O concreto é a

Florianópolis dá exemplo de harmonia entre espaço urbano
e grafite, movimento que ganha força e se consolida como 
expressão de arte contemporânea

imagens | betina humeres

A

té o final dos anos 1990, aqueles que ousavam sair às ruas de Florianópolis para grafitar o concreto muitas vezes tinham que dar explicações para a polícia. De transgressão à manifestação estética da urbanidade, o grafite está hoje no hall da arte contemporânea. A Capital abraçou essa arte de tal forma que, ainda que em menor proporção se comparada às metrópoles, a impressão que se tem é que muros, paredes e pontes foram feitos para ser tela. A paisagem natural é a moldura.

Bairros como o Centro Histórico, a Lagoa da Conceição, o Córrego Grande, pontos do Sul da Ilha e região continental, para citar alguns, viraram uma galeria a céu aberto e gratuita — não tem como fugir desse clichê. As cabeceiras das pontes são as principais delas. Quem caminha pela passagem para pedestres da Ponte Pedro Ivo se depara com um palimpsesto urbano com a memória da cidade escrita com tinta spray. Menos verticalizada que cidades como São Paulo, onde imperam arranha-céus, as pinturas por aqui estão na altura do olhar. Com o detalhe de que muitas obras são elogios à natureza, desenhos carregados de carga poética e de mensagens positivas.

E se num passado o grafite era associado à degradação e infração, hoje reflete qualidade de vida. Assim como as cidades de Nova York, Amsterdã ou George Town, na Malásia, atraem pessoas do mundo inteiro para ver de perto a identidade visual de alguns de seus bairros, Florianópolis poderia ser, por que não, referenciada como a cidade da natureza exuberante e da arte urbana.

— Lugares com paredes grafitadas eram considerados violentos. Hoje, você vai a bairros que vêm passando por um processo de gentrificação, como em Londres ou Amsterdã, e o grafite é a identidade visual dessas regiões. As pessoas visitam e podem acompanhar o trabalho dos artistas. Tudo isso, associado ao comércio local e a políticas públicas, gera dinheiro e bem-estar para o bairro e a cidade — analisa o grafiteiro Rodrigo Rizo, 29 anos, autor dos camaleões pintados em vários pontos da cidade e representante de uma das primeiras gerações de grafiteiros em Florianópolis.

Bem-estar que a dona Bete, moradora do Morro do Mocotó há 38 anos, sente ao abrir a janela de casa todo dia e contemplar arte, e não mais lixo.

— É muito lindo. As plantas ali em cima florescem e fica muito bonito. Parece até que tudo está mais claro — disse num sábado de abril, durante revitalização do grafite na entrada do bairro.

Em 2015, um grupo de grafiteiros coordenado por Rizo realizou a primeira intervenção no local antes conhecido como Beco da Lixeira. Na época, 15 artistas pintaram painéis instalados nos muros da entrada para a comunidade. Em 2016, o lugar ganhou iluminação e telas de proteção. Este ano, os painéis de compensado naval foram substituídos por outros de alvenaria grafitados por 13 artistas durante um fim de semana. Retirados, os pedaços de madeira e arte agora vão virar até barco – Dona Bete ficou com alguns dos painéis a pedido do filho, que vai usá-los para fazer uma bateira para pesca.

— Na primeira vez, os moradores saíram no sábado de manhã e viram o início dos trabalhos sem saber o que ia acontecer. Quando voltaram, alguns até choraram. Lembro uma criança que beijava o desenho. Da mesma forma como as pessoas se acostumam com a bagunça e sujeira, elas se acostumam com coisas bonitas e organização. Muda tua referência — lembra Willian Narzetti, presidente da Associação de Amigos da Casa da Criança e do Adolescente do Morro do Mocotó (Acam).

Blumenau e Joinville também
têm uma cena latente do grafite

A história do grafite em Joinville e em Blumenau é semelhante à de Florianópolis. Na cidade do Norte do Estado, o movimento ganhou força no começo dos anos 2000. Antes de ser popular, era alvo de preconceito. Hoje os personagens, letras e desenhos abstratos dos cerca de 30 grafiteiros atuantes na cena local estão espalhados principalmente pela região central e, devagarinho, avançam pelos bairros periféricos.

— As pessoas até param para conversar com a gente — e ninguém fala com ninguém hoje em dia. Mas param só porque estamos pintando, querem saber como é. As pessoas já estão sensibilizadas— analisa João Guilherme Pereira de Deus, conhecido pelo codinome Jonca.

Jonca é de uma segunda geração do grafite na cidade e se inspira nas urgências sociais para pintar murais. Toca nas feridas mesmo, como forma de mostrar o que ninguém enxerga.

— Ainda não dá para viver só do grafite aqui. A gente vai mesclando: grafite, pintura em tela, estampa, tatuagem. Queria poder trabalhar apenas com spray.

Já em Blumenau, o grafite está mais espalhado pelos bairros do que pelo Centro. O movimento começou por volta de 1997, com a vinda de alguns artistas como o gaúcho Rocha, que levou para cidade a cultura Hip Hop. Mas o reconhecimento e valorização como arte foi a partir de 2011.

— Nos bairros é que o povo acaba abraçando melhor o grafite. Recebemos doação de material e a gente também se sente mais à vontade — diz Charles Boaventura Caetano, 36 anos, conhecido como Pilaco.

Ele grafita há pelo menos 15 anos e logo que começou montou o próprio crew (nome para equipes de artistas que pintam coletivamente, prática bem tradicional na cultura Hip Hop), o Somos Negros Crew. A equipe é conhecida por assinar trabalhos com SN Crew.

Vitória da cor
sobre o cinza

s

e antes o grafite era negado, hoje inclusive tem a chancela do poder público em Florianópolis. O painel grafitado no Centro Socioeconômico (CSE) da UFSC, uma instituição federal, é um exemplo. O Elevado da Seta, que dá acesso ao Rio Tavares, no sul da Ilha, é outro. Em 2015, 26 artistas participaram da pintura do viaduto, graças a um convênio firmado entre a prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Turismo, e o Instituto Euvaldo Lodi de Santa Catarina (IEL), em parceria com a SC Design.

A cidade conta também com a Comissão de Arte Pública de Florianópolis (Comap), órgão subordinado ao Instituto de Planejamento Urbano (Ipuf), que vê com bons olhos o grafite e até orienta os órgãos do poder público no sentido de autorizações. Por isso cenas como as que ocorreram em São Paulo em janeiro deste ano, onde muros grafitados e pichados foram pintados de cinza a pedido da prefeitura, são menos prováveis por aqui.

— A Comap aprova. Não somos a favor da criminalização. Claro que, quando se trata de intervenções em grande escala, pedimos que a comissão seja consultada. Na região histórica, por exemplo, não pode — explica César Floriano, professor de estética do Departamento de Arquitetura da UFSC, membro da Comap e do Grupo de Estudos de Arte Pública Latino-Americano.

Lú Pires, coordenadora da entidade, ressalta que a Capital conta com uma Lei de Arte Pública (lei complementar nº001/97 versa sobre a implantação de obras de arte nos prédios) e lembra, no entanto — e mesmo sabendo que o conceito passa pelo “não autorizado”— que grafite em lugares que podem causar distração no trânsito são perigosos e não aprovados.

— Floripa abraçou muito a arte de rua. É mais fácil pedir autorização hoje em dia e o poder público, por mais que seja burocrático ainda, quer essa parceria — comemora o grafiteiro Thiago Valdi, conhecido em Florianópolis pelo codinome Valdi Valdi.

Rodrigo Rizo vai além e prevê um futuro colorido:

— Temos uma geografia particular. Cada bairro é um microcentro. Vejo no futuro o surgimento de um distrito de arte para regiões afastadas, como Palhoça, por exemplo, que tem uma zona industrial. Acho que pode ser um grande museu a céu aberto de grafite.

Expressão mundial

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uando começou a aparecer nos muros de tijolos à vista dos becos e vielas de Nova York, em meados dos anos 1970, o grafite era uma contravenção e acompanhava a expansão do Hip Hop nos guetos. Caligrafia rebuscada era a expressão de jovens ociosos e de baixa renda, que levavam mensagens criptografadas a lugares públicos e não autorizados. Era como um grito social, uma forma de os jovens de então mostrar quem eram.

— Nova York é o marco zero para o Hip Hop. Existiam muitas tribos urbanas, veio a cultura de rua e as pessoas começaram a se manifestar. O grafite foi chegando ao Brasil por meio de revistas e filmes, já nos anos 1980 — conta o grafiteiro em Florianópolis Valdi Valdi.

No começo, as obras eram simples: só a caligrafia feita com o canetão. Depois se passou a usar o spray e aos poucos começou a faltar espaço nos becos de NY.

— Artistas iam criando ferramentas visuais para destacar o nome, colocando contorno, preenchimento. Na medida em que foi evoluindo, mudou também o suporte: depois dos muros e caixas de luz, chegou aos meios de transporte. Nos trens vigiados, era necessário invadi-los para pintar.

E aí se criou um ambiente de perigo associado com a necessidade estética de fazer uma coisa impactante — acrescenta Rodrigo Rizo.

Ali estava surgindo uma cultura que transformaria o vandalismo em arte. O mural feito a quatro mãos numa das paredes do Centro Socioeconômico (CSE) da UFSC mostra muitas destas técnicas dos primórdios do grafite, como o contorno feito para destacar o fundo, por exemplo.

— A fotojornalista americana Martha Cooper foi a primeira pessoa a ter acesso a informações restritas a estas tribos urbanas e a ter um olhar estético sobre o que estava sendo feito. O grafite antes era rechaçado, considerado vandalismo — pontua Wagner Wagz, também das primeiras gerações do grafite em Florianópolis.

Justamente por ter sido sempre associado ao vandalismo que os codinomes foram adotados, para que os artistas não fossem facilmente identificados.

Cripotografia estética:
desenho com significado

Grafite sempre tem um significado. Mesmo os desenhos mais abstratos. Quem vê letras em algum muro da cidade, pode ser que não consiga decodificar prontamente. Mas no mínimo explicita o nome do artista, o traço e o jeito de grafitar.

— Cada artista cria um repertório de técnicas e de elementos visuais para compor a obra, tanto as letras quanto os personagens. Hoje a gente vê grafites hiper-realistas, como se fosse uma fotografia na parede, ou ainda os grafites de antigamente. Mas é tudo uma questão de escolha estética, não quem sabe fazer melhor. É muito mais da intenção do que o avanço da técnica. A autoexpressão é o que vale. Mostrar tua identidade, o que tu pensa — diz Rizo.

Para a grafiteira Monique Cavalvanti, conhecida pelo codinome Gugie, o principal a se levar em conta é que o grafite não precisa ser bonito, ou falar coisas boas ou ser perfeito.

— É a expressão de uma pessoa. Eu penso como comunicar com responsabilidade. O que estou fazendo, por que estou fazendo — diz.

Gugie, 24 anos, começou a grafitar aos 18, por intermédio da dança e do movimento Hip Hop. É uma das poucas mulheres da cena em Florianópolis. Em maio, ela e a artista e também grafiteira Sara Duarte abriram no bairro Itacorubi o Agenda - Centro de Artes Urbanas, um espaço de cursos, venda de materiais e de encontros sobre tudo que engloba a arte urbana — do grafite à dança.

Pichação é grafite?

 

Entre os grafiteiros e pichadores não existe rixa.
A única diferença está na intenção e na estética.

— Em relação à atitude, ao cerne da questão, é basicamente a mesma coisa: usar a cidade como suporte para livre expressão, independente de autorização ou de proposta artística. É por iniciativa própria ocupar um espaço com a tua expressão. A pichação tem uma estética diferente, são letras criptografadas, com no máximo duas cores e feitas rapidamente. Enquanto o grafite trabalha com questões estéticas mais aprofundadas, o grafiteiro tem a intenção de desenvolver um traço próprio — compara Rizo.

Em Florianópolis, movimento começou na década de 1990

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o Brasil, chegou primeiro a São Paulo e Rio de Janeiro, metrópoles que já tinham a cultura do estêncil e da pichação política na época da ditadura. Os paulistas Gêmeos foram pioneiros, junto com grupos como o Tupi Não Dá, entre outros. Eles inovaram ao romper com o estilo nova-iorquino e se dedicar à poética do brasileiro. Em Florianópolis, o grafite começou há 20 anos.

—A primeira geração de grafite em Floripa é formada pelo Rizo, João Vejam e o Ldrão. Eu sou da segunda geração e fui muito influenciado por eles— conta Valdi, que começou a grafitar aos 18 anos.

Rodrigo Rizo começou ainda mais novo: com 13 anos.

— Quando comecei, minha principal referência era São Paulo. Eu andava pela rua e não via muitas coisas. Mas no meu bairro, o Estreito, começaram a surgir pichações do grupo chamado Os Metralhas (Os MTR). E eles foram minha primeira referência de algo parecido com o que eu via em SP e me inspiraram. Comecei devagar, conhecendo quem também grafitava — lembra.

Até meados de 2008, era difícil um grafiteiro conseguir autorização para pintar um painel. Hoje, chovem ofertas de muros. No bairro Rio Tavares, por exemplo, no final do ano passado, numa ação comunitária moradores doaram muros e sprays para os artistas que quisessem pintar.

— Quando eu comecei, depois de 2006 e 2007, já existia um cenário. Vejam e Rizo tinham trazido referências culturais. Começaram a importar spray de alta qualidade e isso fez com que Floripa se desenvolvesse nos anos seguintes muito mais rápido que em outros locais. Já tínhamos um ecossistema propício para a explosão de street art — avalia Valdi.

O recém-criado coletivo New Wall, formado por cinco grafiteiros de Florianópolis, quer inclusive profissionalizar a prática. Pretende ser uma plataforma da arte de rua, conectando artistas, empresas, projetos, editais culturais.

— Nosso trabalho foi evoluindo, apareceu em locais de valorização da arte, em espaços de exposições, galerias. As pessoas foram mudando de opinião — complementa Rizo.

Gugie é uma das poucas mulheres na Capital

Wagz, Rizo e Valdi: das ruas para as galerias

E o trabalho dos grafiteiros de Florianópolis é também referenciado no mundo inteiro. É o caso de Valdi Valdi, que teve a obra Crown of Flora, localizado no tapume de uma construção no Córrego Grande, selecionada entre as 10 melhores do mundo no mês de janeiro pela publicação escocesa Street Art 360.

Na academia, entretanto, o grafite ainda é lento. No curso de Artes Visuais da Udesc, por exemplo, não existe no programa disciplina ligada à arte urbana.

Muito embora o grafite tenha caído nas graças da população em virtude, em grande parte, do fato de a elite da cidade tê-lo aceitado e incorporado à agenda de arte contemporânea, destacando o trabalho de grafiteiros em espaços expositivos, não é correto afirmar (e inclusive causa repulsa aos artistas) que o grafite foi aceito porque foi para a galeria.

— Não é a intenção do grafiteiro ser reconhecido pelo trabalho dentro da galeria. É sim uma parte do trabalho, mas dentro da galeria eu sou artista plástico. A única coisa que traz notoriedade para o grafiteiro é estar na rua. Você pode ser o melhor pintor do mundo. Mas se não pintar na rua, não é grafiteiro. Nunca será reconhecido como bom grafiteiro. Já a galeria escolhe artistas por causa da notoriedade dele na rua. A galeria se apropria disso para vender — frisa Rodrigo Rizo.

A apropriação da elite se reflete também no perfil socioeconômico dos artistas de hoje. Se o grafite veio das periferias, dos jovens de baixa renda, na Ilha a maioria dos artistas da nova geração é graduada, tem pais com estabilidade financeira e não tem a necessidade transgressora de colocar o trabalho na rua. Até porque grafite custa caro — para fazer e ser consumido.

por que o grafite

importa para a cidade

 

Historicamente, o grafite ocupa o espaço da rua. Mas hoje é uma linguagem de arte contemporânea na forma como está inserida no contexto social e urbano. O professor de estética do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFSC, César Floriano, explica que é uma arte que surge como manifestação em três vertentes:

Marginal e de protesto: como tentativa de acionismo político

Estética: o grafite se inspira na arte pop e surrealista e, sem espaço nas galerias, vai para rua. Não é necessariamente arte política,
mas simplesmente expressão estética

Institucional: está mais evidente nos últimos 10 anos.
Assume-se manifestação estética institucionalizada

– Cada uma dessas vertentes é um universo a ser estudado. Embora o primeiro tipo seja mais criminalizado (a pichação figura nesse lugar), está perdendo espaço para o grafite institucionalizado— quando as próprias galerias ou até mesmo empresas bancam os artistas para estar nas ruas — afirma Floriano.

Para ele, cada uma destas três manifestações acrescenta muito para a cidade. A primeira porque é uma forma de protesto e tem a ver com o processo de redemocratização. É quando grupos sinalizam no urbano a resistência e afirmam: esse território também nos pertence.

A segunda acrescenta muito à cidade porque ocupa os espaços residuais e dá harmonia para o conjunto — embora muita gente pense o contrário.

— A cidade ganha. Os lugares antes sombrios ficam humanizados. Já a terceira trabalha com intuito de embelezar a cidade. Recebe críticas por acabar com a visão mais acionista e revolucionária. Essas pinturas são mais muralistas e menos grafite — explica o professor.

Ele continua:

— As três vertentes, embora atuem e aspirem coisas diferentes, têm importância e devem ser respeitadas. Todas são legítimas. Aqui em Florianópolis temos essas três versões, mas numa escala muito menor. Na cidade há vários muros pintados por coletivos que querem se expressar. Temos coisas interessantes e com o teor político e social num plano subliminar.

Mapa colaborativo do grafite em Florianópolis

 

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