s dois fatos retratados nos vídeos insinuam intolerância com quem vem de outros lugares para um Estado que sempre se orgulhou de sua colonização europeia. Além disso, o Censo 2010 apontou que 45% dos habitantes de Santa Catarina não nasceram no município em que vivem, o que dá cerca de 2,85 milhões de pessoas. Desse total, 1,18 milhão nem catarinense é. Sem falar que de 2005 a 2010, o Sul foi a única grande região do país que recebeu mais gente do que mandou para outros Estados graças ao desempenho de SC, que atraiu um volume 59% maior de imigrantes. Por qualquer recorte que se faça, trata-se de um bocado de gente que poderia ser chamada de haole.

— Uma das maiores riquezas do nosso povo é saber lidar com várias culturas. Por isso, Santa Catarina é campeã não só como destino turístico: todos querem vir morar aqui. Itajaí e Navegantes estão habituadas a conviver com pessoas de origens diferentes por causa dos portos e da proximidade com Balneário Camboriú, onde a maioria da população é de fora. A morte de Sterlin me parece mais um caso isolado. Nunca ouvi relatos de violência contra imigrantes — diz o coordenador do curso de Relações Internacionais da Univali, Jorge Hector Morella Jr., que comanda um projeto para identificar os haitianos da região com a finalidade de propor políticas públicas que os atendam.

O professor João Edson Fagundes conhece pelo menos uma história dessas. Como fala francês, ele se enturmou com haitianos em Navegantes para praticar o idioma. Hoje, reveza-se entre as aulas de história e filosofia na rede pública e a presidência da associação de haitianos na cidade, criada em 2014. É o único brasileiro na entidade, com sede em uma sala de uma escola municipal. Em agosto, quatro integrantes da diretoria se mudaram para a Guiana Francesa. Ele calcula que, atualmente, resta metade dos quase 700 que moravam no município em 2013.

— No ano passado, um haitiano recém-chegado deu o azar de cumprimentar uma moça que era mulher de traficante. Levou cinco tiros, não morreu por sorte. A família se mudou — diz.

O Observatório das Migrações de Santa Catarina, vinculado à Udesc, apurou que aqui os haitianos trabalham em setores de alta rotatividade, como construção civil e prestação de serviços. Florianópolis, Litoral Norte e, mais recentemente, o Oeste recebem-nos em maior quantidade — a estimativa é de que haja 7 mil no Estado. Eles pedem mais agilidade na emissão da documentação legal, curso de português e reconhecimento de seus diplomas. Conforme a coordenadora Gláucia Assis, muitos são poliglotas devido a experiências migratórias anteriores.


— Tudo passa por uma mudança na lei de estrangeiro: que seja entendida como questão de direitos humanos, não de segurança nacional — afirma ela.

Embora detecte indícios de crime de ódio no assassinato de Sterling, a antropóloga prefere esperar pela versão oficial, pois “os haitianos caracterizam-se pela integração social, não pelo conflito”. Também sem querer tirar conclusões precipitadas, o professor Fagundes refuta o argumento de que os imigrantes estariam tomando os empregos dos navegantinos com uma conta simples. O número dos que trabalham na cidade, 200, não teria um impacto tão forte em uma população de 70 mil pessoas.

— Nós é que devíamos refletir: se um haitiano representa uma ameaça para os nossos empregos, imagine um espanhol, um francês, alguém de um país mais desenvolvido — analisa o presidente da associação.

 

s ondas perfeitas, com paredes sólidas para manobras, fazem de Atalaia um dos points ideais para o surfe no Estado. Mesmo assim, a praia de Itajaí ficou sem receber campeonatos de 1978 a 1990. Motivo: localismo. O sotaque ou a placa do carro eram a senha para o pau fechar, não poupando veículos, pranchas e dentes dos forasteiros. Os mais antigos lembram que as hostilidades começaram na década de 1970, quando as longas esquerdas de Atalaia foram descobertas por santistas e cariocas que não respeitavam os “donos” do pico. Os nativos reagiram, expulsando-os na base da intimidação e pancadaria.

— A gente era troglodita, tinha a mente muito fechada. Essa postura prejudicou muitos atletas nossos em nível competitivo — assume o surfista Ney Machado, 46 anos, 13 dos quais à frente de uma escola do esporte na praia.

Desde então, visitantes que tentavam desfrutar daquelas ondas passaram a ser perseguidos. Atalaia se tornou “praia proibida”, território dos locais mais temidos do país, tão cascas-grossas quanto os black trunks, os havaianos de calção preto (daí o nome) que são referência em selvageria na orla. A geração atual de atalianos não é tão radical, mas regras implícitas como “tem que saber entrar para saber sair” e “é preciso se comportar na casa dos outros” ainda regem a frequência do lugar.

 

A turma de Atalaia pegava pesado, mas o localismo sempre esteve presente, em níveis variados, em qualquer pedaço de mar disputado por surfistas. Em Florianópolis, ficou famoso o movimento Fora Haole, que exigia prioridade para os nativos em determinados trechos da Joaquina, Campeche, Morro das Pedras, Santinho, Matadeiro, Solidão e Ingleses. Na extinta rede social Orkut, a comunidade homônima contava com mais de 2 mil assinantes – todos convencidos de que a hierarquia sobre as ondas é para ser seguida, não discutida.

Não foi o que pensaram os internautas que responderam enquete sobre o assunto realizada pelo clicRBS em 2006. Setenta por cento deles discordaram da premissa do Fora Haole, considerando-a incompatível com uma cidade que tem no turismo uma de suas principais fontes de renda. Detalhe: os participantes da consulta eram majoritariamente do Rio Grande do Sul, o Estado que mais exporta conterrâneos para Santa Catarina. De 1991 a 2010, o contingente de gaúchos radicados em terras catarinenses aumentou em 44%, pulando de 293 mil para 422 mil. Se estivessem em uma única cidade, esta seria menos populosa apenas que Joinville e Florianópolis.

Não à toa, a presidente Dilma Rousseff — uma mineira que, após a resistência contra a ditadura reconstruiu a vida às margens do Rio Guaíba – disse que “a maior tristeza do Rio Grande do Sul é que Porto Alegre não é Florianópolis”. Proferida em 2013 para agradar à plateia em São Francisco do Sul, a frase brincava com a predileção dos gaúchos pelas praias catarinenses. Eles começaram a cruzar a ponte Hercílio Luz como turistas. Com a abertura da UFSC e da Udesc, na década de 1960, e da Eletrosul, em 1975, passaram a vir para morar. Daí em diante, não foi necessário mais nenhum marco específico para que chegassem cada vez mais.

— Em um primeiro momento, achavam que Santa Catarina era o quintal do Rio Grande do Sul. Queriam impor seus costumes e menosprezavam nossa gente, nossas tradições, nosso jeito de falar — recorda sem saudade o funcionário público Marcos Antônio Silveira, 55 anos, o Marquinho do Cavaco, florianopolitano do bairro Saco dos Limões homenageado com o troféu Manezinho da Ilha, concedido a figuras típicas da Capital.

Com o tempo, continua o também músico, as diferenças foram contornadas ou extintas, às vezes na marra. Gaúchos tiveram filhos catarinenses e absorveram um pouco do linguajar e manias locais. No sentido inverso, ajudaram a despertar nos nativos a consciência para preservar e valorizar a Ilha.

— O litorâneo é naturalmente hospitaleiro. Mas a pessoa tem que merecer essa hospitalidade — garante Marquinho.

Para 52% dos entrevistados em pesquisa feita pelo Instituto Mapa em 2011 para detectar as percepções da população sobre a situação da cidade e suas expectativas quanto ao futuro, aqueles que se mudam para Florianópolis sem renda ou qualificação profissional não merecem hospitalidade, portanto “deveriam ser impedidos ou mandados de volta aos seus lugares de origem”. Até pela projeção obtida nos últimos 20 anos como destino turístico, polo de tecnologia e capital da qualidade de vida, a tendência é que venham cada vez mais, qualificados ou não. E como vêm: nos últimos 50 anos, o total de migrantes residentes em Florianópolis saltou de 17 mil (17% da população) para 217 mil pessoas (52%). Os haoles são maioria — e é bom se acostumar com isso.

 

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(1991 - 2000 - 2010)

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em festa na pequena igreja da Vila Paranaense no próximo domingo. É dia de Nossa Senhora do Rocio, padroeira do Paraná. Encravado no bairro Comasa, em Joinville, o lugar foi ocupado por migrantes daquele Estado no fim da década de 1980. Hoje, há tantos que não cabem mais na área cercada pelas ruas Prefeito Baltazar Buschle, Imbuia, Rafael Borguezan e Praia Grande. Pelo Censo 2010, 70 mil (13%) dos 512 mil habitantes da cidade são paranaenses — disparado, o maior grupo de nascidos fora de Santa Catarina na população joinvilense.

O presidente da associação dos moradores da Vila Parananense, José Henkel, 46 anos, não esquece das casas de palafitas sobre o mangue. Não tinha água, luz ou esgoto, mas os empregos na indústria abundavam como a mosquitada que não deixava ninguém dormir. Em pouco tempo, estava trabalhando como auxiliar de serviços gerais, depois passando para operador de máquina. Agora atua como representante comercial de extintores de incêndio.

— Na época, se eu falasse que morava na vila, perdia a namorada! — ri o paranaense, lembrando da reação das pessoas de outros bairros ao saber que vivia em local tão precário.

A solução estava ao lado: Henkel casou com a vizinha daqueles tempos, Rosana, de Nova Prata (PR), e não sai mais da Vila Paranaense por nada, porque “todo mundo se conhece, parece o interior”. Filho de agricultores em Manoel Borba (PR), ele só esperou fazer 18 anos para se mudar para Joinville, de tanto ouvir as histórias de familiares e amigos que encontraram um futuro na cidade.

De 1970 a 1980, o total de oriundos no município cresceu de 1,56% de 126 mil habitantes para 5,75% de 235 mil. As empresas mandavam ônibus para recrutar mão de obra no interior do Estado vizinho. Na chegada, os trabalhadores ganhavam alimentação e alojamento – e em breve estavam erguendo seus barracos às margens do mangue do Boa Vista. Apesar das dificuldades, era uma oportunidade mais promissora do que permanecer no campo. Lá em Pitanga (PR), Pedro Batista de França também escutava esses relatos com atenção.

— Lembro de ver ônibus da Tupy em Ivaiporã (PR) cheinho de colonos de mudança para cá — conta, enquanto sua mulher estende roupa no quintal da casa na Vila Paranaense sem descuidar do feijão que exala um cheiro delicioso da cozinha.

Em 1989, o ex-agricultor deu adeus à lavoura de arroz, feijão e milho e se bandeou com o sogro para bater ponto no setor metalmecânico. Aposentou em 2013, aos 53 anos. Como Henkel, relaciona-se sobretudo com os conterrâneos, maioria entre as cerca de mil famílias que o presidente estima viverem na vila. No dia 15, muitos deles irão agradecer a santa pelas graças alcançadas.

 

campo do loteamento Thiago, no bairro Efapi, em Chapecó, vai ferver neste domingo. Depois de quase dois meses de disputa entre cinco times, o campeonato de futebol promovido por haitianos realiza sua partida final. De um lado, senegaleses. De outro, brasileiros. Independentemente da nacionalidade que conquistar o troféu, a competição reproduz a nova cara da imigração na cidade: estrangeira, negra e disposta a tabelar com a população local. Na bola e no mercado.

— Não é todo mundo que nos recebe bem. Ouço muita reclamação de que viemos roubar os empregos do pessoal daqui — diz o haitiano Jean Innocent Monfiston, 30 anos, que estima haver 2,7 mil conterrâneos no município.

Ele deixou o curso de Engenharia Civil em seu país rumo ao Equador em 2008. Em 2011, desembarcou com a mulher em Manaus, onde nasceu o filho do casal. No ano seguinte, mudou com a família para Balneário Camboriú. Na busca por melhores condições de trabalho, trocou o litoral pelo Oeste há oito meses. Neste período, arrumou vaga em uma agroindústria e criou a associação dos haitianos do município, da qual é presidente.

Dentro das quatro linhas, a equipe de Monfiston foi goleada por 4 a 0 pelo Senegal. Um dos artilheiros, Alione Diouf, estudava Direito e Letras na capital Dakar até cruzar o Atlântico em 2012. Em São Paulo, virou operador de telemarketing. Um primo já fixado em Chapecó o convenceu a tentar a sorte na cidade em 2013. Aos 30 anos, ele dá expediente em uma distribuidora de medicamentos.

— É complicado. Não reconhecem o nosso diploma, nosso currículo não vale nada e acham que a gente aceita qualquer coisa — queixa-se.

O sujeito oculto de sua declaração joga no time que decide o título do torneio com os senegaleses e há grandes chances de ter raízes gaúchas. As companhias colonizadoras do Rio Grande do Sul foram as principais responsáveis pelo povoamento da região, nas primeiras década do século passado. Com esse histórico e a proximidade da divisa com o Estado vizinho, é natural que os chapecoenses tenham adotado seus costumes.

Que o diga Nédio Vani, dono do Bolicho do Gaudério. Nascido em Getúlio Vargas (RS), mudou-se para Chapecó em 1974 para dar aula de educação física e trabalhar como bancário. Não demorou para construir um dos primeiros galpões campeiros da cidade, reunindo gaiteiros, violeiros e trovadores ao redor do fogo de chão para noites de tertúlias iluminadas a lampião. Em 1985, abriu o estabelecimento para vender artigos nativistas. Vestido à moda gaúcha, ele recepciona turistas “do mundo inteiro” para tomar uma cachacinha, ouvir causos e admirar as centenas de fotos em que aparece ao lado de celebridades.

— Quando cheguei, todo sábado de manhã eu ia ao centro pilchado. Era motivo de gozação, hoje é respeito — lembra.

Desde 1991, também é lei: um projeto do deputado estadual Luiz Basso instituiu a bombacha como traje de honra ou oficial em Santa Catarina. Para os mais de 45 mil filiados ao Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) no Estado, nem precisava. A entidade integra 569 Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), redutos em que a indumentária faz parte do dia a dia. O presidente, Orides Luiz Pompeo, entrou nesse mundo quando foi assistir a um rodeio em Chapecó, 27 anos atrás. Nunca mais saiu.

— Quem nasce no Rio Grande do Sul é rio-grandense. Gaúcho é aquele que cultiva a tradição: bombacha, tiro de laço, chimarrão, fandango... — ensina o representante comercial de 50 anos. Catarinense de Caxambu, ele atualmente vive em Coronel Freitas.

 

Vera Fischer

(1951)

 

JULIA PITTHAN

 

Nasceu em Porto Alegre e passou 1/3 da vida peregrinando pelo Brasil. Morou em Santa Maria (RS), Joinville,

São Paulo e Florianópolis. Acumula oito anos de

milhagens em SC.

 

julia.pitthan
@diariocatarinense.com.br

Anita Garibaldi

(1821-1849)

 

ALINE FIALHO

 

Gaúcha da fronteira,

nascida no Paraná e

vivendo há oito anos em

Santa Catarina, considera-se poliglota por colecionar

os sotaques do

Sul do país.


aline.fialho
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QUEM SOMOS

Jerônimo Coelho

(1806-1860)

 

EMERSON GASPERIN

 

Concebido em Porto Alegre, parido em Laguna e registrado na capital gaúcha. Pai de uma paulistana, foi só quando ganhou uma filha  manezinha que obteve o visto ilhéu.

 

 

emerson.gasperin
@diariocatarinense.com.br

FOTOS Ricardo  Wolffenbüttel