Rede municipal - Alunos da única turma de alfabetização do EJA recortam figuras para associar a palavras
“Como se fosse cega”. “ Não saber contar dinheiro”. “ Depender dos outros para tudo”. “ Um péssimo negócio”. “ Não ter oportunidade”. “ Não ser exemplo”. Frases dos personagens desta reportagem
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a pessoa analfabeta é aquela que não sabe ler e escrever um bilhete simples no idioma que conhece. No Brasil, cerca de 8,3% da população é analfabeta, o que representa aproximadamente 13 milhões de pessoas. Os problemas relacionados ao analfabetismo vão além de não saber ler e escrever. A doutora em Educação e Diretora do Instituto Federal Catarinense em Blumenau, Marilane Paim, afirma que quando a pessoa não é alfabetizada ela se sente inferior por não conseguir compreender a sociedade à sua volta: – Quando a pessoa ouve “você é analfabeto” ela se compreende como menor, isso tem uma carga muito forte. A Blumenau que quer ler

Você entende o que diz a frase abaixo do título? Não? Tudo bem. Isso acontece porque você não teve  oportunidade de estudar o alfabeto cirílico e o idioma russo, as linguagens utilizadas na frase. Mas e se, de repente, você estivesse cercado só por placas e pessoas escrevendo em russo? Pois é assim que se sentem as 4,2 mil pessoas que vivem em Blumenau e são analfabetas. Letreiros, cartazes e qualquer outra forma de comunicação escrita pouco representam para quem teve a educação básica negligenciada e nem ao menos aprendeu o á-bê-cê.

 

A frase que você provavelmente não entendeu diz que “para a concepção crítica, o analfabetismo nem é uma ‘chaga’, nem uma ‘erva daninha’ a ser erradicada (...), mas uma das expressões concretas de uma realidade social injusta”. Foi escrita pelo pedagogo, filósofo e patrono da educação brasileira Paulo Freire e está no livro Ação Cultural para a Liberdade, de 1976. Quando Freire formulou este pensamento o analfabetismo já constituía um problema grave desde o início do século e há 40 anos atingia 33,7% da população. O percentual diminuiu com o passar das décadas, porém, como alertou o educador Anísio Teixeira em 1953 – citado em um estudo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep)  – só a queda da taxa é insuficiente: é preciso que os números absolutos reduzam, movimento que só começou a ocorrer no Brasil a partir de 1990, segundo o IBGE. Mesmo assim, o atual índice de 8,3% de analfabetismo no país representa cerca de 13 milhões de brasileiros.

 

População de analfabetos em Blumenau 
é maior do que cidades do Vale

 

Blumenau segue a tendência do Sul do país de baixos índices de analfabetismo. Cerca de 1,6% da população com mais de 15 anos não consegue escrever ou compreender um bilhete simples – o que serve de parâmetro para determinar se a pessoa é analfabeta –, mas essa taxa significa 4.224 pessoas. Seriam necessários dois prédios e meio da maior escola de Blumenau, a João Widemann, que tem 1,9 mil alunos, para alfabetizar todos de uma vez.  O número de analfabetos na cidade é maior do que a população de municípios do Vale do Itajaí como Atalanta e Braço do Trombudo.

Para piorar o cenário, as turmas de alfabetização nas instituições que oferecem ensino para jovens e adultos são poucas. O programa municipal de Educação de Jovens e Adultos (EJA) tem 23 alunos matriculados na fase de alfabetização. Para a Secretaria de Educação a falta de demanda é o principal problema.

 

O Centro de Educação de Jovens e Adultos (Ceja) não tem turmas de alfabetização desde 2014. Segundo a instituição, a verba federal que paga os alfabetizadores veio pela última vez em 2013. Além dos dois serviços públicos, estabelecimentos privados oferecem alfabetização, caso do Sesi Escola, que tem 28 alunos. Porém, o poder público não possui uma relação de quais são estas instituições e, dessa forma, não sabe quantos analfabetos tentam agora escrever novas páginas para suas biografias.

 

Como histórias de vida ignoram estatísticas, Eva, Pedrina, Luzia, Maicon, Solange e Elizabeth contam seus capítulos pessoais em busca de autonomia e felicidade com a educação que lhes foi sonegada na infância, como forma de recuperar o tempo perdido sem mágoa, apenas com o sentimento de que a vida está começando. Eles representam Josés, Marias, Antônios, Anas e todos que um dia foram impedidos deV aprender por algum motivo.

Os sonhos

As histórias se cruzam no lugar comum dos destinos de quem tem pouca chance e muita necessidade. Descendentes de famílias humildes, numerosas, de interiores distantes e que na maioria dos casos precisaram abrir mão do direito de estudar para abraçar o dever de trabalhar antes de terem idade para decidir o próprio caminho. Este é um dos principais motivos pelos quais as pessoas deixam de estudar, mas também é um dos que as leva de volta – ou pela primeira vez – à escola.

Pedrina - Quer ler e escrever bem, conhecer as letras e cuidar do próprio dinheiro

História parecida com a de Luzia tem a estudante Pedrina Elias, que também trabalha como auxiliar de limpeza. Aos 45 anos, ela decidiu aprender a ler e a escrever para corrigir a injustiça, talvez inconsciente, sofrida na infância. Nascida mulher, foi impedida pela família de estudar pois “não precisava”.

 

– Meus pais diziam que filha mulher não precisava estudar porque ia ser dona de casa e só deram estudo para os meninos. Eu sou analfabeta de criança mesmo – conta, com uma naturalidade que espanta quem não acha normal a anulação dos direitos básicos.

 

Depois de criar os três filhos, ela recebeu o apoio do marido para sentar em um banco escolar pela primeira vez na vida. Ainda nova na turma com seis alunos no Sesi Escola em Blumenau, que se reúne às terças e quintas-feiras à noite, Pedrina recorta e monta palavras com letras grandes e aos poucos vai conhecendo os formatos e sons dos nomes das coisas da vida. Para ela, tudo é difícil no dia a dia de quem não estudou:

 

– Eu não sabia contar dinheiro, não sabia nada, porque a gente não tinha liberdade de pegar um dinheiro para contar, só trabalhava na roça.  Nem  uma receita, que a gente que é dona de casa vai fazer, eu conseguia ler. Tudo é difícil, sem estudo não é fácil.

O desejo de Pedrina é aprender a ler e escrever bem, e fazer contas também, porque ela não quer depender mais dos outros para tocar a vida. As aulas não são fáceis, mas ela gosta dos encontros e se esforça para não faltar. Fora da escola, tem a ajuda do marido e dos colegas de trabalho e aos poucos vai lendo tudo o que aparece pela frente. A estudante  tem outros sonhos ainda, mas o primeiro da lista é se tornar uma cidadã completamente alfabetizada:

– Se a gente não sonhar, que futuro vai ter? Mas meu sonho agora é aprender a ler e escrever, depois vou ver os outros.

 

 

Eva - Ela vê nos estudos a chance de conquistar autonomia

Eva Gonçalves, 49 anos, é colega de classe de Pedrina. Senta mais ao fundo da sala e já lê e escreve um pouco. Essa diferença no grau de alfabetização é comum nas turmas que estão aprendendo leitura e escrita, já que há desde analfabetos até os que se enquadram em estágios iniciais do ensino fundamental. Isso cria um desafio aos professores, que precisam aplicar exercícios diferentes e equilibrar a aprendizagem com o que os alunos já sabem. Eva faz atividades diferentes de Pedrina: em vez de montar palavras com letras recortadas, cria novas com letras indicadas.

 

– Vocês vão usar as letras das palavras “jornal” e “entrevista” para formar ao menos três outras palavras – orienta a professora Telma Regina da Silva.

 

Eva chegou a estudar quando era criança, mas largou a escola após passar por várias instituições, porque a família se mudou repetidas vezes. Depois disso, firmou a base e construiu família em Blumenau – onde vive há 25 anos. Recebia principalmente a ajuda dos filhos quando precisava ler algo simples, como uma receita, mas depois que eles estavam criados voltou à sala de aula.

 

– Eu dependia dos outros para tudo. Um dia eu estava no Ceja e a professora perguntou por que eu não voltava a estudar. Mas a gente, de mais idade, tem vergonha. Ela disse que não tinha problema, que lá tinha gente de todo tipo e decidi voltar – conta, deixando claro que seu maior objetivo, ilustrado pelo desejo de tirar a habilitação, é ter autonomia.

 

A dedicação de Eva não significa que o estudo seja fácil. Ela começou a frequentar o Ceja, mas logo depois a instituição deixou de receber a verba para a alfabetização e as turmas fecharam. Cansada da espera, procurou as aulas do Sesi, que apesar de estarem ajudando, custam cerca de R$ 100 por mês.

 

– Quero voltar para o Ceja. É mais barato e mais perto. Estou estudando aqui e quero fazer a prova de nivelamento. Se eu passar, posso voltar para lá.

 

Luzia - Para ela, não saber ler é como não conseguir enxergar

Muito trabalho desde a infância, nenhum estudo e vontade de mudar fizeram a auxiliar de limpeza Luzia Bezerra de Oliveira procurar a escola. Natural de Alagoas e integrante de uma família com 13 irmãos, logo aprendeu que a vida era mais trabalho e menos brincadeira. A lida na roça começava cedo: acordava às 5h e caminhava de duas a três horas todos os dias para chegar ao campo. Não teve tempo de estudar.

 

– É muito triste a pessoa não saber ler, ver um folder na rua e não conseguir entender. É como se fosse cega – compara.

Muitos anos se passaram, ela percorreu o Brasil de Norte a Sul e, estabelecida em Blumenau, decidiu mudar as escolhas que a vida fez para ela. Aos 38 anos, viu nas aulas de alfabetização para adultos a oportunidade que não havia tido até então, de conhecer o mundo como ele é, entender seus símbolos e significados e decidir, de fato, para onde deseja ir.

 

– Quero aprender porque sou auxiliar de limpeza e quero ter outra profissão no futuro. Trabalhar como manicure, ter o meu negócio, ser dona do meu nariz – revela, deixando escapar que uma das coisas que mais busca é poder ajudar o filho de cinco anos com as lições de casa.

A escola, inclusive, une ainda mais a família de Luzia. Ela frequenta as aulas do programa municipal de Educação de Jovens e Adultos (EJA) na escola Adelaide Starke, mesmo local onde o marido foi aluno e onde os três filhos estudam. As aulas começaram no início do ano e desde então Luzia aproveita os fins de semana para estudar em casa, já na companhia do caçula. Assim, um ajuda o outro.

Luzia tem sonhos mais práticos também e o maior deles é se tornar motorista – desejo de boa parte dos alunos:

– Até já sei andar de moto, mas nunca vou pegar uma e sair sem habilitação, né!

 

Maicon - Trabalho para recuperar o tempo perdido na juventude

Foi só aos 30 anos que o servente de pedreiro Maicon Nunes Rocha se deu conta do equívoco que cometeu ao abandonar os estudos na adolescência. Filho de Irecê, município semiárido da Bahia, conta que por ser do interior a família acabou não dando tanta importância aos estudos e, após algumas tentativas, aos poucos ele foi abandonando as aulas. Saiu da escola com conhecimento básico de leitura e quase nada de escrita. Na busca por uma vida melhor, entendeu o erro:

 

– Quando fui para a cidade percebi que tinha feito um péssimo negócio. Um dos momentos em que senti que a falta de estudo estava me prejudicando foi quando tentei tirar minha carteira (de habilitação): com muito trabalho consegui porque peguei o hábito de ler livros e passei uns anos lendo sozinho.

 

Ao se dar conta de que recuperar o tempo perdido dependia apenas de sua força de vontade, Maicon encontrou o Ceja, Centro de Educação de Jovens e Adultos, e voltou para a escola neste ano.

 

Ele estuda no nivelamento, onde os alunos já têm uma pequena noção de alfabetização e se enquadram em algum ponto dos primeiros anos do ensino fundamental. Eles permanecem no nivelamento até terem conhecimento para seguir aos  anos finais. As avaliações são periódicas. Quem progride, avança. O baiano-blumenauense dedica o máximo de tempo que pode aos estudos e já percebe resultados tanto no conhecimento quanto no temperamento:

 

– É uma diferença enorme: quando vou ler, no modo de pensar, de agir. Tenho mais confiança para conversar, fazer as coisas, até algo novo no trabalho. Essa autoconfiança foi graças ao estudo.

 

Agora que começou, Maicon pretende continuar:

– Quero terminar todo esse processo e, como trabalho na construção civil, vou aprender a profissão de pedreiro e depois estudar Engenharia Civil.

 

As mudanças

Com a retomada dos estudos, Solange e Elizabeth aos poucos têm crescimento pessoal e profissional

Solange - Retomar os estudos a fez encontrar novas oportunidades

A vontade de aprender é insaciável: quanto mais você tem, mais você quer. E quanto maior o conhecimento e a sabedoria que se adquire, mais responsabilidade também se quer para si. É isso o que ocorre com quem passou boa parte da vida aprendendo a se virar com o pouco ou nada que sabia e então descobre as oportunidades que ainda tem pela frente.

 

Foi o que aconteceu com a atendente de padaria Solange Aparecida Patek, 35 anos. Filha de pais analfabetos, ela ficou pouco tempo na escola. Largou os estudos aos 13 anos e saiu de casa aos 15. Natural de Ponta Grossa (PR) e em Blumenau há 12 anos, só em 2010 ela voltou a pisar numa sala de aula na sede do Ceja, onde hoje está terminando o ensino médio:

 

– Senti que era uma oportunidade que eu tinha de terminar (os estudos), uma coisa que eu não consegui lá na juventude. E o meu esposo me incentivou muito, porque ele também terminou o ensino médio aqui.

 

Quando decidiu voltar a estudar, Solange lia e escrevia mal e não estava apta a cursar mais do que a terceira série do ensino fundamental. Mas não se abalou e seguiu em frente, buscando cada etapa a seu tempo. Quase no final do ensino básico, ela faz planos para um curso de confeitaria que vai ajudá-la a crescer no ramo da panificação, área na qual quer se especializar. Muito além das oportunidades de trabalho, voltar a estudar ajudou a resgatar dentro dela a menina Solange há muito deixada no passado, junto com as memórias de um tempo em que ir à escola era sofrimento, enfrentando o bullying e a falta de apoio. Hoje ela é uma nova mulher, e a escola ganhou outro significado.

 

– Muita coisa mudou: a autoestima, a sabedoria, o conhecimento para ajudar a minha filha nos estudos... Eu agradeço por ter encontrado o Ceja – comemora, com o sorriso e a alegria de quem sabe que lutou muito para ser uma vencedora.

 

Elizabeth - Exemplo aos mais jovens, conciliou as aulas do EJA com a faculdade de Gastronomia

Trabalhar sempre foi a sina de Elizabeth Ribeiro da Silva, hoje com 59 anos. Quando criança, não teve outra opção. Até chegou a ir à escola, mas por tão pouco e há tanto tempo que ela nem lembra em que fase parou. E desde então trabalhou, trabalhou e trabalhou. Chegou a se reencontrar com os livros na época do finado Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), mas novamente o trabalho a afastou do conhecimento.

 

E foi trabalhando que Elizabeth encontrou o caminho de volta à escola. Como sempre gostou de cozinhar, acabou se destacando na área e mesmo com pouco estudo fazia cursos que envolvessem a arte das panelas. Um dia, num desses cursos, perguntaram por que ela não estudava Gastronomia.

 

– Não tenho estudo suficiente para isso. Tem que ter o segundo grau, eu só tenho o primeiro. Foi o que respondi – relembra.

A pessoa que a questionou percebeu seu potencial e conseguiu algo surreal: Elizabeth pôde cursar  Gastronomia em paralelo com os estudos de alfabetização e Educação para Jovens e Adultos.

 

– Foi difícil, porque eu estudava no Ceja e fazia faculdade, que terminei antes, e já fiz um curso de alta gastronomia. Como estou concluindo o ensino médio, vou pegar todos os diplomas de uma vez.

A estudante chef não para de fazer planos. Quer cursar  pós-graduação em Gastronomia e fazer um curso de confeitaria fina, para ter mais sossego na vida:

 

– Já estou ficando mais velha e não aguento tanto o pique de evento. Com esses cursos posso trabalhar com doces finos e fazer de casa.

Muito além dos planos, a melhor sensação para Elizabeth é ter se tornado motivo de orgulho aos filhos e exemplo às pessoas mais jovens.

 

– Você pegar um livro, ler uma palavra e saber o que ela significa é muito importante. A gente tem que investir no estudo, não importa a idade.

 

Segundo o dicionário Aurélio, é a ação, processo ou efeito de alfabetizar, mas na prática é muito mais do que isto. A doutora em Educação e diretora do Centro de Ciências da Educação, Artes e Letras da Furb, Rita Buzzi Rausch, afirma que, além de ser um direito, a alfabetização colabora com a autoestima e o desenvolvimento da cidadania: – (Paulo) Freire nos ajuda nesse sentido, pois é preciso que essas pessoas aprendam a ler e escrever para interpretar o mundo em que estão inseridos de forma crítica, já que o código escrito é uma das nossas principais linguagens. “Ter mais conhecimento”. “Fazer uma receita”. “Ter uma vida melhor”. “Ajudar meu filho nas tarefas da escola”. “Fazer a faculdade de Gastronomia”. “Fazer a minha Carteira de Habilitação”. “Satisfação pessoal”. Frases dos personagens desta reportagem