SEMENTE DA

fartura

Há mil anos os habitantes de Santa Catarina consomem pinhão, alimento de alto valor nutritivo e que incrementa o sustento de famílias em 66 cidades do Estado, o segundo maior produtor do Brasil. O DC acompanhou um dia de colheita na Serra e mostra a relação estreita do catarinense com a semente

Ochão de madeira da casa de José Jairo de Oliveira estala conforme o dia amanhece e as botas do agricultor atravessam a cozinha em direção ao fogão a lenha, que ainda guarda as brasas acesas da madrugada – vestígios da conversa que aqueceu a noite. O calendário pendurado na parede, ao lado da imagem de Jesus Cristo desbotada e de fotografias antigas, lembra que é outono em Painel, na Serra catarinense, época de colheita do pinhão. Neste período, a renda da família engorda até R$ 20 mil com a venda da semente.

A cidade de Painel é a maior produtora catarinense de pinhão, e Santa Catarina, com 66 municípios que colhem a semente, só fica atrás do Paraná no ranking nacional. Por outro lado, o pinhão catarinense tem mais valor agregado do que o paranaense, e nossa safra de 2014 arrecadou R$ 7,6 milhões contra R$ 7,4 milhões do Paraná. Ano passado 3,2 mil toneladas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), foram comercializadas no Estado, mas estima-se que o número correto é cerca de 20% maior quando considerada a venda informal, sem emissão de notas. A partir desta sexta-feira e por 10 dias, a semente vira literalmente estrela, com o início da 28º Festa do Pinhão, em Lages.

O pinhão faz parte da cultura do Estado, desde o período pré-colombiano e foi alimento de tribos indígenas como os proto-jês que habitaram o planalto catarinense há mil anos. O apreço da semente era restrito a quem vivia nas regiões mais frias e altas do sul do Brasil, onde as araucárias domavam os campos em florestas, mas a colonização do interior transformou as árvores em madeira para o comércio que sustentou a economia do planalto até a década de 1970. Sem controle, a extração deixou a mata de araucária ameaçada de extinção e na Lista Vermelha da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN). Medidas de preservação e a crescente procura pelo pinhão nas últimas décadas mudaram a perspectiva das árvores ainda existentes.

– Hoje o pinheiro vale mais em pé do que no chão. O pinhão vale mais que a madeira – avalia Jairo, que neste ano deve colher até 5 mil quilos em sua propriedade em Painel.

O pinhão passou a descer a Serra e mais gente gostou do sabor da semente. Variedades de receitas e modos de preparo agregaram valor gastronômico, descobertas nutricionais chamaram a atenção dos amantes da culinária saudável. O pinhão caiu no gosto popular, lembra o aconchego do inverno. Tornou-se um dos protagonistas da cultura do frio em Santa Catarina.

Escalada em

araucárias

de até 40 metros

A casa de Jairo não é fácil de achar. Fica escondida no território de Painel, limite com Urupema, na Serra catarinense. Para chegar lá, abandona-se o asfalto e segue-se pela estrada de chão em direção aos morros onde as copas de araucárias reinam como coroas verdes erguidas a até 40 metros de altura. A propriedade tem o cheiro úmido do campo e do mato em sintonia com o ruído do riacho que corre atrás da casa e do canto de pássaros como a gralha-azul e o papagaio-charão, apreciadores do pinhão. Todo o bucolismo é interrompido pelo estrondoso barulho do trator que Jairo e o filho Gabriel Muniz conduzem morro acima para colher os pinhões.

Ao final do mês de abril, são poucos os pinheiros dos quais Gabriel Muniz ainda não derrubou as pinhas e que Jairo não as amontoou. Escolhida uma árvore, Gabriel calça as esporas, uma estrutura de ferro presa no meio da canela com uma ponta saliente que fica abaixo da sola do calçado. De frente para o tronco, cilíndrico e sem qualquer galho para se segurar, ele crava os pés na casca do pinheiro e como um alpinista repete o movimento, mantendo-se rente ao tronco até a copa das árvores. De cima, com a ajuda de uma barra de ferro ou taquara, cutuca as pinhas.

– Para mim é natural subir, faço desde os 14 anos. Mas é preciso muita atenção e não se sentir confiante demais para não negligenciar os perigos – conta o jovem de 22 anos, que estuda medicina veterinária em Lages.

Acidentes geralmente são muito graves. Jairo não sobe mais em pinheiros desde que caiu de aproximadamente 25 metros de altura. O senhor de 57 anos passou meses deitado após quebrar três vértebras da coluna.

– Os galhos em que eu estava apoiado racharam. Caí sentado no chão – diz Jairo, lembrando da queda que aconteceu há seis anos.

Agora ele fica em terra e observa as pinhas caírem no chão, com um som seco e abafado na grama, deixando as pequenas folhas verdes da relva amassadas. Outra cai na sequência. Um som menos abafado revela que a terceira acertou uma pedra e se abriu, jogando pinhões entre as folhas secas e espinhentas que estão no solo. Jairo recolhe as pinhas, coloca no reboque do trator e leva para o galpão.

Nos dias de chuva ou quando há pinhas demais colhidas, a família formada por Jairo, Gabriel e Claudete se reúne para debulhar os pinhões. Abrem a esfera verde e separam as sementes das falhas. Reúnem os pinhões e os guardam em lugar seco e fresco. Em 2016, as sementes deixarão a propriedade ao custo de R$ 4 a R$ 5 o quilo, por meio de transportadores e comerciantes que as levarão para os grandes centros comerciais do Estado.

– Esse ano teremos pouco pinhão, a safra foi menor. Em junho, quando a procura aumenta, o quilo estará mais caro – analisa Jairo.

Gabriel Muniz, 22 anos e filho de Jairo, colhe as pinhas em araucárias desde os 14 anos

SAFRA É MEDIDA

na conversa

Os pinhões de março ficam reservados para alimentação dos animais e proteção do ecossistema da mata de araucárias. É a partir de abril que a atividade extrativista de colher a semente se inicia, dura até julho quando as pinhas mais tardias amadurecem. Mas enquanto as estimativas de produção apontam para 8 mil e até 10 mil toneladas em Santa Catarina, os dados preliminares do IBGE indicam uma produção até três vezes menor, de aproximadamente 3,2 mil toneladas no Estado para 2015. A grosseira diferença se dá pela falta de controle da produção consolidada em um mercado informal de vendas.

– O pinhão se baseia em uma cadeia muito informal de mercado. A forma mais simples seria o produtor emitir nota para todas as vendas, mas não é o que acontece – explica o gerente do Centro de Socioeconomia e Planejamento Agrícola (Cepa) da Epagri/SC, Reney de Dorow.

Muito pinhão é vendido diretamente ao consumidor na beira da estrada ou para atravessadores que compram no planalto e repassam para os centros comerciais. As cidades de Painel, São Joaquim e Urupema lideram a produção no Estado.

– A gente sabe que aqui é a cidade que mais produz, porque falamos com os produtores e temos o maior movimento da região. Estimamos cerca de 4 mil toneladas de pinhão para este ano em Painel, mas é tudo medido na conversa – comenta Lindomar Arruda, secretário de Agricultura da cidade.

Em São Joaquim não é diferente. Com cerca de 3,1 mil propriedades rurais focadas na produção de pinhão, a semente movimenta aproximadamente R$ 2 milhões da economia local, segundo o secretário de Agricultura, Velocino Salvador Bolzani Neto.

– É uma cadeia produtiva que ainda está desorganizada, e essa produção poderia ser melhor calculada – avalia Bolzani.

A desorganização do mercado fica clara ao analisar as notas de comercialização do pinhão na maior central de abastecimento de Santa Catarina, a unidade do Ceasa, em São José. Enquanto nos dados do IBGE cidades mais próximas do litoral como Santo Amaro da Imperatriz e Içara não aparecem como produtoras de pinhão, esses mesmos municípios constam como fornecedores da semente para o mercado. Ocorre que as notas são emitidas em outros lugares que não o de origem da semente. A certeza é que se produz mais do que o informadonas pesquisas.

– Sim é maior. Mas ainda assim não chegaríamos a estimativas de 10 mil toneladas. No máximo uns 20% a mais que os dados oficiais – avalia Gilberto Arruda, pesquisador do instituto em Lages.

Mesmo assim, Santa Catarina é o segundo maior produtor, atrás apenas do Paraná, que desde 2009 supera SC na produção. Segundo dados do IBGE, os três estados do Sul do Brasil respondem por 99% da colheita nacional, que dobrou de quantidade nos últimos anos impulsionada pelo crescimento no território do Paraná.

— Apesar da produção menor, Santa Catarina tem um valor maior agregado ao pinhão. Em 2014, apesar de 400 toneladas a menos que o Paraná, SC arrecadou cerca de R$ 200 mil a mais — ressalta o analista de planejamento da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Augusto Oliveira.

Se o tamanho da safra tem medidas controversas, em Santa Catarina valoriza-se mais o aspecto subjetivo da cultura do pinhão:

– A importância está no seu significado ao turismo de inverno, cultura gastronômica e atrativo de cidades serranas e o aumento de renda sazonal de algumas famílias. Tudo isso é muito mais relevante que o aspecto econômico real para o Estado – afirma o economista Paulo Zoudan, da secretaria da Fazenda de Santa Catarina.

Produção de pinhão em toneladas

Jairo e o filho Gabriel produzem pinhão em Painel e conseguem engordar a renda da família em até R$ 20 mil no período da colheita

bom negócio: pinhão sem casca e embalado

vale quatro vezes mais

Mas há quem percebeu o interesse do mercado pelo pinhão e buscou agregar valor à semente em São Joaquim. A agroindústria, que leva o nome do proprietário Célio Ozair de Figueiredo, foi montada em 2015 e no ano passado vendeu 1,5 mil quilos de pinhão processado a média de R$ 16 o quilo - quatro vezes mais que o preço bruto. A família investiu cerca de R$ 25 mil para transformar a semente em um produto vendido sem casca, limpo, triturado ou inteiro, embalado e congelado.

- Percebemos que os restaurantes da região procuravam pelo pinhão e pediam para a gente entregar ele limpo e então resolvemos tornar esse processo padronizado para vender no mercado estadual - conta Gustavo Figueiredo.

A semente também chamou atenção do Grupo CR Participações e Consultoria de São Paulo na área de alimentos. Os pesquisadores trabalham junto com universidades e governos municipais e estaduais de Santa Catarina e Paraná para entender melhor a cadeia de produção do pinhão e buscar uma forma de profissionalizar o processo. As pesquisas recém começaram e podem levar o pinhão para mais estados do Brasil.

- Queremos, de forma sustentável, ampliar o mercado do pinhão e, quem sabe, ter a semente disponível o ano inteiro para todo o Brasil, como ocorre com a castanha-do-pará, por exemplo - explica Rodrigo Ferreira, sócio do grupo.

DIVULGAÇÃO

Família de São Joaquim investiu na limpeza e embalagem do pinhão para entregá-lo pronto aos restaurantes

O ecossistema do pinhão

 A araucária está presente nos planaltos de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná e em alguns pontos de São Paulo e Minas Gerais.  Acostumada ao frio, a árvore se desenvolve bem em altitudes medianas, entre 600 e 1.800 metros.

O fruto pinha pode  ter até 200 pinhões, a semente

NOVO

queridinho

da alimentação saudável

Enquanto colhe junto com o filho, Gabriel, as pinhas na mata de araucária, Jairo tira da cinta uma pequena faca e com habilidade digna de quem fez isso a vida inteira abre um pinhão ao meio de modo transversal. Tira a semente da casca e a come crua. O gosto é bastante característico e diferente até mesmo das versões cozidas e sapecadas. O pinhão cru tem uma textura parecida com cenoura e faz barulho ao mastigar.

- Pinhão é bom de qualquer jeito - sorri Jairo.

Mas além de gostosa, a semente se revelou um nutritivo alimento rico em minerais, vitaminas e antioxidantes como magnésio, ferro, vitaminas A, C e E. Pesquisas recentes também apontaram a presença de gorduras monoinsaturadas associadas ao ácido pinoleico. A combinação aumenta a apreciação da semente entre aqueles que buscam alimentos saudáveis.

- Essas substâncias ajudam a manter a saúde cardiovascular e também dão a sensação de saciedade, que contribui para o controle de quem quer perder ou manter o peso. Tudo de uma forma saudável por estimular a produção de hormônios responsáveis por essa sensação - explica a nutricionista Fabiane Miranda Lima, integrante do Conselho Regional de Nutricionistas.

Por essas características e por também ter fibras, proteínas e gorduras boas, quando consumido em pequenas quantidades e com frequência, o pinhão pode contribuir no combate ao cansaço físico e mental e ainda ser um auxiliar na dieta daqueles que buscam redução de peso. Também ajuda no cuidado dos tecidos musculares, ósseos e da pele.

Segundo a nutricionista, congelar e descongelar o produto não gera perdas nutricionais significativas e todas as formas de preparo contêm alto valor nutricional. A família Oliveira, em Painel, come o pinhão fresco e recém-colhido. Eles ouvem falar desses benefícios, mas Claudete inclui a semente no cardápio de outono mais por hábito e gosto do que por benefícios nutricionais. Fato é que na mesa deles, como em diversos lares catarinenses, o pinhão sustenta e reúnes as pessoas ao redor da conversa. Seja na colheita ou no prato, ele muda a rotina das atividades e dá uma toque especial às estações frias.

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