UM litoral com boas ondas e a experiência em receber grandes competições ainda não fizeram os atletas catarinenses se destacar na tempestade brasileira

que tomou conta do circuito mundial de surfe

 

Brasil terminou 2015 como o país do surfe. Adriano “Mineirinho” de Souza foi campeão da liga mundial (WSL, na sigla em inglês). O número 1 da temporada anterior, Gabriel Medina, conquistou a Tríplice Coroa Havaiana por ter obtido o melhor desempenho no somatório das três etapas disputadas na ilha que é considerada a meca dos surfistas. Caio Ibelli faturou o primeiro lugar no World Qualifying Series (WQS), a divisão de acesso à elite do esporte. Ítalo Ferreira acabou escolhido o estreante do ano no circuito mundial. Samuel Pupo ganhou o campeonato do mundo sub-16.

A participação catarinense nesse mar de bons resultados foi, no mínimo, discreta. OK, o potiguar Ferreira é o único não paulista entre os citados, indicando muito mais uma supremacia bandeirante do que uma deficiência dos demais 16 Estados brasileiros banhados pelo Atlântico. Mas poucos deles reúnem tantas condições favoráveis para a prática – e, consequentemente, para o surgimento de talentos – do surfe quanto Santa Catarina, o que torna surpreendente a ausência de atletas locais na briga pelos lugares mais altos do ranking.

São 531 quilômetros de litoral com ondas surfáveis de todos os tamanhos, incluindo algumas das maiores do Brasil, como as praias da Vila (Imbituba), do Cardoso (Laguna) e a laje de Jaguaruna. Com exceção de 1991, o campeonato estadual profissional ocorre regularmente desde 1980. Das 41 etapas da divisão principal do circuito mundial realizadas no país de 1976 até hoje, 12 foram aqui, número inferior apenas às 26 no Rio de Janeiro. O Estado também recebeu 31 das 132 competições do WQS em solo brasileiro de 1992 para cá.

Mesmo assim, a conexão de Santa Catarina com a brazilian storm – a tempestade brasileira, como ficou conhecida a atual geração dos atletas nacionais que está dominando o circuito – limita-se ao fato de Mineirinho morar no Campeche, em Florianópolis, e ter dedicado o título mundial ao amigo Ricardinho dos Santos, big rider palhocense assassinado por um PM em janeiro passado. Para não dizer que não houve o que comemorar, Jacqueline Silva venceu a única etapa do circuito nacional feminino, o que lhe valeu o título da categoria, e Alejo Muniz, argentino de 25 anos criado em Bombinhas, voltou ao seleto clube do WSL.

– Estamos vivendo uma entressafra, mas tem gente boa vindo aí, como os irmãos Barcelos (Vinícius e Leonardo), de Imbituba, Walley Guimarães, de Itajaí, e Wallace Vasco, de Florianópolis — diz o presidente da Federação Catarinense de Surf (Fecasurf), Fred Leite.

Enquanto essas promessas não se cumprem, a realidade catarinense em âmbito mundial é torcer para que Muniz, um dos 10 brasileiros (no caso, naturalizado) na elite em 2016, retorne às competições plenamente recuperado. Em outubro, uma queda no mar de Hossegor, na França, rompeu seus ligamentos do joelho e decretou o fim da temporada para ele. O ano só não terminou pior para Muniz porque, antes de deitar na mesa de operação, ele já havia conseguido a pontuação que lhe assegurava vaga no WSL – chegou em sexto no WQS — ao ganhar o Ballito Pro, na África do Sul, em julho.

A sopa de letrinhas que determina o ranking do surfe mundial funciona da seguinte forma: o WSL é dividido em 11 etapas e disputado pelos top 22 da temporada anterior, mais os 10 primeiros do WQS e quatro wildcards (surfistas convidados), dois para correr todo o campeonato e dois por evento. O WQS tem 34 etapas classificadas de uma a seis estrelas conforme o número de pontos (e o valor da premiação) em jogo, e os cinco melhores resultados são computados para compor a relação dos 10 credenciados para o WSL no ano posterior.

– Não posso reclamar de nada. Até o momento em que me machuquei, tudo estava acontecendo como eu queria e tinha planejado, que era vencer alguma etapa prime (seis estrelas) e me classificar antes do Havaí. Agora estou me dedicando 100% à fisioterapia, praticamente moro lá (risos). Mas gostaria muito de terminar 2016 entre os 10 primeiros e, quem sabe, disputar o título – conta Muniz, que há um ano se mudou para o Rio de Janeiro para ficar mais perto da equipe.

 

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nA DÉCADA DE 1980, OS PRATICANTES DO SURFE AINDA ERAM MARGINALIZADOS. DURANTE A ESTADA DOS FERAS ESTRANGEIROS NA CIDADE, UM DELEGADO LOCAL ALERTAVA QUE "NEM TODO MACONHEIRO É SURFISTA, MAS TODO SURFISTA É MACONHEIRO". PASSADAS TRÊS DÉCADAS, INTEGRANTES DA ELITE COMO MINEIRINHO E GABRIEL MEDINA ATRAEM PATROCÍNIOS DE MONTADORAS DE AUTOMÓVEIS A
OPERADORAS TELEFÔNICAS.

iferentemente do WSL, no WQS o atleta não precisa competir em todas as etapas. É possível escolher apenas as cinco de maior valor ou participar até obter uma pontuação que lhe garanta na elite. Qualquer filiado à liga mundial dos surfistas pode se inscrever em um evento do WQS. O Brasil é o país com mais títulos nessa categoria, 10, seguido pela Austrália, com seis. Quatro foram trazidos por catarinenses: dois com Flávio “Teco” Padaratz (1992 e 1999), duas com seu irmão mais novo, Neco, o único a vencer em anos consecutivos (2003 e 2004). Somente o australiano Jake Paterson acumula também dois campeonatos.

No WSL de então (chamada de World Championship Tour, WCT), o caçula dos Padaratz competiu entre 1997 e 2010. Logo na estreia, finalizou a temporada em 13o no ranking, alimentando a expectativa de que estava pintando um campeão mundial brasileiro. Acabou sendo sua melhor colocação. Em 2002, quase morreu afogado ao ficar preso em uma caverna de coral debaixo d’água em Teahupoo, no Taiti. Em 2005, após superar o trauma com uma nota 10 na mesma onda que por pouco não o matou, sofreu outro baque: foi suspenso por doping devido à presença de esteróide anabolizante. Voltou em 2007, aos 30 anos, talvez tarde demais para recomeçar em alto nível.

— O que atrapalhou o Neco não foi o acidente nem a punição, e sim fatores extrassurfe — analisa Teco sobre o irmão, hoje estabelecido como treinador de surfe em San Clemente, na Califórnia.

Ele próprio é um exemplo do quanto uma preparação adequada pode desenvolver o potencial de um atleta e blindá-lo contra tais fatores. O blumenauense tinha 13 anos e já apavorava nas ondas de Balneário Camboriú quando Avelino Bastos, shaper e proprietário da marca florianopolitana Tropical Brasil, apareceu em sua vida disposto a formar um profissional que representasse (bem) o Brasil no cenário internacional, em 1984. Na água, aprimoramento na prática. Fora dela, condicionamento físico e mental, rotina regrada, judô, inglês, media training e intercâmbios na Austrália e nos Estados Unidos. Em 1989, Teco e o paraibano Fabio Gouveia seriam os primeiros brasileiros a competir no circuito mundial inteiro, bancados pela Hang Loose do empresário Alfio Lagnado.

— Em 1991, comecei a treinar com o professor Mário de Andrade (de Educação Física da Udesc de Coqueiros, em Florianópolis) e a gente criou um treino funcional muito parecido com o atual. A parte piscológica também sempre foi muito importante. Meu treinamento envolvia até meditação e ioga — lembra.

Em três de suas nove temporadas na era WCT o catarinense terminou como top 16 (o parâmetro da época), sendo uma em oitavo lugar. Encerrada a carreira, adquiriu a licença para produzir e explorar a etapa brasileira do campeonato. De 2003 a 2010, o torneio movimentou Florianópolis e Imbituba.

 

Não foi a primeira vez que a Capital recebeu um evento desse porte. Em 1986, depois de quatro anos o circuito mundial voltou ao Brasil por meio do Hang Loose Pro Contest, sediado na Praia da Joaquina. Se o palco era o mesmo, a imagem do surfe havia mudado completamente — para melhor.

Na década de 1980, os praticantes do esporte ainda eram marginalizados. Durante a estada dos feras estrangeiros na cidade, um delegado local alertava que “nem todo maconheiro é surfista, mas todo surfista é maconheiro”. O dinheiro girava em torno do segmento. Passadas três décadas, integrantes da elite como Mineirinho e Gabriel Medina atraem patrocínios de montadoras de automóveis a operadoras telefônicas e têm rendimentos estimados na casa dos R$ 80 mil mensais, fora premiações e ações pontuais. Naquela etapa pioneira em solo catarinense, o total em prêmios equivalia a US$ 35 mil. Na última, passou de US$ 400 mil. Em 2015, foi de US$ 525 mil.

 

— Ficou inviável para Santa Catarina. Além da premiação, a estrutura cresceu muito. Para se organizar um evento do mundial, 1,8 mil itens devem ser cumpridos, de logística a segurança — explica Teco sobre a decisão de transferir transferiu o campeonato para o Rio de Janeiro a partir de 2011.

investimento para uma etapa do WQS é menor, mas não menos salgado. A Fecasurf calcula que o Red Nose Florianopolis Pro, seis estrelas realizado no ano passado na Praia do Santinho, custou R$ 1,3 milhão, rateados entre governo estadual, prefeitura e iniciativa privada. A empresa patrocinadora anunciou a intenção de mantê-lo por aqui em 2016. Com certeza, Willian Cardoso será um dos participantes. Nesta temporada, suas metas são fazer uma boa campanha nos campeonatos que dão mais pontos para subir na classificação da divisão de acesso (está em 83o) e disputar o título brasileiro (foi terceiro).

 

— Brigamos de igual para igual com Mineirinho e Medina, o surfe está muito parecido. Não há catarinenses mais bem posicionados por detalhes: uma má escolha de onda, uma falha em uma manobra, erros dos juízes — avalia o joinvilense de 29 anos radicado em Balneário Camboriú.

 

Ex-integrante do WQS, Marco Polo, mexicano que cresceu em Balneário Arroio do Silva, no Sul do Estado, complementa a opinião de Cardoso com uma dica simples: acompanhamento desde pequeno. Ele parou de competir no mundial em 2012, aos 31 anos, por dificuldades em descolar patrocínio. Montou o projeto Marco Polo nos Extremos e, com a prancha no pé e uma câmera na mão, foi pegar onda e filmar em países como Omã. Hoje, se vira dando aula de surfe, treinando dois atletas mirins e alugando dois chalés que possui na Lagoa da Conceição, em Florianópolis.

 

— É preciso estimular a criançada e olhar as categorias de base com mais atenção. Um moleque bem preparado faz toda a diferença — receita.

Esse seria um caminho, acredita, para descobrir e lapidar novos Tecos. Ou, como acha Alejo Muniz, “ter mais surfistas do Estado no circuito mundial é uma questão de tempo”. Resta esperar para ver esse swell de revelações entrar e, pelo menos, promover um temporal catarinense entre a brazilian storm que tem abalado o esporte.

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