A história de Dorival Gonçalves Santos Filho se cruza com a relatada por um de seus livros prediletos: Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Como a epopeia do sertão, o menino crescido num lixão no interior de São Paulo foi perseverante e resgatou dos entulhos essa e outras obras que o incentivaram a estudar. Hoje, prepara-se para concluir o doutorado em Linguística na UFSC

em herói, nem coitado. Apenas uma pessoa visível”. Desse jeito simples e direto que Dorival Gonçalves Santos Filho se define. Ele poderia intitular-se professor, mestre, doutorando na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Poderia começar se apresentando como ex-catador de lixo, que já fora miserável. Mas a história dele, hoje com 33 anos, não segue cronologia convencional nem estereótipos.

 

 

Ele ostenta apenas visibilidade, renegada durante os

15 anos em que a maior parte dos seus dias passou no lixão em Piedade, no Estado de São Paulo. Por isso, sente-se como um dos personagens de Vidas Secas, do alagoano Graciliano Ramos. Em ambas as histórias, a degradação humana ganha contornos próprios.

 

Na caatinga nordestina, o tesouro era a chuva. No lixo, a recompensa era encontrar cobre. Mas diferente do que se espera, é fora da ficção que a reviravolta acontece. E foram os livros que tornaram isso possível.

 

Miudinhos, perdidos no deserto queimado, somaram as suas desgraças e os seus pavores (...) Naquele tempo o mundo era ruim”

 

Capítulo 1

Vidas Secas

As lembranças de quando Dorival começou no lixão se resumem a uma cena: em uma mão carregava a mamadeira e pela outra era guiado pela irmã mais velha enquanto ultrapassava sacos de plástico com o dobro do seu tamanho.

 

Aos quatro anos, os pequenos olhos verdes observavam a mãe tirar o sustento da família do descarte alheio. São lampejos da infância pobre na cidade de Piedade, de pouco mais de 50 mil habitantes e a

90 quilômetros da capital paulista.

 

A atividade se incorporou de vez à rotina quando Dody, como é chamado pelos amigos, completou seis anos. Para ajudar na renda da casa, o pequeno se juntou à mãe e às duas irmãs mais velhas, uma com oito e a outra com 10 anos, na coleta de recicláveis. Mas a matriarca era taxativa: todos deveriam ir à escola.

 

O menino acordava de madrugada, caminhava por duas horas até chegar ao lixão e, à tarde, mergulhava nos livros.

Na volta da escola, não perdia a oportunidade de catar mais materiais por onde passava. Às vezes, coincidia com a casa de um colega. No dia seguinte,

vinha a represália.

 

– Eles zombavam: “Eu já conversei com a minha mãe e não queremos mais você fuçando no lixo de casa”. Mas era coisa de criança, não era para humilhar – resigna-se Dorival.

 

Mesmo com as unhas encardidas, os cortes nas mãos provocados pelos cacos de vidro e sem conseguir disfarçar o cheiro de chorume, o menino frequentava as aulas. No quinto ano, com a dificuldade de conciliar a dupla jornada, passou para a turno da noite. Insistiu por mais três anos e, apesar da resistência da mãe, incorporou-se às estatísticas da periferia da cidade e largou a escola. Mas Dorival voltaria à sala de aula sete anos depois.

“O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor dos bichos moribundos. Voavam sempre, não se podia saber donde vinha tanto urubu. (...) Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim”

 

Capítulos 1 e 6

No lixão, os trabalhadores tinham um código próprio. Lá não eram catadores. Assumiam ali a função de garimpeiros. O valor do tesouro dependia da cotação do material encontrado no ambiente hostil. Cobre era chamado de ouro, alumínio era a prata. Às vezes, Dody chegava a juntar R$ 50 por semana “com muito esforço”. Dali saía boa parte das roupas e do material escolar que usavam, além dos presentes para os sobrinhos e até móveis da casa simples que a família  habitava. Um garimpeiro ajudava o outro a procurar o que precisava para o dia.

 

– Nós, as centenas de cães abandonados, e os urubus éramos um só. A gente fazia parte daquela paisagem – lembra o rapaz, que mesmo assim carrega no semblante um ar de inocência.

 

Tanto se incorporavam ao horizonte que era comum caminhões de lixo por pouco não atropelarem os garimpeiros. Eram invisíveis num ambiente inóspito. Abandono de animais e pessoas se drogando completavam a cena. Em Vidas Secas, a família de nordestinos tenta escapar da aridez da caatinga. No lixão, os catadores tentavam desviar dos sobrevoos dos urubus na disputa por comida:

 

– A gente dependeu muito tempo de comer o que achava no lixão. Eu tinha que disputar com um pedaço de pau a comida com urubus e cachorros. Essa história de meritocracia é tão furada. É muito egoísmo pensar isso. Como eu iria competir com o outro que tinha café da manhã em casa? – questiona.

A resposta viria mais tarde, desvendada entre as páginas de 3 mil livros.

Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência”.

 

Capítulo 8

A mãe de Dorival, Dona Crélia, mesmo tendo concluído apenas a quarta série e sustentado a casa na ausência do marido, de quem se separou, reservava tempo para a leitura com os filhos. Para Dorival, do meio, lia as revistas em quadrinhos achadas no lixo. Assim, quando ele tinha seis anos já sabia ler e considerava os livros, que encontrava em meio ao ouro e à prata do garimpo, um tesouro. Separava cada obra, independente do estado de conservação, e trazia no final do dia envolta em saco plástico. Livros didáticos, infantis, revistas em quadrinhos e clássicos da literatura mundial como Guerra e Paz, de Liev Tolstói. Em casa, guardava-os debaixo da cama ou em estantes improvisadas. Acumulou quase 3 mil livros pelo sonho de ter a própria biblioteca. Depois da escola, colegas chegavam a se reunir em sua casa para usar alguns livros nas pesquisas.

 

Mesmo no período longe da sala de aula, Dorival continuava com as leituras diárias. Dedicava pelo menos duas horas por dia às páginas. Trocava qualquer atividade comum de criança pelas histórias.

 

– Tudo começou quando minha mãe me ensinou a ler. Quando eu podia viajar, sair do país lendo um livro jogado fora. Isso me encheu de sonhos – confidencia.

 

Com a mudança de cidade da família, desfizeram-se da maioria dos livros. Mas cerca de 70 obras, as preferidas, ainda estão guardadas. Vidas Secas é uma delas. Dody leu a obra várias vezes, pois não compreendia o vocabulário complicado, mas já se identificava com o sofrimento e a jornada da família miserável.

 

Na ficção, a linguagem era entrave na hora de expressar sentimentos e ideias. Os personagens “soltavam palavras curtas”. Invejavam os que sabiam se comunicar. Como defende o pesquisador Hermenegildo Bastos, “a linguagem é um problema em Vidas Secas, a linguagem como consciência imediata do homem”. Na vida real, ela seria futuro, salvação.

“Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito. Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando”.

 

Capítulo 2

Depois de sete anos longe da escola, Dorival teve a chance de voltar a estudar. Com o alívio mensal do Bolsa Família que os familiares começaram a receber, Dody retomou a atividade. Aos 21 anos, cursava o primeiro ano do ensino médio com o irmão caçula de 14 anos. Nas aulas, os professores se impressionavam com o conhecimento do aluno.

 

O plano do jovem era seguir os passos da mãe, que conseguira um emprego fixo como gari, função que exerceu por 15 anos. Seu futuro começou a se desenhar quando professores sugeriram que cursasse letras devido ao interesse por literatura. Na aula de artes, o primeiro passo:

 

– Tinha uma professora da disciplina que eu vi falando francês ao telefone. Perguntei que língua ela tava falando, achei lindo. Então ela me emprestou uns livros básicos de francês.

 

Dorival seguiu a rotina intensa de estudos. No vestibular, enfrentou três dias de prova em Sorocaba. Como a mãe só tinha dinheiro para o ônibus, teve que fazer as provas faminto. Foi aprovado no vestibular em Letras (licenciatura em português e francês) da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

 

Levou os 70 livros preferidos na mala e deixou para trás o lixão rumo a Assis, cidade distante 400 quilômetros de onde morava. Para se manter durante a faculdade, trabalhava de manhã em uma lavanderia e à noite cuidava de um idoso.

 

Quando se formou, em 2010, foi para Guaramirim, cidade com pouco mais de 35 mil habitantes no norte de Santa Catarina, para onde a mãe, os quatro irmãos e os sete sobrinhos haviam se mudado. Lá começou a lecionar em escolas públicas:

– Quando entrei numa sala de aula pela primeira vez, tudo ficou girando, tive que me conter bastante, quase não dava para acreditar – recorda.

Brigaria por causa das palavras – e a sua convicção encorparia”

 

Capítulo 7

A rotina de professor durou um semestre. A vontade de aprender mais persistia e queria seguir com a pesquisa. Inscreveu-se no mestrado em Linguística da UFSC, em Florianópolis, onde ingressou em 2011.

 

Com a orientação do professor Heronides Moura e uma bolsa de estudos, defendeu a dissertação em 2013. Nessa época, o orientador soube da história de Dorival, a mais impressionante nos 24 anos de experiência do docente na universidade. O aluno sério e tímido raramente fala sobre sua trajetória no ambiente acadêmico. O orientador ressalta que ele nunca usou isso para obter vantagem e é extremamente focado nos estudos de comparação de línguas.

 

Os livros ainda fazem Dorival viajar, agora para além das páginas. Hoje, está na metade do doutorado da UFSC, que deve concluir em 2018, e planeja fazer a outra parte do curso em Lyon, na França. Para o futuro, almeja ser professor.

– Naquela época eu era um ser invisível. Hoje, sou um cidadão, tenho o meu lugar – finaliza Dorival.

“Naturalmente, conhecia o seu lugar. Ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia”

 

Capítulo 10

Karine Wenzel

Reportagem

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Ilustração

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