TERRA

PROMETIDA

ao completar 100 anos, Chapecó reflete sobre as origens e
símbolos do passado enquanto planeja o desenvolvimento para
as próximas décadas COMO POLO ECONÔMICO DO OESTE CATARINENSE

 

TEXTO | emerson gasperin

hapecó nasceu de uma promessa. Havia terras virgens e férteis de sobra no Oeste catarinense à espera de gente disposta a transformar suor em riqueza. A oferta encheu os olhos de colonos italianos e alemães do Rio Grande do Sul, que chegaram, ficaram e plantaram as sementes para a cidade fundada há 100 anos – comemorados em 25 de agosto – crescer.

Hoje, quem desembarca aqui encontra um lugar com bons índices de desenvolvimento e qualidade de vida. A ocupação era parte do projeto do governo de Felipe Schmidt para assegurar a posse do território em disputa com o Paraná, incorporado a Santa Catarina em 1916, após o fim da Guerra do Contestado. A comercialização da área foi incumbida a empresas que recebiam concessão para vender glebas com o compromisso de providenciar infraestrutura básica, como estradas. Valia qualquer negócio para atrair compradores.

— Faziam promoções do tipo ‘compre um terreno e ganhe o do lado’ — diz o empresário Christian Silvestri Bertaso, que carrega o sobrenome do maior responsável pelo povoamento da região.

O administrador de 44 anos é bisneto de Ernesto Francisco Bertaso (1826-1960), um italiano de Verona que morava em Passo Fundo (RS) antes de transferir o escritório de sua companhia colonizadora para a vila de Passo dos Índios, futura Chapecó. Os fregueses do Coronel Bertaso, como ele era conhecido, encontravam uma árdua realidade. Era preciso abrir picadas, roçar solo, erguer casas, igrejas e escolas. Aos poucos, lavouras de milho, feijão e trigo e criações de porcos e bois foram se impondo na paisagem.

A dureza enfrentada nos primórdios ajudou a moldar um acentuado senso comunitário, até porque os anseios dos chapecoenses dificilmente seriam atendidos pelo poder estadual em Florianópolis, a quase 600 quilômetros de distância em uma época de comunicação e transporte rudimentares. Na história da cidade, a mentalidade de que “juntos, somos mais fortes” se personifica em Aury Luiz Bodanese (1934-2003), articulador da união de pequenos produtores rurais que deu origem à Cooperalfa, em 1967, e à Cooperativa Central Aurora Alimentos, em 1971.

— Por estar longe dos grandes centros, há em Chapecó um sentimento arraigado de associativismo, de se juntar para fazer as coisas acontecerem — atesta o economista Márcio da Paixão Rodrigues, vice-reitor de Planejamento e Desenvolvimento da Unochapecó.

A própria universidade, a primeira instituição de ensino superior da cidade, reflete esse espírito. Implantada em 1971 com o apoio de 37 municípios, sua primeira turma a se formar foi de Pedagogia, para suprir a carência de professores nas escolas da região. Atualmente, dispõe de 36 cursos, que contribuem para diversificar a economia local, movida por uma vocação também herdada do empreendedorismo dos pioneiros: o agronegócio.

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arcela substancial do dinheiro que financia o crescimento de Chapecó nos últimos anos vem da agroindústria. Os bons resultados colhidos pelo setor irrigam segmentos como metalmecânico, plástico e serviços, constroem prédios suntuosos e abastecem as lanchas milionárias ancoradas em trapiches flutuantes às margens do Rio Uruguai, no distrito de Goio En, na divisa com o Rio Grande do Sul. Conforme a jornalista, socióloga e professora da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) Monica Hass, a ascensão da industrialização do produto agrícola como matriz  econômica do município começou em 1950, impulsionada por um episódio bizarro.

Até então, a atividade industrial na cidade e arredores se concentrava na extração de madeira e erva-mate. Mas, na noite de 4 de outubro daquele ano, a igreja pegou fogo. Dos três andares do templo de madeira dedicado a Santo Antônio, restaram apenas a torre do sino e a cruz de metal retorcida. Alguns diziam que o incêndio tinha conotação política, já que a apuração dos votos da eleição para prefeito que estava ocorrendo no clube ao lado apontava para a vitória da oposição, rompendo com o domínio do PSD do Coronel Bertaso e seu filho Serafim, avô de Christian.

As investigações levaram a quatro homens que, sob tortura, confessaram o crime. A intenção era desviar a atenção da população para praticarem furtos nas casas. Presos, nem chegaram a ir a julgamento. Cerca de 200 católicos, instigados pelo padre, que pregava o mesmo fim àqueles que haviam queimado a igreja, invadiram a cadeia e os lincharam com pauladas, facadas e tiros. Depois de trucidados, os corpos foram arrastados para fora e incinerados.

O fato projetou Chapecó de forma negativa na imprensa regional, nacional e estrangeira. De acordo com Monica, a rede de televisão inglesa BBC e o jornal belga Le Soir, de Bruxelas, noticiaram o justiçamento. A imagem de violência e selvageria atrelada à cidade provocou a estagnação do projeto colonizador. Por dois anos, os Bertaso não conseguiu vender sequer um pedaço de terra na região.

— Este teria sido um dos motivos para a mobilização em torno da instalação de um frigorífico na cidade, a fim de reativar o fluxo migratório e proporcionar um novo rumo à estrutura econômica, com a organização de um modelo de desenvolvimento centralizado na agroindústria — observa Monica, autora do livro O Linchamento que Muitos Querem Esquecer.

A hipótese é confirmada na obra por Plínio de Nês (1921-1995), que em 1952 fundou o Frigorífico Chapecó (extinto em 2005), lançando as bases para que a cidade virasse a capital catarinense do setor e polo econômico da região. Daí em diante, o novo perfil do município seria consolidado por iniciativas como a criação da Secretaria de Negócios do Oeste pelo governador Celso Ramos em 1963, passando pela estreia da Exposição Feira Agropecuária, Industrial e Comercial de Chapecó (Efapi) em 1967 e pela chegada de gigantes como a Sadia na década de 1970.

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s índios que já habitavam a região no início do processo de colonização não tiveram muitas alternativas. Ou se submetiam ou eram liquidados. A um dos nativos, porém, a posteridade reservaria papel de mito: Vitorino Condá, um kaingang que, por conviver com os brancos que haviam chegado no século 19, quando o município se estendia de Joaçaba à fronteira com a Argentina, aprendeu a falar português e constatou o poderio bélico dos forasteiros. Com flechas, lanças e bordunas, os nativos não teriam a menor chance em um combate contra os invasores. O diálogo era a única saída para evitar que seu povo fosse dizimado.

— O Império o procura e pede que ele pacifique os kaingang para abrir as picadas. Condá aceita, mas exige ser nomeado capitão do exército. Recebe arma, montaria, farda, munição e soldo. E faz um aldeamento provisório onde hoje é a Havan, no Centro — afirma o escritor Marco Aurélio Nedel, autor do livro Condá – O Imperador do Oeste.

O líder indígena é considerado herói em Chapecó. As raízes dos primeiros habitantes, no entanto, vêm sendo apagadas. Em 1948, a Assembleia Legislativa (Alesc) aprovou o projeto do deputado Cid Loures Ribas (PSD) propondo a mudança da grafia original do nome da cidade, com “X”, como as vizinhas Xaxim e Xanxerê, para a atual, mais condizente com a ideia de progresso que vigorava. Reformado, o estádio agora se chama Arena Condá; uma das principais avenidas é a Condá. A palavra “índio” sumiu.

Nem o significado de Chapecó (ou Xapecó) escapou do reposicionamento. A versão adotada pela prefeitura é de que vem da fusão dos vocábulos echa, apê e , “de onde se avista o caminho da roça”. Não para Augusto Rodrigues, 72 anos, um dos mais velhos moradores da Aldeia Condá, para onde 52 famílias kaingang que viviam no Centro foram transferidas em 1999.

- É sãpe ty kó, ‘chapéu de cipó’ - garante.

Apesar da curta distância de 15 quilômetros, o cenário no assentamento é totalmente diferente do da sede do município. As ruas de chão batido levam a casas de madeira e reina o silêncio, ocasionalmente quebrado por algum carro ou pelo cacarejo das galinhas. Barulho, mesmo, só na hora do recreio da escola indígena de educação fundamental Sãpe Ty Kó.

Inaugurado em 2008, um ano após o antigo colégio da comunidade ser destruído por um vendaval, o estabelecimento custou R$ 820 mil e tem 15 salas, laboratórios e área de convivência coberta. Inscrições em português e kaingang identificam os banheiros (elas/fag, eles/ag) e até a placa de “não pise na grama!” fincada no jardinzinho interno (hej ke ky re kri sẽn tug!). As aulas para os cerca de 200 alunos – a maioria crianças – são ministradas na língua nacional, recorrendo-se ao idioma nativo para tirar eventuais dúvidas.

— Somos a única aldeia 100% falante em kaingang do Sul do Brasil. O português é aprendido na escola e, a partir do terceiro ano, as aulas são bilíngues — diz o professor Celestiel Kri da Silva, que leciona História.

A Reserva Indígena Aldeia Condá foi homologada em maio de 2016 pela então presidente Dilma Rousseff e ocupa 2,3 mil hectares (23 mil campos de futebol) nas localidades de Gramadinho, Praia Bonita e Lajeado Veríssimo, no interior de Chapecó. Segundo o coordenador da escola, Bernardo Rodrigues, filho de Augusto, hoje abriga 200 famílias, que tiram o sustento da venda de cestos, enfeites e outros itens de artesanato feitos de pau guaimbê.

— Esse aniversário de Chapecó é uma data festiva, mas, para mim, traz tristeza. Quer dizer que faz 100 anos que o branco chegou e expulsou o índio — lamenta o idoso.

No perímetro urbano, alguns dos únicos resquícios da presença indígena resistem por meio da Chapecoense. Em frente ao estádio há uma estátua simbolizando o Índio Condá – modesta se comparada com o imponente monumento ao Desbravador, ao lado da catedral de Santo Antônio – e o mascote do time é o garoto (branco) Carlinhos, que, de cocar na cabeça, se torna o “indiozinho da Chape”. A despeito das contradições, todos, não importam etnia, religião ou classe social, torcem pelo Verdão do Oeste.

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queda do avião que levava a delegação do clube a Medellín, na Colômbia, em 29 de novembro de 2016, uniu ainda mais os chapecoenses. As 71 vítimas –  atletas, dirigentes, profissionais da imprensa, convidados e tripulantes – nunca serão esquecidas. Mas as manifestações de solidariedade recebidas do mundo inteiro e a festa nas arquibancadas a cada gol do time atenuam a dor da perda.

— O morador da cidade adora ver a Chape jogar. Além de assistir, o chapecoense gosta muito de praticar esportes, existe uma cultura clubística muito grande. Na época do frigorífico Chapecó, era o vôlei. Depois, teve o apogeu do futebol de salão. Agora é a Chapecoense. Isso explica como uma cidade de 210 mil habitantes consegue manter um time na Série A do Campeonato Brasileiro há cinco anos – diz Nedel, que assina também o livro Chapecoense – O Triunfo da Ética.

Outro programa típico é curtir o calçadão do Centro nos finais de semana, como canta a banda Repolho na música Chapecó. Três décadas depois de escrita pelos irmãos Demétrio e Roberto Panarotto, a letra que em tom de ironia descrevia a situação como uma das raras opções de lazer local ficou datada. Somente na Getúlio Vargas, a larga avenida que, vista de cima, destaca-se no traçado urbano planejado como um tabuleiro pelo Coronel Bertaso, há 54 bares, restaurantes e casas noturnas – mais uma consequência do boom da agroindústria.

— Mas sempre vamos ser colonos cibernéticos, com enxadas com MP3 – diverte-se Roberto.

O economista Márcio Paixão aposta que, em breve, a cidade vai agregar a condição de referência em inovação aos seus muitos atributos. Para ele, forjou-se um ambiente em que as instituições de ensino perceberam que devem se aproximar das empresas. Estas, por sua vez, estão interessadas em soluções baseadas em tecnologia. E o poder público atua como indutor – não só para essa, como para todas as oportunidades de incrementar a economia.

—Temos o Conselho de Desenvolvimento Econômico para reter ou atrair empreendimentos mediante isenções e melhorias, e o de Turismo, que analisa a cessão de espaços públicos ou renúncia fiscal a eventos — salienta o titular da secretaria conjunta das duas pastas, Marcio Sander.

Não por acaso, em 2007 a Alesc concedeu ao município o título de capital catarinense do turismo de negócios. Em 2015, 340 mil pessoas passaram pelos 220 eventos realizados. A edição 2017 do maior deles, a Efapi, está marcada para outubro. Dos dias 6 a 15, 400 representantes dos setores de móveis, eletrodomésticos, informática, gastronomia, máquinas e equipamentos estarão no Parque de Exposições Tancredo de Almeida Neves mostrando produtos e serviços. Haverá ainda shows nacionais (sertanejo universitário comanda).

A área que abriga o parque foi doada ao município pelos Bertaso. A primeira residência da família, erigida em 1922 na rua Marechal Bormann, no Centro, foi removida e reconstruída em frente ao pavilhão Colombo Machado Salles em 1991. No momento, a casa amarela de 250 metros quadrados está sendo restaurada. A previsão é de reabri-la para visitação durante a feira.

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