Memórias da
Guerra Eles viram a Guerra
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s soldados conheciam o destino: a Guerra. A segunda vez que o mundo se punha à prova em armas. Mas amontoados em navios, poucos sabiam o real endereço do conflito. Quem esperava as Forças Expedicionárias Brasileiras entre setembro de 1944 e maio de 1945 era a Itália.

 

Até 28 de março, os cinco últimos pracinhas moradores de Blumenau e Gaspar mantinham viva a história de quem olhou nos olhos da Guerra e sobreviveu. Na noite anterior, Arnoldo Müller foi dormir e não acordou para ver o fim do confronto completar 70 anos no dia 2 de setembro. Lot Eugênio Coser, Herbert Wehmuth, Adolfo José Klock e Sebastião Ribeiro Duarte são a resistência da região e dividem com Müller as próximas páginas desta homenagem aos nossos combatentes na 2ª Guerra Mundial.

Casas metralhadas, destruídas. Mulheres, crianças, pedindo algo para comer. A gente trouxe alguma coisa e foi lançando. E eles se jogavam em cima que nem galinhas no milho

Arnoldo Müller morreu meses após a entrevista ao Santa, aos 95 anos
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uando Arnoldo Müller chegou à Itália, deparou-se com o caos. Duas semanas antes, havia saído de navio do Rio de Janeiro em meio a outros cinco mil homens, em condições precárias, sem saber muito bem para onde seria levado. A única informação que tinha era de que o destino final estava em algum lugar da Europa. E só.

Era um domingo de fevereiro de 1945 quando a embarcação atracou na cidade italiana de Nápoles assim que começaram a despontar os primeiros raios de sol. Ao subir ao convés, Müller teve a primeira imagem do horror da Guerra.

 

– Casas metralhadas, destruídas. Tantos italianos ali embaixo, mulheres, crianças pedindo algo para comer. A gente trouxe alguma coisa e foi lançando. E eles se jogavam em cima que nem galinhas no milho – relembra.

A viagem por si só serviu de preparação para o que iria encontrar em terras estrangeiras. Os aparelhos de refrigeração não funcionavam, agravando o desconforto. Fazia tanto calor que nos quartos mobiliados com cinco camas dispostas uma sobre a outra, o suor de quem estava no alto escorria sobre o que dormia logo abaixo. Alguns desmoronavam e seguiam viagem aos prantos.

 

O grupo era só uma parte dos 25 mil integrantes da Força Expedicionária Brasileira (FEB), criada em agosto de 1943 para representar o país nas batalhas da 2ª Guerra Mundial ao lado dos Aliados (Estados Unidos, Reino Unido, União Soviética e, a partir daquele ano, Itália).

Após uma semana em Nápoles, Müller e seus companheiros receberam ordens de embarcar novamente. A bordo de um navio italiano, enfrentaram o mar por um dia até outro porto em Stafolli. Duas semanas mais tarde, depois das instruções militares, viu-se obrigado a largar a função de enfermeiro e pegar em armas, a maioria cedida pelo exército americano.

– Aí a gente começou a tremer – confessou.

 

Mas por sorte, a caminho do front, um dos soldados surtou e passou a agredir os companheiros. Após ele ser atestado com meningite, toda a companhia teve de voltar para o acampamento em Stafolli.

– Não cheguei a combater. Dei tiros apenas como instrução. Contra o inimigo, não. Mas estava preparado, porque a qualquer momento podiam estourar bombas – afirmou.

 

Quando uma explosão atingia alguém, era o horror. O corpo se despedaçava e algumas partes acabavam penduradas nos galhos das árvores. Não bastasse o sofrimento da Guerra, Müller, então aos 25 anos, ainda teve de reunir forças para assistir ao funeral de 140 companheiros mortos em batalha. Ao som das cornetas de 21 músicos, os corpos eram sepultados. O conflito só acabou em 2 de setembro de 1945, mas Müller permaneceu na Itália até meados de outubro, auxiliando no cuidado aos doentes. De volta ao país, presidiu a regional em Blumenau da Associação Nacional dos Veteranos da FEB.

 

Passávamos cinco dias entricheirados sem comer, tendo que tirar a neve para não ficarmos soterrados. Teve gente que perdeu pé, mão por causa do congelamento

Sebastião Ribeiro Duarte, 94 anos
Confronto

rmado com uma metralhadora ponto 50, Sebastião Ribeiro Duarte, então soldado raso de 23 anos, chegava a permanecer cinco dias entrincheirado, tomando parte dos combates para deter o avanço das tropas alemãs na Itália. Fazia frio e, além do risco de ser alvejado pelos inimigos, ainda havia a neve. Vez ou outra, os pracinhas viam-se obrigados a retirar o gelo acumulado nas trincheiras. Durante as batalhas, em cada vala ficavam dois soldados escondidos, apenas com a cabeça acima da linha do chão.

 

Os confrontos eram quase sempre à noite. Em uma das ocasiões, Duarte, hoje com 94 anos, teve de sair de combate porque sua mão direita congelara. Foi levado para o hospital na cidade de Pistoia, onde os médicos realizaram os procedimentos necessários para que o sangue voltasse a circular. Ao participar de batalhas como as de Monte Castelo e Montese, quase não tinha tempo para descansar quando estava no front, a não ser nos raros momentos em que ele e os companheiros de guerra conseguiam abrir buracos ao pés das castanheiras e ali se deitavam por um curto período.

 

– A Guerra é a pior coisa que tem no mundo... Ver os colegas mortos, feridos, ficar dias entricheirado sem comida – diz para em seguida virar o rosto e guardar silêncio.

Duarte ficou um ano na Itália. Ele e os companheiros chegaram a Nápoles e, de lá, foram transferidos para o acampamento em Pisa, levados em barcos ocupados por cerca de 200 pessoas cada um.

 

Nas horas vagas, os brasileiros tentavam manter uma relação amigável com os moradores. Juntos, bebiam vinho e comiam castanhas. Às voltas com o conflito, Duarte passou o Natal de 1944 na Itália, longe de casa. Mesmo no front, foi presenteado com doces e chocolates enviados pela família direto de Bom Retiro, na região serrana de Santa Catarina.

 

Por cartas mantinha contato com a namorada, que ficara em Florianópolis, cidade onde o então soldado servia o Exército. No retorno ao Brasil, passou dois anos no Rio, antes de regressar à capital catarinense. Atualmente mora em Blumenau.

 

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O capitão disse: não demora temos serviço. Ouvimos o estrondo. Era nossa vez. O capitão deu ordem de irmos na frente e, chegando lá, estavam todos no campo minado, uns sem perna, outros sem a mão

Adolfo José Klock, 94 anos
Feridos

m uma das batalhas para a conquista do Monte Castelo, em meio às muitas baixas que marcaram a participação brasileira nesse episódio da Segunda Guerra, Adolfo José Klock perdeu também o amigo Mário Nardelli, em dezembro de 1944, vítima dos estilhaços de uma bomba lançada pelas tropas inimigas. No período em que a FEB participou dos combates, entre setembro de 1944 e maio de 1945, morreram cerca de 450 brasileiros. Os corpos ficaram sepultados na cidade italiana de Pistoia até 1960, quando foram exumados e trazidos para o Monumento Nacional aos Mortos da 2ª Guerra Mundial, no Rio.

 

Então auxiliar de cozinha do Exército, houve um momento na guerra em que Klock teve de deixar as panelas e ir para o front. Passou a fazer parte do grupo encarregado da arriscada tarefa de lidar com campos minados: durante o dia, eles saíam com sondas detectando onde estavam as armadilhas e estendiam uma faixa branca de um metro de largura por onde a infantaria poderia cruzar com segurança.

 

– O capitão disse: não demora temos serviço. Não demorou e ouvimos o estrondo, buuuum. Era nossa vez. O capitão deu ordem  de irmos na frente e, chegando lá, estavam todos no campo minado, uns sem perna, outros sem a mão – repete a cena.

 

Para aplacar a saudade, havia as trocas de cartas, mas pouca coisa podia ser escrita por causa dos riscos de espionagem. Aos 94 anos, o ex-combatente preserva ainda hoje um cartão-postal que mandou da cidade de Alexandria para a mulher, Teresa Klock, que ficara no Brasil.

– Maior do que o medo era a saudade de casa. A saudade é muito triste. É horrível a saudade do país – confessa.

 

De volta ao Brasil em setembro de 1945, Klock comprou um sítio em Gaspar e se dedicou à lida na roça. Somente 20 anos depois da Segunda Guerra recebeu indenização por ter combatido no conflito.

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A lembrança mais forte que tenho é do confronto em Monte Castelo, porque lutamos muito tempo lá. São lembranças ruins, vi muitos horrores na Guerra

Herbert Wehmut

e Pisa, ao Norte da Itália, Herbert Wehmuth partiu para a frente de batalha no Monte Castelo, cuja conquista ante o exército alemão, em 21 de fevereiro de 1945, seria considerada a principal façanha da Força Expedicionária Brasileira na 2ª Guerra Mundial.

 

No primeiro confronto com os alemães, os adversários levaram a melhor. Privilegiados por estarem nas áreas mais altas do Monte Castelo, os inimigos dispunham de uma visão panorâmica da região, o que facilitou a defesa.

– A lembrança mais forte que tenho é do confronto em Monte Castelo, porque lutamos muito tempo lá. São lembranças ruins, vi muitos horrores na Guerra.

 

Novas batalhas ocorreram em Montese e em outros pontos mais ao Norte do país. Quando a noite caía, era quase impossível dormir por causa do bombardeio que não dava trégua. Encarregado de cuidar da divisão de morteiros, Wehmuth penava com o frio rigoroso e a neve. Quando podia, escrevia cartas pedindo aos pais no Brasil que mandassem roupas grossas para suportar as baixas temperaturas.

 

Alguns de seus companheiros de guerra ele viu ficarem loucos ou terem as mãos decepadas por não manusearem corretamente o armamento pesado. Com 21 anos na época, Wehmuth sofreu um ferimento na perna direita após ter sido atropelado por um Jipe manobrado por outro soldado brasileiro que não sabia dirigir. Foi um ano convivendo lado a lado com os horrores da Guerra.

 

Na volta, ao chegar ao Rio de Janeiro, logo deu baixa do serviço militar. Não queria mais levar a vida de soldado. Hoje, aos 93 anos, Wehmuth mora no prédio da família em Gaspar. Em homenagem à sua história o edifício chama-se Monte Castelo.

 

O Monte D

Getúlio disse que o que prometeu foi quando era presidente, não podia amparar 25 mil combatentes. Que a gente se unisse e exigisse do Dutra. Vários amigos morreram na miséria

Lot Eugênio Coser Volta ao Brasil
A

caminho do front, na medida em que os ruídos de bombas e tiros ficavam mais intensos, Lot Eugênio Coser se deparava com cadáveres de soldados já em processo de decomposição. Dali a pouco, ele e os demais homens do regimento do qual fazia parte iriam integrar os combates que se davam nos Montes Apeninos, onde os alemães mantinham a chamada linha gótica – a última grande defesa nazista na Europa.

 

Coser, que à época era cabo do Exército, chefiava o setor das metralhadoras ponto 30. Seu regimento participou de pelo menos dois ataques ao Monte Castelo, ambos fracassados por falta de apoio material. Em um deles, a tropa seguia acompanhada por oito tanques, quando o primeiro passou sobre uma mina, estourou a esteira que envolve as rodas e não conseguiu mais sair do lugar. Os outros deram meia-volta e desistiram. Os aviões que também tinham sido prometidos sequer apareceram.

 

Tanto quanto fosse possível, os pracinhas mantinham algum contato amistoso com os italianos. Com os donos da casa na miséria, ficava difícil para um brasileiro negar nem que fosse um cigarro. Mas os que nossos combatentes consumiam eram de péssima qualidade, como Gegê e Yolanda, que exibia o rosto de uma mulher na embalagem.

– A loira é muito bela, mas o cigarro é muito ruim – diziam os italianos enquanto rejeitavam um trago.

 

Na volta para casa, os pracinhas tiveram de se envolver em outras batalhas. Dessa vez para obter o apoio que o governo lhes havia prometido. Coser, aos 91 anos, lembra que eles formaram uma comissão de ex-combatentes para cobrar Getúlio Vargas em Itu (SP):

– Getúlio disse que o que prometeu foi quando era presidente, que era um homem rico, mas não podia amparar 25 mil combatentes. Que a gente se unisse e exigisse do Dutra (Eurico Dutra, sucessor de Getúlio na presidência). Vários amigos morreram na miséria.

Dados da Guerra
Galeria do Museu

Imagens das peças do museu da 2ª Guerra Mundial
do 23º Batalhão de Infantaria de Blumenau

Reportagem: 
Willian Reis
Edição: Eduardo Rocha
Imagens: Gilmar de Souza
Edição de vídeo: 
Rafael Alvarez
Design e desenvolvimento:
Arivaldo Hermes

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