MARCO FAVERO

pacientes recorrem à justiça para sobreviver Cerca de 23 mil catarinenses recebem medicamentos por ordem judicial. Valor demandado em 2017 daria para manter 13 hospitais por dois meses e meio
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uando tinha seis anos, Eduardo começou a reclamar de dores de cabeça, abdominais e nas pernas. Os sintomas, a princípio simples, levariam a um diagnóstico só um ano depois: mucopolisacaridose do tipo 1. A doença genética rara e sem cura leva ao enrijecimento das articulações, dificuldades respiratórias e cardíacas, alterações no crescimento e deformações ósseas. Os pais viram o caçula perder a visão, deixar de comer e andar e descobriram uma pesquisa pioneira no Canadá. O experimento reverteu o estado vegetativo e evitou agravamento da doença.

– Até hoje me emociono, parecia um milagre – conta a mãe, Margareth Carreirão, que preside a Associação Catarinense de Doenças Raras.

A solução tinha nome: Laronidase, um remédio produzido nos Estados Unidos. Graças a ele, Eduardo completou 29 anos no início de setembro, contrariando todas as previsões médicas que diziam que ele não passaria dos nove. Mas o milagre também tinha um preço: R$ 240 mil por mês. Em 2005, Margareth se viu obrigada a acionar a Justiça e conseguiu que o governo estadual bancasse o tratamento, único voltado para a síndrome e que não era fornecido pelo SUS. As preocupações não cessaram. Sob alegação de orçamento apertado da Secretaria de Saúde, no início deste ano o fornecimento passou a falhar. Margareth teve que esperar um mês para a chegada dos frascos e percebeu imediatamente que Eduardo teve ainda mais dificuldades para andar e sofria com a falta de ar. Nos meses seguintes, a entrega sempre veio com algum atraso, e agora já são três semanas de angústia sem a medicação:

– Se faltar o remédio, não tem opção, ele morre. É um desespero como mãe, cada dia sem remédio é um dia a menos para o meu filho.

Eduardo é um dos 23 mil pacientes que atualmente recebem medicamentos da Secretaria de Estado da Saúde por ordem judicial. Em 2016, foram em média 18 ações novas por dia obrigando o governo a pagar medicamentos e tratamentos. Esse gasto representou 11% do orçamento da saúde no Estado. Neste ano, o pico das ações judiciais chegou a 60 em alguns dias e já foram R$ 220 milhões demandados para a compra de insumos judicializados, o que daria para manter por dois meses e meio os 13 hospitais sob gestão estadual. Os gastos e o número de ações crescentes levam a Secretaria da Saúde a apontar os medicamentos pagos via judicial como uma das causas para explicar a crise da saúde no Estado.

– Com o aumento da judicialização, faltam recursos para outras áreas, é um efeito cascata. Ela está banalizada, está sendo instrumento de prioridade em fila, atendimento.

A gente acaba atendendo uma demanda individual ao invés da coletiva – defende a consultora jurídica da Secretaria de Saúde, Janine dos Santos.

Ela acrescenta que o Estado gasta pelo menos 30% a mais com o medicamento judicializado do que se fosse um processo de compra normal.

O desembargador do Tribunal de Justiça de SC Ronei Danielli discorda. Autor do livro A Judicialização da Saúde no Brasil: do viés individualista ao patamar do bem coletivo, defende que a requisição de remédios via judicial “é efeito da deficiente prestação desse serviço essencial pelo Estado” e não uma causa da crise:

– A resposta tradicional de que não se tem recursos já não basta. Se o Estado não cumpre com obrigações básicas, o Judiciário não pode deixar de garantir estes direitos.

A promotora de Justiça Caroline Cabral Zonta, coordenadora-adjunta do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos do Ministério Público de SC, acrescenta que, a partir do momento que a Constituição Federal definiu que todos têm direito à saúde, cabe ao poder público adotar as medidas necessárias para efetivar o acesso a esse direito:

– A demanda existe, apenas não está sendo atendida pelo Executivo e requer a intervenção do Judiciário.

Quem paga a conta O Judiciário considera que municípios, Estado e União são solidários nas ações judiciais na área da saúde, mas a conta é do governo estadual. A Justiça Federal é mais rígida e acaba sendo mais fácil e comum entrar contra o Estado. Além disso, cada ente assume responsabilidades: União responde por alta complexidade, Estado por média e municípios por remédios da rede básica. o que é exigido Tribunal de Justiça de SC definiu que nos casos de pedidos judiciais de medicamentos não fornecidos pelo SUS deve ser comprovada a falta de condição financeira para arcar com o medicamento e também que o tratamento ofertado pelo poder público é ineficiente ou não existe. Caso o remédio requisitado estiver padronizado pelo SUS, o paciente precisa ter procurado antes a Secretaria de Saúde municipal ou estadual e não precisa comprovar a falta de recursos. Em todos os casos, é preciso apresentar um pedido formal de um farmacêutico e um médico. O TJSC adotou posicionamento depois que julgou um processo e a decisão passou a ser adotada em todas as ações semelhantes.
sem cumprimento, valor É SEQUESTRADO

A grande demanda da judicialização é por medicamentos que não são oferecidos pelo SUS, que chegam a representar 70% das ações em SC. O presidente da Associação Catarinense de Medicina, Rafael Klee de Vasconcellos, explica que os médicos vivem um dilema ético. Deveriam prescrever tratamentos que cabem no orçamento do SUS, mas muitas vezes a incorporação de remédios pelo sistema público é lenta, a Anvisa não registra os que já funcionam em outros países e pacientes que têm doenças raras, ficam de fora dos tratamentos disponíveis  gratuitamente.

Segundo a consultora jurídica da Secretaria de Saúde, Janine dos Santos, em alguns casos, principalmente quando há alternativa no SUS, a decisão judicial acaba sendo descumprida:

– Não pode deixar faltar uma cirurgia, uma emergência no hospital. Todo mundo quer tratamento, mas os recursos são escassos.

Ela cita que muitas vezes os juízes dão prazos de 48 horas para o Estado cumprir uma liminar, o que também complica pelo tempo necessário para licitação. Diante deste cenário, a saída da Justiça passa a ser o sequestro judicial – neste ano já foram R$ 23,2 milhões para garantir o cumprimento das ações. O desembargador Danielli defende que os descumprimentos judiciais no fornecimento de remédios e tratamento são inadmissíveis e mostram que há um descontrole por parte do governo:

– Muitas vezes, a postura do Estado no enfrentamento destas questões leva a um dano maior, pois permite o sequestro de valores para o custeio do tratamento, com o pagamento de preços elevados, desordenando a administração e impondo ônus desnecessário à sociedade.

Para tentar equilibrar a balança – de um lado pacientes em busca de tratamento, do outro os escassos recursos do Estado – foram criados os Núcleos de Apoio Técnico (NAT), convênio entre a Secretaria de Saúde e o Tribunal de Justiça de SC. Atuando em 20 comarcas do Estado, o setor elabora pareceres técnicos para subsidiar a decisão dos juízes com informações sobre medicamentos disponíveis no SUS e tratamentos mais adequados para cada caso.

JOGO DE EMPURRA EM JOINVILLE

A distribuição de insulinas especiais a portadores de diabetes em Joinville tem sido alvo de discussão na Justiça. Isso porque prefeitura e Estado querem se eximir da obrigatoriedade pela compra de análogos de insulina. Atualmente, o medicamento é fornecido a cerca de 1,2 mil pessoas na Farmácia-escola de Joinville. Por serem insulinas especiais, os frascos ou canetas são mais caros que a insulina convencional.

A prefeitura de Joinville contesta a responsabilidade pela entrega de forma mais efetiva desde abril deste ano, quando a Assembleia Legislativa derrubou o veto do governador Raimundo Colombo ao projeto de lei nº 109/2015, o qual dispõe sobre a distribuição gratuita de análogos da insulina a portadores de diabetes em SC. O Estado entrou, então, com um recurso na Procuradoria-geral, mas a decisão ainda não foi tomada e, por isso, tem comprado os medicamentos por meio da Secretaria de Estado da Saúde (SES). Antes, o município assumia a compra.

As insulinas especiais são usadas, geralmente, por diabéticos do tipo 1, que não têm mais produção autônoma de insulina no corpo. Os análogos oferecem melhor controle da doença quando comparados às insulinas convencionais fornecidas gratuitamente nos postos de saúde do município.

Conforme o presidente da Associação dos Diabéticos de Joinville (Adijo), Gilmar Ancelmo da Costa, em uma conversa mantida com representantes da SES e da Secretaria Municipal da Saúde, no início de julho, ficou definido que o Estado faria um cadastro dos pacientes dependentes de insulinas especiais para, posteriormente, realizar a entrega do medicamento. Esse trabalho, diz Gilmar, já começou.

Conforme a prefeitura, a compra e distribuição de insulina não é responsabilidade do município, uma vez que o Estado foi obrigado pela Justiça Federal a fornecer todos os medicamentos para o tratamento.

 

Contraponto