Publicado em 31 de dezembro de 2016

 

Ao final de mais um ano, cada um de nós faz o balanço do que foi bom e do que foi ruim, de nossas vitórias e derrotas. Depois, planeja e sonha com o que virá em 2017.

Para algumas pessoas, porém, as conquistas envolvem coisas bem diferentes do que conseguir bens materiais, um novo amor ou um novo emprego. Estão ligadas a sentidos básicos, que a maioria de nós possui e, muitas vezes, não valoriza.

O Diário Gaúcho conheceu três pessoas que enfrentarão grandes desafios em 2017, mas com as esperanças renovadas de que tudo dará certo. A professora aposentada Ilsa Ila Font, 69 anos, está voltando a ver nestes primeiros meses do ano, após um transplante de córnea. O motorista carreteiro Paulo Padilha, 41 anos, reaprende a caminhar após ter perdido uma das pernas devido a uma trombose. E a pequena Kemily de Oliveira Nervo, quatro anos, a cada dia ouve novos sons, depois de um implante coclear.

Que estas três histórias o inspirem a saudar a vida que se renova, o ano que chega, repleto de chances de fazermos algo melhor ou diferente. Que 2017 nos encontre com os sentidos aguçados!

EM 2017, ELES IRÃO...

JENIFFER GULARTE

jeniffer.gularte@diariogaucho.com.br

 

Kemily de Oliveira Nervo emocionou a família na primeira vez que dançou em frente à televisão ao assistir aos vídeos da Galinha Pintadinha. Banal para qualquer outra criança, a menina de quatro anos consagra uma vitória demonstrando estímulos ao ouvir o som. A menina de quatro anos ouviu pela primeira vez neste ano, 50 dias depois de um implante coclear realizando em junho.

A pequena de Nova Santa Rita nasceu com uma má formação na cóclea, parte do ouvido interno responsável por reproduzir ao cérebro o som ouvido externamente. Reprovada em todos os exames, chegou a usar o aparelho de audição convencional, que não funcionou.

Feita em junho de 2016 pelo Sus no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, o implante de um aparelho de amplificação sonora _ que exerce a função da cóclea _ era a única chance da menina ouvir. O aparelho foi ligado em agosto de 2016, mas faz apenas dois meses que ela ouve ruídos com mais definição.

Desde então, o volume do aparelho já foi aumentado três vezes e a expectativa é de que Kemily chegue a ouvir quase perfeitamente no decorrer de 2017. A mãe, a dona de casa Angélica de Oliveira Nervo, 29 anos, chorou na primeira vez em que chamou a filha pelo nome e a menina, após algumas tentativas, virou o rosto para ela.

– É um trabalho de dia a dia. Cada coisa que ela faz é uma choradeira. Neste Natal, ela até escutou –  diz a mãe.

Rumo à escola

 

E o papel da família é fundamental para que o desenvolvimento da audição da menina ocorra com êxito. Segundo a fonoaudióloga que acompanha semanalmente a menina, Roberta Ribeiro, 20% é papel do implante e 80% se conquista com o estímulo que ela recebe todos os dias. A partir do implante, a menina desenvolve a fala como se fosse um bebê que recém começou a ouvir. Roberta compara a fala dela como a de um bebê de seis meses.

Se 2016 foi um ano transformador, 2017 promete consolidar as conquistas de Kemily. A partir de março, ela começa a frequentar a pré-escola na Escola Municipal de Ensino Fundamental Campos Salles, processo que, espera a fonoaudióloga, deve acelerar o desenvolvimento auditivo da menina.

– Antes ela era agitada, agora é mais calma, carinhosa. Faz só dois meses que ela começou a ouvir, estamos tendo que ensinar tudo a ela. Desde o começo, nunca perdi as esperanças de ver ela ouvindo – admite a mãe, emocionada.

ROBERTA SCHULER

roberta.schuler@diariogaucho.com.br

 

– É um mundo novo. Me abriu um horizonte na vida, um janelão.

Essa é a visão da professora aposentada Ilsa Ila Font, 69 anos, de Erechim, no Norte do Estado, depois de passar por um transplante de córnea que permitiu a ela voltar a enxergar no finalzinho de 2016, depois de muitos anos sem contar com o sentido da visão.

– Hoje eu faço bainha, arrumo alguma coisa descosturada. Costurar me dá muito prazer, faz bem para a alma e eu tinha parado de fazer. Agora é vida normal – comemora Ilsa.

Foi num acidente de carro, há 35 anos, que começaram os problemas de visão da professora aposentada. O olho direito foi atingido e, em 1985, ela foi submetida a um transplante de córnea. Apesar da cirurgia, ela não voltou a enxergar por conta do descolamento da retina. Há pouco mais de cinco anos, foi a vista esquerda que começou a dar sinais de desgaste. Córnea inchada, pressão alta ocular e a perda gradativa da visão.

– Era como se visse nublado, através de um plástico. Não via mais as contas nem com lupa. Agora, vou começar a mexer até no computador. Senão, a gente fica muito atrasada _ planeja a aposentada, que tem três filhos que moram em Santa Catarina, Paraná e São Paulo, além de quatro netos.

Coroa de brilhantes

 

Como a perda da visão foi acontecendo aos poucos, Ilsa foi adaptando-se à nova realidade e buscando pequenas soluções, sem nenhum tipo de revolta pelo fato de estar praticamente cega. Os dedos foram aprendendo a ler, como ela diz _ apesar de ela não ter se dedicado ao braile. No entanto, ela lamentava algumas perdas em função do problema visual, como a saudade das feições das pessoas queridas.

– A leitura também me fez muita falta. Principalmente pela perda no vocabulário _ revela Ilsa, que foi aposentada por invalidez, em decorrência da deficiência visual.

Depois de tratar-se na cidade onde mora, Ilsa entrou na fila dos transplantes. Após dois meses de espera, foi chamada. A cirurgia foi realizada no início de novembro.

– Ela tem revisões de controle, mas a recomendação é vida normal _ observa o chefe do Serviço de Oftalmologia da Santa Casa, o médico Alexandre Marcon.

– Minha córnea é uma coroa de brilhantes, pela situação que ela me trouxe. Estou vendo o que tem de bom e de lindo que eu até tinha esquecido como era. É tudo novidade _ destaca a aposentada, citando até mesmo as placas de propaganda nas ruas de Erechim.

E em meio a tanta realização, ela não deixa de agradecer:

– Agradeço a Deus, ao doador, ao doutor Alexandre e à torcida que eu tive. Será um lindo início de ano para mim.

ALINE CUSTÓDIO

aline.custodio@diariogaucho.com.br

 

Em 2017, será um passo de cada vez para o motorista carreteiro Paulo Padilha, 41 anos, da Vila Nazaré, em Porto Alegre. O primeiro deles foi dado no dia 17 passado, ao dançar a primeira valsa com a filha Ariane, na festa de 15 anos da jovem. Até novembro deste ano, Paulo, que teve a perna esquerda amputada há um ano devido a uma trombose, não tinha a perspectiva de realizar o sonho desejado desde o nascimento da menina.

A festa programada para junho acabou cancelada porque a família dedicou toda a renda à sua recuperação física e mental. Logo depois da amputação, Paulo enfrentou a depressão.

– Foi muito complicado porque não é fácil ficar sem uma perna, de uma hora para a outra. Me isolei bastante mesmo. Não saía para a rua, não tinha vontade nem de me levantar muito da cama – recorda Paulo.

 

Superação

 

E foi a mulher dele, companheira há 22 anos, a agente comunitária Silvia Andréa Moraes, 43 anos, quem o ajudou a superar o momento difícil. Ela buscou ajuda na AACD, e o marido começou o tratamento particular em maio até conquistar uma vaga no local, via Sus.

– Não foi fácil. Ele se isolou, se deprimiu. Teve toda aquela fase ''não vou sair pra rua, sou imprestável, sou um inútil'', e eu sempre estive ao lado – recorda Silvia.

A notícia de que seria contemplado com uma prótese ajudou Paulo a recuperar as forças. Em novembro deste ano, ele recebeu a prótese feita com metal (a perna) e madeira (o pé). Tombou nas tentativas iniciais de ficar em pé com a ajuda do aparelho. Silvia o ergueu. Depois, por um pedido que partiu dele, o deixou se reerguer sozinho.

– Tivemos a fase 1, aquela do choque, da revolta. Depois, veio a fase 2, quando fomos obrigados a aceitar o que não tinha solução. Em seguida, a fase 3, com a esperança renovada a partir da AACD. Ele e nós aprendemos que será um passo de cada vez – resume Sílvia.

Só o começo

 

De poucas palavras e sorrisos escassos, por conta da timidez, Paulo voltou a soltar gargalhadas neste mês, quando viu que seria possível seguir vivendo. E o pedido especial à fisioterapeuta Luciane Grissolia, depois que ficou em pé sozinho, foi aprender os passos de valsa.

– Foi uma espera muito grande por este momento. Bom demais e inesquecível – se emociona Paulo, ao recordar a festa comunitária de 15 anos organizada por uma Ong para as meninas da Vila Nazaré.

Na AACD, cada novo degrau ou rampa subida sem o apoio das muletas é motivo de comemoração para o casal e os fisioterapeutas. As caminhadas com as mãos livres também estão ganhando força. Com a rápida evolução no tratamento, Paulo deve receber alta no final de janeiro.

– É só o começo. Descobri que só estou começando – desabafa, abrindo um sorriso.

Animado, ele quer ir além: sonha em retomar as viagens num caminhão adaptado. Antes, ensaia umas voltas no carro da família. Paulo sabe que tem uma vida toda pela frente, e não desistirá dela.

DESIGN E ILUSTRAÇÃO

Thais Longaray

FOTOS

Diogo Zanatta, especial

Fernando Gomes

Camila Domingues, especial