a visão de

nelito

Como Leonel Timóteo Pereira, o Nelito, ajudou a mudar a realidade da Cachoeira do Bom Jesus, em Florianópolis, depois de ter três vezes uma visão sobre a construção de um centro de apoio social

TEXTO | viviane bevilacqua

O

bairro da Cachoeira do Bom Jesus, no Norte da Ilha, em Florianópolis, pode ser dividido em duas épocas bem distintas: antes e depois de Leonel Timóteo Pereira, o Nelito. Até a primeira metade do século passado, a comunidade era formada por pescadores humildes, analfabetos e completamente desassistidos pelo poder público municipal. A partir dos anos 1960, Nelito e a esposa Júlia, companheira da vida inteira, começaram a transformar a realidade daquelas pessoas, proporcionando amparo, abrigo, alimentação, trabalho e conforto espiritual para todos que precisassem. Com o apoio e a força de uma legião de voluntários, construíram a Sociedade Espírita de Recuperação, Trabalho e Educação (Serte), uma das mais importantes obras assistenciais da cidade. O que era um imenso terreno pantanoso se transformou em uma sede que até hoje atende dezenas de idosos e mais de duas centenas de crianças daquela área da cidade.

Mais do que da Serte, essa é a história da vida de Nelito. Um homem singular, empresário e comerciante de sucesso que abriu mão do que tinha para praticar a caridade. Essa trajetória cheia de percalços, mas também de provas de resiliência, coragem e fé está contada em detalhes no livro Nelito e as Rosas Rubras, escrito pela cronista Norma Bruno e lançado no fim de agosto.

Nelito cresceu em uma casa confortável, numa espécie de sítio, na Cachoeira do Bom Jesus, em 1919. A comunidade era formada essencialmente por pescadores. Gente simples, analfabeta e que não recebia qualquer tipo de assistência pública. O centro de Florianópolis, a mais de 30 quilômetros de distância, tornava-se mais inacessível pelas condições da estrada de chão batido, que dificultava ainda mais o deslocamento. A família de Nelito, entretanto, vivia em condições diferentes. O pai dele, Leonel Bento Pereira, era dono de um pequeno comércio que vendia de tudo. Casado com Andrônica Sardá Pereira, a Dona Nola, professora, tinham cinco filhos. Nelito era o terceiro. Natural que o casal exercesse uma forte liderança na pequena comunidade.

Leonel pai morreu cedo, aos 43 anos. O filho mais velho, De­móstenes, ficou ajudando a mãe no armazém, e Nelito, com apenas 13 anos, mudou-se para o centro da cidade em busca de emprego.

Ao mesmo tempo, frequentava a Escola Técnica Industrial. Ele era um leitor voraz, inteligente, alegre e engraçado e também dinâmico, criativo, intuitivo. Tinha ideias arrojadas, vivia inventando coisas novas. Era extremamente generoso. Um defeito? Tinha pavio curto. Era estouradinho.

Um dia Nelito conheceu Julia, filha de João Cascaes e de Angelina Gandolfi Cascaes. A família era dona de uma loja que, mesmo pequena, tinha muito conceito na cidade: a Instaladora Cascaes. O namoro foi rápido e o casamento aconteceu em setembro de 1941. Ele tinha 21 anos e ela, 19. Tiveram dois filhos naturais, Telma e Allan, e outros adotivos. Todos dizem que eles se completavam, por seus temperamentos
tão diferentes. Ele, agitado e intempestivo. Ela, calma e ponderada. Ele, sonhador; ela, pé no chão.

Nelito e os irmãos montaram uma fábrica de calçados, a Irmãos Pereira, e chegaram a ter lojas para vender a mercadoria. Após um grande incêndio, decidiram fechar as portas. Julia era funcionária pública lotada no Departamento das Municipalidades. Para cuidar do marido, que adoecera após o incêndio e descobrira uma doença no coração, ela tirou licença não remunerada por tempo indeterminado. Anos mais tarde retornaria ao trabalho, já como funcionária da Receita Federal. Nelito não se dava por vencido. Decidiu então aprender eletrônica em um curso por correspondência, muito comum na época. O porão da casa virou uma fabriqueta de estabilizadores elétricos. Teve sucesso, mais uma vez. Tanto que o sogro o convidou para trabalharem juntos na Instaladora Cascaes. Aceitou, mas por pouco tempo. Não gostava de ser empregado, mesmo que fosse do sogro.

Abriu uma pequena loja chamada A Eletrotécnica, uma portinha na Rua Trajano, 25, especializada em motores elétricos. O negócio cresceu rápido e, em pouco tempo, Nelito já não dava conta de tudo sozinho. A loja crescia dia após dia até transformar-se em uma sociedade limitada. Virou referência no comércio da Capital. No térreo funcionava uma das primeiras lojas de departamentos de Florianópolis e em cima ficava a oficina de consertos e montagem de motores elétricos. No auge, chegou a ter 50 funcionários entre os atendentes e eletricistas que faziam o trabalho externo.

A loja era um sucesso e Nelito, mesmo sem nunca ter qualquer aula de marketing, sabia muito bem como atrair a clientela. O povo se aglomerava nas vitrines da loja para ver os macaquinhos Chico, Barnabé e Chita brincando no balanço. Os miquinhos andavam de terno, mandado fazer em alfaiate, e tinham no peito uma placa da loja Eletrotécnica. Também saíam a andar pela praça fazendo propaganda da firma e todo mundo parava para vê-los. Havia outros dois pinguins, que ninguém sabia como foram parar lá, nem como Nelito conseguiu ensiná-los a andar abraçados carregando no pescoço uma placa onde se lia “Visite as Lojas Eletrotécnica”. Acompanhados de um funcionário da loja, andavam por tudo: no jardim da Praça XV, no Largo da Catedral, nas redondezas do Mercado Público.

Um dia, uma enxurrada destruiu praticamente o centro inteiro da cidade. Na Eletrotécnica a água entrou no depósito, causando enorme prejuízo. Além disso, começou a surgir concorrência de grandes lojas. Mas, apesar de todos esses revezes, o que determinou de vez o fechamento da empresa foi mesmo o afastamento de Nelito em razão de seu estado de saúde e também do envolvimento cada vez maior com aquela que seria a sua grande e definitiva obra: a construção da Serte, na Cachoeira do Bom Jesus.

O primeiro enfarte havia acontecido em 1944, aos 25 anos. O segundo, em 1956, aos 37. O terceiro, além de ter sido o maior e o mais forte, inaugurou uma sequência de três ataques em anos consecutivos: 1963, 1964 e 1965. Em 1967, mais um, o sexto. Em 1974, após um período de boa saúde, Nelito morreu, aos 55 anos.

N

elito e Julia reuniam os amigos para estudos da doutrina espírita na sala da casa da família, no centro de Florianópolis. Porém, queriam mais privacidade e decidiram usar um cômodo externo da casa, que chamavam de “rancho”, uma espécie de depósito. O lugar recebeu o nome de “Ranchinho dos Trabalhadores do Espaço”. Por conta disso, a instituição foi registrada como Sociedade Espírita Ranchinho dos Trabalhadores do Espaço (Serte). Isso aconteceu em 26 de dezembro de 1956, data considerada de fundação da entidade. Muitos anos depois, em 1967, o estatuto seria alterado, mudando o nome para Sociedade Espírita de Recuperação, Trabalho e Educação, mantendo a sigla original.

Em 1957, eles começaram a construir uma subsede do centro espírita na Cachoeira do Bom Jesus, onde a família de Nelito ainda possuía propriedade. Até então, não havia a intenção de realizar uma obra assistencial, segundo conta a própria Julia, hoje com 95 anos e uma memória de dar inveja. Só que, diante de tantas pessoas carentes e idosos abandonados que encontraram nas redondezas, sentiram que precisavam fazer alguma coisa. Nelito, que decidia com muita rapidez e queria tudo para ontem, resolveu então “começar pelo começo”. Isso significava acolher os velhos, amparar as mães, alimentar e proteger as crianças. Além do centro espírita, montaram um precário ambulatório médico e uma farmácia com medicamentos básicos, como xaropes, fortificantes e materiais para curativos.

Passando em frente a um terreno na Cachoeira do Bom Jesus, Nelito teve uma mesma visão por três vezes: era um chalé comprido e, na janela, ele viu idosos acenando-lhe. Não teve dúvidas de que aquela era a sua missão. Comprou aquela área para construir um lar para velhinhos. Afastou-se dos negócios (por conta da saúde frágil e do novo projeto de vida) e passou a dedicar-se integralmente à caridade. Ele pedia doações por Florianópolis inteira, mas também investia o que tinha de seu, assim como Julia.

O terreno estava lá, disponível, mas era pantanoso e precisava ser preparado antes de iniciar a construção da sede. A fundação e o entorno foram erguidos com pedras retiradas da praia e também da pedreira que havia no morro da Vargem do Bom Jesus. A pedra chegava bruta e era quebrada pelos meninos da comunidade. Nelito arregimentou muitos voluntários, de todas as profissões e classes sociais. Muita gente ia do Centro para a Cachoeira nos finais de semana ajudar na construção, fazer cimento, moldar tijolos de barro, ajudar do jeito que pudesse. Eram verdadeiros mutirões. Ele levava os voluntários de Kombi e caminhonete, que muitas vezes atolava na estrada de barro. Montou uma espécie de acampamento por lá: as pessoas iam no sábado e voltavam para a cidade domingo, exaustas, mas felizes porque acreditavam nos ideais de Nelito e Julia. Havia, porém, mais uma dificuldade: a falta de recursos. Deixou de ser um problema quando o empreendedor ganhou cem mil cruzeiros na loteria federal, valor integralmente destinado à obra.

Uns dias antes de morrer, Nelito me pegou pela mão, me levou pelas terras e me fez prometer duas coisas: uma, que eu seria presidente da Serte. Ele olhou as terras todas e me disse: “ Elas serão a salvação da Serte no futuro”.

 

dona júlia, Esposa de Nelito

Antes de partir, Nelito teve uma conversa que ficou registrada na memória da esposa. Julia conta que ele pediu que ela fosse, um dia, presidente da Serte:

– Uns dias antes de morrer, Nelito me pegou pela mão, me levou pelas terras e me fez prometer duas coisas: uma, que eu seria presidente da Serte. Ele olhou as terras todas e me disse: “Elas serão a salvação da Serte no futuro”. E também falou assim: “Você tem que ser presidente da Serte”. Eu disse: não posso. Isso eu não te prometo porque eu sou uma funcionária pública muito caxias, não vou deixar o trabalho, eu sei que a Serte precisa de tempo integral, eu não tenho como. Não aceito. E a outra: ele não queria que fizesse túmulo. Queria que o enterrasse numa cova rasa mesmo, como qualquer indigente. Eu disse: Mas Nelito, não é possível, eles não vão deixar!

Anos depois, ela assumiu a presidência da entidade.

O prédio nem estava pronto e já tinha gente pedindo vaga. O primeiro abrigado foi um senhor chamado Hercílio. Logo em seguida chegou Dona Isabel e foi necessário contratar funcionários. Com o tempo, novos idosos foram se instalando. Em 1967, foi inaugurado oficialmente o Lar dos Idosos Irmão Erasmo, abrigando inicialmente 20 velhinhos. As moças da própria comunidade eram treinadas para cuidar deles.

Naquele tempo, década de 1960, era grande o índice de óbitos entre recém-nascidos e crianças pequenas nas comunidades distantes e carentes como a Cachoeira do Bom Jesus. Muitas mulheres também morriam no parto. Nelito não se conformava com isso e passou a acalentar um novo sonho: construir uma maternidade na Serte, mas não havia dinheiro para isso. A solução foi separar dois cômodos do lar dos idosos para instalar a maternidade, de forma provisória. Uma moça da comunidade recebeu capacitação profissional na Maternidade Carlos Corrêa, no centro de Florianópolis, para assistir às parturientes e seus filhos. Assim, em 28 de abril de 1970, ouviu-se, pela primeira vez o choro de uma criança ecoando pelos corredores do casarão. O som vinha do Hospital-Maternidade Irmã Liz.

Na década de 1970, aproveitando o boom do turismo, foi inaugurada uma padaria na Serte, que também atendia o bairro. Havia ainda uma fábrica de sorvetes, vendidos nas praias pelos meninos da Cachoeira. Foi assim também com o Camping Trilha do Sol, a Lavanderia Industrial, a Fábrica de Sabão e a Casa do Artesanato, todos com recursos revertidos para a instituição. A Maternidade Irmã Liz passou a prover a comunidade (e os visitantes) das atenções primárias de saúde. O local também virou ponto de referência para os veranistas e turistas argentinos que procuravam o pequeno hospital para consultas e procedimentos médicos de emergência no verão (lembrando que esse atendimento era gratuito). Em plena atividade, o hospital oferecia 20 leitos, dos quais 10 destinavam-se à clínica médica, cinco à ala cirúrgica e outros cinco à clínica obstetrícia. A extinção do programa de assistência de saúde do Funrural no início da década de 1980, que enviava recursos para o hospital, determinou o fechamento das atividades.

U

m dia, em 1971, uma criança abandonada foi levada até a casa de Nelito e Júlia, no centro de Florianópolis. Todos sabiam da generosidade do casal. Ela foi acolhida temporariamente no lar dos velhinhos da Serte. Aos poucos, outras crianças foram chegando. Ao cabo de alguns meses, já eram 22. Nasceu assim a Lar da Crianças Seara da Esperança, que até hoje abriga pequenos em situação de risco social. Em 1977, foi inaugurado também o Educandário Lar de Jesus. O projeto começou como um modesto jardim de infância, atendendo 20 crianças entre dois e seis anos. Poucos anos depois, um grave incêndio destruiu todo um pavilhão. Para reconstruí-lo, a cidade inteira enviou doações. Hoje, são atendidos quase 200 meninos e meninas.

Nelito sabia que teria pouco tempo de vida, talvez por isso a urgência de querer fazer tanta coisa. Tinha problemas graves no coração e, se hoje é difícil sobreviver a vários enfartes, naquela época era quase um milagre. E ele sobreviveu a seis. No sétimo, não deu. Ele tinha pressa em ver os sonhos realizados. A Serte crescia e se expandia, modificando de vez a vida de toda aquela comunidade do Norte da Ilha. Nelito fez muito mais do que sonhou e partiu sabendo que a esposa Julia, os amigos e companheiros continuariam a obra.

Quando ele morreu, em 1974, uma multidão conduzida por mais de 200 automóveis, diversos ônibus e até caminhões acompanhou o féretro e o sepultamento no Cemitério São Francisco de Assis, no Itacorubi, em Florianópolis. Autoridades, políticos e representantes de várias religiões estavam presentes, assim como dezenas de voluntários e pessoas que foram ajudadas por suas obras sociais. Na Cachoeira do Bom Jesus, apesar da tristeza, não havia tempo a perder. A realidade cobrava providências imediatas. Os meses seguintes foram difíceis, claro, mas o ideal se manteve e a Serte seguiu em frente.

Julia teve, como sempre, um papel de destaque nessa retomada. Com o tempo foram surgindo mais colaboradores e pouco a pouco ela ia dividindo as tarefas. Quando se aposentou do serviço público, foi morar no Rio de Janeiro com o filho, onde ficou muitos anos. Acabou voltando e retomando seu lugar na Serte, participando até hoje ativamente da instituição. Pelo menos duas tardes por semana ela está lá, fazendo o que mais gosta na vida: caridade. Não foi por acaso de Nelito e Julia se encontraram naquele distante ano de 1941. O destino dos dois já estava traçado. E era um destino lindo, cheio de compaixão e de amor pelos mais necessitados.

DOAÇÕES

A instituição é mantida por doações, pelo brechó (de roupas e móveis) e bazar, livrarias e repasses de recursos públicos. Informações pelo fone

(48) 3215-0200

As rosas rubras

O livro Nelito e as Rosas Rubras, lançado em 31 de agosto na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, é resultado de cerca de três anos de pesquisas e entrevistas da escritora Norma Bruno. Ao longo do tempo, ela recolheu 40 depoimentos de familiares, amigos, voluntários e funcionários da Serte, de agora e de antigamente. Pesquisou documentos, comparou datas, percorreu lugares e revisitou momentos da história de Nelito, da Serte da Florianópolis do século passado.

O livro foi redigido sob encomenda de Lenir Wolther, voluntária e amiga íntima da família Pereira, que conheceu Lenito e Julia ainda muito jovem e também tinha o sonho de construir um lar para idosos. Quando ela uniu-se à causa, as paredes da Serte nem haviam sido erguidas. Mas na frente da construção reinavam as rosas rubras, as preferidas de Nelito. A paixão dele por essa espécie de flores, com as quais presenteava todos os amigos, serviu de inspiração para o título da obra.

Lenir diz que sempre acalentou o desejo de publicar um livro que contasse a história de Nelito e da grande obra social que ele idealizou e construiu com a ajuda de tanta gente.

— Quando meus filhos disseram que patrocinariam a edição do livro, fiquei feliz demais — conta.

Além de financiar o projeto, a família

de Lenir doou 2 mil livros, cujo valor das vendas será revertido integralmente para as obras da Serte.

QUEM SOMOS

Repórter

Viviane Bevilacqua

Editora

Julia Pitthan

Repórter fotográfico

Marco Favero

Editor de fotografia

Ricardo Wolffenbüttel

Designer

Fabiano Peres

Editora de design e arte

Aline Fialho

Editora assistente de design e arte

Maiara Santos

EDIÇÕES ANTERIORES

Para outras edições, acesse o site do Nós.