EM 1º DE FEVEREIRO DE 2008, MAIS DE 5 MIL PESSOAS SE DESPEDIRAM DE SÉRGIO MURAD. NAQUELE DIA, O PARQUE FUNCIONOU NORMALMENTE. BETO JAMAIS DEIXARIA O SHOW PARAR.

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O SONHO DO CAUBÓI

Como o publicitário Sérgio Murad se transformou em Beto Carrero e colocou o pequeno município de Penha no mapa do turismo com o maior parque de diversões da América Latina

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o final de janeiro de 2008, o empresário João Batista Sérgio Murad foi para São Paulo. De lá para cá, o parque criado em 1991 por ele em Penha – o Beto Carrero World – superou a marca de 2 milhões de visitantes anuais, passou de R$ 170 milhões em faturamento em 2015 e, nos últimos três anos, foi escolhido pelos usuários do site de viagens TripAdvisor como o melhor da América do Sul. Até 2024, a meta é investir R$ 50 milhões, construir três áreas temáticas e triplicar o público. Sem números, conquistas e projeções não existe negócio, por mais que a mercadoria/experiência oferecida seja intangível.

— Cada vez que abrimos os portões, estamos vendendo sonhos — diz o diretor-presidente Rogério Siqueira, da sala que ocupa nos fundos da parte administrativa do parque, situada no térreo do Castelo das Nações.

A molecada ansiosa no estacionamento em frente ao castelo colorido nesta manhã de julho não está nem aí para o economês. Mas entende direitinho o que Siqueira quer dizer com esse papo de sonho. Descem de ônibus de excursão, vans, carros de todos os bolsos. Estão em grupos da escola (alguns uniformizados), com a família, em uma turma de amigos. Os menores correm em círculos, de maneira psicótica e repetitiva. Adolescentes tiram selfies, gritam e tiram selfies gritando. Adultos ensaiam um alongamento muscular que nunca completam. É bom mesmo se preparar. Tem que ter condicionamento físico de atleta para aguentar tanta diversão.

Um dia é pouco para conhecer todas as alardeadas 100 atrações. No início, a empolgação pelas cores e formas e movimentos e sons e luzes dita o ritmo. Depois, bate a popular “reina” – por cansaço, por não ter tamanho ou idade para o brinquedo tal e, como não, pelas filas. A canseira está incluída no pacote. O veto a pequenos em brinquedos mais radicais é atenuado por uma fofa medida administrativa. Segundo Siqueira, os funcionários são orientados a se abaixar para, na altura da criança, olho no olho, convencê-la de que sentimos muito, infelizmente ela ainda não vai poder brincar ali, quem sabe no ano que vem, quer um pirulito?.

E tem as filas. Em qualquer parque, elas são uma instituição tão tradicional quanto o algodão doce. No Beto Carrero World, parecem centopeias. Na entrada do Raskapuska, uma placa bem visível na entrada faz o favor de alertar: a partir daquele ponto, o tempo estimado de espera para navegar em um tronco de árvore pelo interior da montanha mágica é de 50 minutos. Em brinquedos mais concorridos, como as montanhas-russas, há boatos que pais, mães, professoras, monitores e tios em geral – a vovó sentou-se em algum banco pelo caminho, dando check-in e puxando conversa com desconhecidos – chegaram a ficar com varizes.

Exagero, claro. Assim como é claro que, sob uma perspectiva menos, digamos, madura, a fila não incomoda, como dizia um hit da década de 1980. Falta uma hora e meia para a próxima aparição de um Kung Fu Panda e já tem gente se posicionando, uma atrás da outra, para bater fotos com o personagem. O único jeito de evitar esse exercício de paciência e tolerância é comprando o Fast Pass. Por quase o mesmo preço do obrigatório ingresso individual, o opcional dá direito a uma pulseira que equivale à prioridade. Simplificando, você paga para furar a fila e ser atendido antes de quem chegou primeiro. Tsc, tsc.

É justo ressaltar que a prática nasceu nos parques que são referência mundial. O Beto Carrero World, alinhado com as modernas tendências de mercado, apenas a importou. É lícito, há demanda, faz parte do jogo. Mas, além de promover a divisão de classes – e a humana, demasiada humana frustração, recalque e revolta nas camadas inferiores – em um ambiente controlado, que se pretende tão puro, o “passe rápido” destrói a utopia da igualdade desde a tenra idade. Não deixa de ser didático para as gerações mais novas. Nem em um lugar que vende sonhos isso existe.

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o final da década de 1980, o empresário João Batista Sérgio Murad era chamado de louco. Só porque resolveu montar uma espécie de Disneylândia no Brasil da inflação de mais de 1.000%. Da primeira eleição direta para presidente em 29 anos. De Collor. E fora do eixo Rio-São Paulo, em uma cidadezinha no litoral catarinense. A diferença – não menos tachada de coisa de maluco – em relação ao modelo da Flórida era que o empreendedor faria o papel de Walt Disney e Mickey ao mesmo tempo: no reino da fantasia que surgiria em Penha, o protagonista seria Beto Carrero, o próprio Murad.

O caubói que “ama os animais e defende os oprimidos” tornou-se a maior criação do caipira de São José do Rio Preto (SP). O nome era uma homenagem ao pai, que puxava carro de boi e tinha o mesmo apelido. O visual e o mote remetiam à paixão de infância, o universo do faroeste e dos rodeios. Depois de trilhar uma carreira bem-sucedida como publicitário na década de 1970 com a agência JBS Murad, ele assumiu o personagem e armou um circo para rodar o Brasil. Suas conexões com Os Trapalhões, do qual havia sido produtor, abriram-lhe as portas na televisão e o estimularam a alçar voos mais altos.

A ideia de fazer um parque temático brotou após uma viagem à Disney com Renato Aragão. Beto voltou de lá com a convicção de que tinha mercado no Brasil para iniciativa similar. Santa Catarina estava no seu radar desde que passara a ter contato com as tecelagens do Vale do Itajaí para lançar o jornal Noticiário da Moda, com o qual fechou seu primeiro grande negócio ao vendê-lo à editora Abril. A relação com o Estado incluía um escritório da empresa de propaganda em Blumenau para atender os anunciantes dos ramos têxtil e cristaleiro e uma casa em Indaial, onde nos finais de semana recebia amigos e artistas de São Paulo.

Erguida em uma ilha particular no rio Itajaí-Açu, a residência no bairro Carijós serviu inclusive de locação para filmes dos Trapalhões. As enchentes de 1983 e 1984 destruíram tudo, menos a vontade de Beto de se estabelecer em solo catarinense. Segundo o prefeito blumenauense Felix Theiss (1973-1977), o parque só não foi instalado na cidade porque faltou apoio. O empresário cogitou construí-lo na Itoupava Central, em terras da falida Cia. Jensen. Pediu à prefeitura a doação da área e a ampliação do aeroporto Quero-Quero. Em troca, prometia a geração de mais de mil empregos e o incremento do turismo.

Diante da negativa, ele voltou-se para a região que aproveitara para conhecer em 1973, quando perdeu o voo em Navegantes no retorno de uma estada em Blumenau para reuniões com clientes. Penha contava, então, com 8 mil habitantes e somente dois hotéis, número condizente com a incipiente exploração turística de suas 19 praias em 31 quilômetros de litoral. Na visão de Beto, porém, o mais importante era que ali havia espaço de sobra para expandir e ficava próximo de um aeroporto e do principal destino turístico do Estado, Balneário Camboriú.

Como o ídolo Disney, começou comprando terrenos de pequenos proprietários sem revelar suas reais intenções, para não inflacionar os preços. Ao totalizar 18,4 mil metros quadrados divididos em 178 escrituras, iniciou as obras. Foi nessa época que contratou Ilton José Setti, que tinha vindo de Abelardo Luz para trabalhar na construção de um conjunto habitacional em Penha – outro que não botou fé nos planos de Beto.

— Ele falava que ia fazer tanta coisa aqui… Era difícil acreditar. Como eu duvidava, não deixei que registrasse minha carteira, só mais tarde — lembra Setti, hoje com 57 anos e coordenador de obras do Beto Carrero World.

Nenhum dos dois imaginava, mas estava nascendo o maior parque temático da América do Sul e o sexto do mundo.

MUNDO DE DIVERSÃO

Números que tornam o Beto Carrero World o maior parque da América Latina

 

R$ 170,7 milhões Faturamento em 2015 R$ 10 milhões em investimentos previstos em 2016 para celebrar os 25 anos R$ 60 milhões de investimentos em atrações na próxima década
7 mil visitantes em média por dia 2,1 milhões de pessoas em 2015
1,2 mil funcionários + 600 indiretos
100 atrações
10 restaurantes
23 lanchonetes
13 bonbonnières
7 sorveterias
ZOOLÓGICO 1.000 animais vivem no zoológico do parque
cada elefante come 110 quilos de vegetais por dia
ANIMAIS DO ZOO
28 espécies 120 quantidade

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o final de 1991, mais precisamente no dia 28 de dezembro, um sábado, o empresário João Batista Sérgio Murad inaugurou o Beto Carrero World. O acesso era pela Rua Inácio Francisco de Souza, perpendicular à rodovia pela qual se chega à entrada atual, a SC-414 II – ou “Transbeto”, como ela ficaria conhecida. As atrações restringiam-se aos shows do caubói e Excalibur, pedalinho, carrinhos de choque, duas rodas-gigantes e o Circo Internacional. A Ilha dos Piratas seria entregue somente em 1992. A montanha-russa Star Mountain, em 1993. O parque ia crescendo. O tino para marketing do publicitário se encarregava do resto.

Para promover a região, Beto fazia parcerias com a Santur (órgão oficial de turismo do Estado) e com prefeituras. Divulgava a peregrinação religiosa à igreja da recém-beatificada Madre Paulina (Santa em 2002, com a canonização) e a etílica na Oktoberfest de Blumenau. E aparecia na TV. Em uma década, o Beto Carrero World recebeu mais de 5 milhões de pessoas. Nesse período, a população de Penha pulou para 17 mil habitantes e foram abertas 805 empresas na cidade – sendo 29 meios de hospedagem, 305 bares, restaurantes e lanchonetes, cinco agências de viagem e 20 na categoria lazer.

— Um empreendimento desse porte e com essa finalidade traz junto aspectos negativos e positivos: de um lado, investimentos, empregos e impostos; de outro, aumento do custo de vida e da violência — atesta a turismóloga Ana Tereza Tessari Vicente, autora de dissertação apresentada na Univali sobre os impactos econômicos e socioculturais do parque na comunidade entre 1991 e 2000.

A partir de agosto de 2017, o Beto Carrero World poderá fazer mais por Penha. Nesta data, terminam os 20 anos de incentivo fiscal concedidos pelo município. Desde 1997, a JB World Entretenimentos, razão social do parque, está isenta de recolher os impostos Predial e Territorial Urbano (IPTU), Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), Sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), de taxas para a concessão de alvarás e tem abatimento de 50% na contribuição de melhorias.

A secretaria da Fazenda da cidade estima que, só de IPTU, em cálculos de 2014, entre R$ 1,5 milhão e R$ 2 milhões deixaram de ser arrecadados. Com o ISSQN de 3% sobre o preço dos ingressos, o tamanho da renúncia fica ainda maior. Em 2015, o parque teve 2,1 milhões de visitantes. Se o tíquete custou R$ 100 em média, dá R$ 6,3 milhões.

— Foi um benefício que nos concederam. Acabando, vamos cumprir o que determina a lei, como sempre fizemos, e pronto — encerra a questão o presidente Siqueira.

Com passagens pela Tigre, Café Damasco e O Boticário, o paulista de 55 anos formado em Administração entrou na empresa em 2004. Estruturou os processos e saiu. Voltou em 2014 para comandar a operação. Veste um colete azul escuro de náilon com a logomarca do parque e carrega no pescoço um pingente de cartõezinhos com a representação esquemática da “gestão servidora”: um triângulo com a ponta para baixo cercado por duas finas setas viradas para cima. Na parte mais larga da figura, colaboradores focam nos visitantes. Gerentes e coordenadores, nos resultados. Presidente e diretores, na hierarquia.

No Beto Carrero World, diz ele, descobriu que “a alma faz a diferença”, desmentindo a impressão técnica, linear e racional sugerida pelo adereço corporativo. Enquanto você ouve falar da Fire Whip e banca o blasé, Siqueira já perdeu a conta de quantas vezes se pendurou na primeira montanha russa invertida do país. O que leva a conversa para o inevitável tema da segurança, talvez o aspecto mais sensível para a reputação de um parque. Aí o gerentão reassume as rédeas. Explica que o parque detém a certificação da alemã TÜV, rigorosa em inspeções nesse aspecto.

— Todos os dias, os brinquedos passam por uma checagem das 5h às 8h30, antes de abrir. Não tem como ser flexível nisso, admitir um número. A meta é zero acidentes.

No entanto, acontece. Em 2013, a engenheira mecânica Fernanda Jienifer Dryer, de 22 anos, foi escalpelada ao prender os cabelos no motor do kart que dirigia. Em quatro meses de internação, sofreu 19 cirurgias. Teve pele da coxa enxertada na cabeça. A medicina descartou implantes e seu cabelo não crescerá mais. Entrou na Justiça para que o Beto Carrero World pague indenização por danos materiais, morais e estéticos e custos com tratamento, atendimento psicológico e com as perucas especiais que precisa usar. A lesão poderia ser evitada com o uso da balaclava (touca), obrigatória nas competições com o carrinho.

O parque alegou que, mesmo o kart sendo terceirizado, colocou à disposição todos os recursos para assegurar o bem-estar e o tratamento possível à jovem de Tenente Portela (RS). E que continua dando auxílio mensal a ela, além das próteses capilares. Conforme Siqueira, o jurídico está cuidando da situação.

A

os cinco minutos de 1o de fevereiro de 2008, o empresário João Batista Sérgio Murad morreu. Ele estava internado há dois dias na capital paulista para operar o coração e, aos 70 anos, não resistiu a uma endocardite infecciosa. Para os funcionários mais antigos e/ou com quem teve relacionamento mais direto, Sérgio foi para São Paulo. Assim, é isso. A gente até custa a entender ao que estão se referindo, tão sincero é o jeito que lidam com a ausência do patrão. Beto Carrero vive, como personagem e como inspiração.

— Beto era incrível. Apontava e dizia: “Olha aquela cachoeira ali! Que vitórias-régias lindas!”. E não havia nada disso, era o que ele já enxergava que iria fazer — diz o presidente.

O corpo seguiu no Corpo de Bombeiros – com o inseparável cavalo Faísca acompanhando a guarnição – em cortejo do aeroporto de Navegantes até o velório no salão paroquial de Penha. Cinco mil pessoas o esperavam para se despedir, entre elas políticos e um inconsolável Dedé Santana. No enterro, choveu granizo no momento em que o caixão era baixado ao túmulo. O parque funcionou normalmente. Beto jamais deixaria o show parar.

— Quando o Beto estava na cidade, no espetáculo O Sonho do Cowboy eu anunciava “e aí está ele, nosso grande herói, Beto Carrero” e ele entrava em cena montado no Faísca. Naquele dia, o cavalo veio direto do velório para cá. Na hora do anúncio, entrou sozinho no palco. Os atores, o público, o pessoal da produção; não teve quem não se emocionou — recorda o coordenador da área de shows Cristiano Geonir de Souza, de 35 anos.

Sucessor do pai no leme da empresa, Alex Murad ordenou que ninguém nunca mais cavalgaria no manga-larga branco, o terceiro que acompanhava Beto. Com 19 anos, o cavalo curte a aposentadoria em uma baia VIP no parque. O filho também negociou com as americanas Dreamworks e a Universal Studios para implantar atrações baseadas nas franquias cinematográficas Madagascar e Velozes e Furiosos. Esse último é um upgrade do Extreme Show, a velha (e sempre renovada) apresentação de ases no volante. Os pilotos ganham em média R$ 7 mil por mês para uma sessão diária de 45 minutos, informa o produtor Eduardo de Goes.

Alex hoje lidera o conselho de administração, o executivo é Siqueira. Mas passam pelo herdeiro as decisões envolvendo atrações, inclusive elenco. Brinquedos, zoológico, áreas temáticas – tudo é pensado tendo em mente Beto Carrero, cujo legado preenche cada canto do parque e atinge o ápice no musical em que é encarnado por Cristiano. Filho de pescador, vizinho do parque, o coordenador de shows começou puxando poneizinhos aos 11, logo que o Beto Carrero World foi inaugurado. Aos 15, lavava os cavalos. Aos 17, atuava no Excalibur. Fez o cavaleiro da abertura da novela Salve Jorge (2012). Tem 212 subordinados, 35 dos quais na peça.

São profissionais como Richard Torelly, 33 anos, que interpreta a Madame Margoth na peça, é bailarino do Madagascar e está aprendendo a cantar. Douglas Mayzter, 46, o carteiro de 89cm e bom coração. Gabi Borba, 26, a Dona Lúcia, mãe da mocinha apaixonada pelo caubói, Luly, vivida por Julia Rosa Bruns, 20, evangélica da Bola de Neve, que se forma no final deste ano em canto no curso de Música da Univali, em Itajaí. Eles não param de se arrumar nos bastidores enquanto expressam o que os anima a se maquiar e ensaiar: oportunidade na carreira, currículo, aprimoramento, realização como artista. Cada um com seu sonho.

111 espécies 760 quantidade
cada leão come 5 quilos de carne por dia
14 espécies 51 quantidade