Sem saber o paradeiro do principal suspeito, a DPCA representou pela prisão preventiva de Braga. O pedido foi deferido pelo Poder Judiciário, porém, o ofício do mandado de prisão chegou na delegacia poucos dias após a morte do suspeito.

Braga foi encontrado morto na madrugada de 16 de agosto no Euzébio Beltrão de Queiróz. O inquérito policial sobre a morte dele resultou no indiciamento de Luciano da Silva de Godoi, Fabiano da Silva Godoy e Jonathan Pereira Jesus. O primeiro é procurado da Justiça desde dezembro de 2015. Os outros dois estão recolhidos no sistema penitenciário pela prática de outros homicídios. A investigação embasou a Operação Sepultura, que combateu a disputa pelo tráfico de drogas no Euzébio, que deixou cinco mortos, entre eles, Braga.

"Perdoamos o assassino da nossa filha"




Quase um ano depois da morte da única filha, os pais de Ana Clara não choram mais ao falar sobre o assassinato da menina. Márcia Elisa Benin e Sérgio Olivo Adami estão tristes, sentem saudade, mas afirmam que estão com o coração tranquilo. Desde o ano passado, eles procuram a polícia pelo menos uma vez por mês para saber novidades sobre a investigação. Analisam todas as hipóteses levantadas, mas acreditam, desde o início, em uma delas:

— Não foi vingança, como se dizia no começo. Acreditamos realmente que tenha sido um assalto frustrado. De uma forma muito covarde, claro, já que não era preciso ter assaltado duas crianças com uma arma. O que elas iam fazer contra um adulto? Iriam entregar tudo. Mas nunca saberemos ao certo o que aconteceu exatamente. Lá não tinha câmera, não tem outra testemunha. É difícil dizer com certeza o que aconteceu — emenda a mãe.

Hoje, o casal diz que está mais confortado porque sabe o nome e tem informações detalhadas sobre o principal suspeito da morte de Ana Clara, Gedson Pires Braga, conhecido como Cavernoso. A identidade teria sido revelada ao casal pela polícia, ainda no ano passado. A partir daí, eles procuraram um advogado que buscou detalhes da vida do homem morto em agosto de 2015.

— Logo após o crime, estávamos em estado de choque, sem saber o que estava acontecendo. Quando soubemos que poderia ser ele, fomos atrás de tudo. Queríamos saber onde ele morava, o que fazia. Mas era só para saber mesmo, já que não faríamos nada com aquilo. Queríamos saber quem era aquela pessoa. Era uma forma de conforto — acredita Márcia.

Adami sabe detalhes sobre as condenações criminais de Braga e culpa a Justiça pela morte da filha:

— Ele já tinha cometido outros crimes, então como poderia estar solto? Pela falta de vontade da Justiça, ele pôde fazer o que ele fez com a minha filha. Não queríamos que ele fosse morto, só que pagasse pelo que fez, que fosse julgado. Sabemos que ele foi chamado pela polícia uns dias depois do crime e liberado por falta de provas. Ele poderia ter matado outra pessoa depois disso.

Márcia e Adami participam, a cada 15 dias, de um encontro de pais enlutados. Aprenderam a lidar com a dor e a perdoar o assassino da filha.

— Não consigo sentir revolta. Ela nos dá força para seguir adiante — afirma o pai.

Hipótese da Polícia




Na tarde de 16 de julho, Ana Clara saiu de casa, no bairro Pio X, para participar do último encontro de catequese na paróquia do bairro. Os encontros seriam interrompidos até o mês de agosto. A garota percorreu a Rua José Eberle e parou num salão de beleza na esquina com a Rua Balduíno D'Arrigo, onde a mãe é cliente.

Pela janela, a menina falou com a mãe e se despediu com um beijo. A estudante seguiu a pé pela José Eberle, e três quadras adiante, na esquina com a Rua Tupi, encontrou uma colega de catequese. Em depoimentos, a colega afirmou ter percebido um homem próximo da esquina da Rua José Eberle com a Tupi. Esse homem seria Gedson Pires Braga.

As duas garotas caminharam lado a lado pela calçada da Rua Marcos Moreschi, que é um prolongamento da José Eberle. Ana Clara estava com uma mochila e a amiga carregava uma bolsa no ombro. Ana Clara estava posicionada ao lado da via pública e a amiga ao lado do muro das casas. As duas tinham celulares à vista.


Com um revólver em punho, Braga caminhou pela rua e se aproximou por trás das meninas. Segundo hipótese cogitada pela investigação com base na perícia, ele tropeçou no meio-fio da calçada da Marcos Moreschi e a arma disparou.


A amiga de Ana Clara relatou que Braga ficou assustado e fugiu sem roubar nada. Ele correu em direção à igreja e seguiu pela Rua Campo dos Bugres. Em seguida, teria dobrado na esquina da Rua Luigi Rossetti, nos fundos da igreja, onde não foi mais visto. Dali, teria seguido para o bairro Euzébio Beltrão de Queiróz.

Dias depois, Braga foi chamado para prestar depoimento na polícia referente a um homicídio que ele havia testemunhado. Questionado informalmente sobre a morte de Ana Clara, ele negou qualquer participação.

Morte de Ana Clara afetou a comunidade




Uma comunidade abalada e que ainda procura formas de superar a tragédia. É assim que o Padre Izidoro Bigolin, pároco da Igreja Pio X, define os quase 12 messes da morte de Ana Clara. Para amenizar a sensação de insegurança, desde julho do ano passado, igreja, moradores e comerciantes investiram mais em segurança privada.

— Ouvindo as pessoas do bairro, eu sinto que estão todos apreensivos e diante desta situação, de não termos uma segurança maior, estamos todos preocupados e investindo em grades e câmeras para tentarmos nos proteger. Se investiu mais em segurança privada_conta.

Segundo o padre, depois da morte da criança, a sensação de medo é maior entre quem mora ou trabalha pelo bairro. Há um projeto que pretende cercar toda a igreja e ampliar mais a segurança da redondeza.

— Temos a certeza de que cada um deve zelar por si, pela sua família e pelo seu patrimônio. Nós até entramos em contato com a Secretaria de Segurança para tentarmos algumas câmeras, mas não conseguimos avançar no assunto. O que nós fizemos foi iluminar mais a frente e os fundos da igreja, colocando dois postes grandes, que, de fato, ajudam à noite - afirma.

A igreja também quer criar um movimento permanente, com o apoio de entidades, para encontrar formas de promover a paz e a segurança no Pio X.

— Nunca mais queremos passar por uma situação como a da morte da Ana Clara. De alguma forma, precisamos utilizar essa tragédia para mudarmos os rumos da segurança na nossa cidade. Precisamos falar sobre o assunto, discutir e procurar formas de evitar que outras famílias chorem a perda precoce de seus familiares - desabafa o religioso.

Para marcar um ano da morte de Ana Clara, a comunidade fará uma caminhada no dia 16 de julho, às 16h30min, com saída da Secretaria Municipal de Trânsito, na Rua Moreira César, em direção à Igreja Pio X. Depois, haverá missa.

Reportagem:

Carolina Kloss

Kamila Mendes

Leonardo Lopes

Fotografia:

Roni Rigon

Arte:

Charles Segat

Infografia:

Guilherme Ferrari