a educação de crianças e jovens hiperconectados se torna uma tarefa desafiadora para pais e mães e cobra atenção extra para o avanço de doenças como a depressão e automutilação

 

TEXTO | viviane bevilacqua

ão 6h20min e o celular desperta. Depois de desligar o som estridente do alarme, o dedo desliza até o aplicativo do Facebook para conferir as notificações perdidas na madrugada. Chega a hora de abandonar o calor confortável da cama, trocar de roupa, pentear os cabelos. Na mesa do café da manhã, mais uma espiada: é a vez de checar o WhatsApp e o Snapchat.

Na escola, entre um descuido do professor e outro, dá para atualizar a conversa no aplicativo ou jogar algum game no celular. Se a tática dá errado, o aparelho pode ser confiscado e ir parar na coordenação. Uma dura punição. Mas o smart­phone não é só para brincadeira. Rola, às vezes, fazer uma pesquisa no Google para um trabalho de sala de aula.

Na volta para casa, depois do almoço, é a vez do notebook. Ela brinca com o gato de estimação enquanto o monitor exibe um episódio de alguma série do Netflix. Amigas do jardim de infância estão mais presentes nas mensagens do WhatsApp do que no dia a dia, já que não estudam mais na mesma escola. E o Facebook acabou se tornando a principal fonte de informação: as notícias surgem na linha do tempo, compartilhadas pelos contatos. Há tempo para tirar um cochilo, olhar para o teto e pensar na vida. Porém, no barulho dos múltiplos canais, na luz de todas as telas, nas trocas de mensagem instantâneas, sobra espaço para a solidão.

A rotina de consumo de informação é de uma menina de 13 anos, mas não fica muito distante de um jovem adulto qualquer. Em um curto espaço de tempo, o número de crianças entre nove e 17 anos que acessa a internet várias vezes ao dia triplicou – uma em cada três têm esse hábito de acordo com o estudo TIC Kids Online, realizado pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação. E são os celulares que melhor traduzem essa relação permanente com a rede: 83% usam o smartphone para se conectar. Não à toa, o aparelho já foi eleito o símbolo dessa geração silenciosa que digita rápido e tem olhos atentos às telas, porém escuta e fala pouco.

Desde muito cedo, meninos e meninas têm acesso a grandes quantidades de informação. Muita coisa interessante, sem dúvida, mas inapropriada também. Violência, consumo, sexo e preconceito estão expostos na rede. Mas não é por estar expostas a esses temas que as crianças se tornam adultas mais cedo. A maturidade vem com o tempo e resulta da interação dos processos biológicos com aspectos emocionais e as vivências na relação com os pais.

– O que observamos atualmente é uma pseudomaturidade. Adolescentes com comportamentos precoces (encurtamento de algumas fases do desenvolvimento psicológico), o que pode resultar em atitudes impulsivas, muitas vezes de risco e sem a possibilidade de pensar e elaborar sobre o que o que fazem ou presenciam – avalia a psiquiatra Maria Cristina Marcondes Brincas, especialista em infância e adolescência.

Antes da puberdade, o risco de apresentar depressão é o mesmo para meninos ou meninas. Mais tarde, ele se torna duas vezes maior no sexo feminino. A prevalência da enfermidade é de 1% nas crianças e de 5% dos adolescentes.

 

A depressão é uma doença recorrente. para quem já apresentou um episódio, a probabilidade de ter o segundo em dois anos é de 40%, e de 72% em cinco anos.

Para Maria Inês Araújo Garcia Silva, psicoterapeuta e especialista em psicologia clínica que possui quase quatro décadas de experiência no atendimento a crianças e jovens, os desafios que a vida impõe aos adolescentes de hoje não são maiores nem menores que os dos pais deles, mas certamente são diferentes.

– A rapidez com que as informações chegam aos jovens pela internet, sem mediação, os leva a ficar confusos e muitas vezes empaticamente distantes da realidade da qual fazem parte. Eles sabem, por exemplo, o que está acontecendo agora do outro lado do mundo, mas não sabem o nome de vários colegas que encontram todos os dias, não veem e sequer percebem como eles se sentem, ou pensam ou o que desejam – comenta Maria Inês, que é uma das responsáveis pelo site Educando Nossos Filhos e faz parte da equipe fundadora do Ipê Roxo Instituto de Desenvolvimento Humano.

Por outro lado, diz a psicoterapeuta, essa era digital permitiu avanços importantes em todas as áreas. Por que, então, tanta depressão, tanta perversão, tanta solidão? Maria Inês é taxativa:

– O essencial é simples, mas não substituível. Eu não responsabilizo a internet por todos os males da nossa sociedade. O essencial é ter os pais presentes na vida. Primeiro, em relação a eles mesmos, para que plenos, tenham condições de nutrir seus filhos. Filhos ouvidos, vistos, respeitados, orientados, com certeza não se matam por indução de um meio de comunicação. Famílias que criam espaço de diálogo, pensam, perguntam querendo saber, cuidam, limitam, acolhem e acreditam que os filhos têm condições de assumir as consequências das escolhas, não acobertam nem acusam – afirma.

O isolamento e o acesso irrestrito ao conteúdo online não são responsáveis pelo adoecimento dos adolescentes. Mas fazem parte de um quadro mais amplo que cresce e aflige. Um novo relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) revela que a depressão é a principal causa de doença entre jovens de 10 a 19 anos.

Muitos pais simplesmente desconhecem que os filhos podem estar deprimidos e doentes. Nem sempre aquela tristeza, birra, raiva e isolamento que veem em casa diariamente é “coisa boba de aborrecente”. Em 2014, a taxa de suicídio entre jovens de 10 a 18 anos aumentou 30%, segundo a OMS.

– É alarmante. Devemos aumentar a percepção sobre o comportamento desses jovens – alerta a médica psiquiatra Alexandrina Meleiro, integrante da Comissão de Estudo e Prevenção de Suicídio da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Alexandrina ressalta que os núcleos familiares mudaram muito, com pais separados, sobrecarregados pelas obrigações do trabalho e que acabam muitas vezes não dando atenção de qualidade aos filhos, o que é um grande problema. Além disso, vem ocorrendo com frequência um processo de terceirização da educação, dando à escola a incumbência de educar, o que seria uma função da família.

Além do suicídio, a automutilação preocupa. No jogo Baleia Azul, uma fenônemo online que teria surgido em uma rede social russa e levado jovens a cometer até suicídio, cortes nos braços e ferimentos fazem parte das tarefas. Esse tipo de comportamento é um transtorno psiquiátrico grave e não raro entre os adolescentes, no mundo inteiro. Exige tratamento, terapia e medicação. Um estudo realizado na King’s College, em Londres, mostrou que a prática é mais comum entre as meninas. Os números são alarmantes: um em cada 12 jovens se mutila, com agressões como cortes, queimaduras e batidas do corpo contra a parede. Para aqueles que se autoflagelam, a prática é uma tentativa de aliviar sensações como angústia, raiva ou frustração

Em pelo menos 20% dos pacientes com depressão instalada na infância ou adolescência, existe o risco de surgirem distúrbios bipolares, nos quais fases de depressão se alternam com outras de mania, caracterizadas por euforia, agitação psicomotora, diminuição da necessidade de sono, ideias de grandeza e comportamentos de risco.

 

Ter um dos pais com depressão aumenta de 2 a 4 vezes o risco da criança. O quadro é mais comum entre portadores de doenças crônicas como diabetes, epilepsia ou depois de acontecimentos estressantes como a perda de um ente querido.

filósofo e psicoterapeuta alemão Bert Hellinger ensina que há três leis do amor que regem a vida. Quando se sente pertencido ao grupo familiar, atento ao seu lugar na família e em equilíbrio com o que a vida lhe traz, o jovem se torna um adulto confiante e saudável, capaz de cumprir bem a sua missão. Com base nessa teoria, Maria Inês dá um conselho aos pais:

– O que traz resultados concretos, independentemente de classe social, econômica ou cultural e que vejo que realmente resgata um jovem de uma situação de perigo, depressão ou droga, é os pais assumirem o compromisso de praticar e aprender a criar vínculos fortes com os filhos. Isso se dá por meio do diálogo respeitado; da presença; da confiança nas habilidades dos filhos; da alegria que depositam no futuro deles. Nossa responsabilidade como pais, nosso amor, nossa dedicação, nossa atenção e muito trabalho; tudo isso afasta nossos filhos de jogos perversos, destinos trágicos e condutas de desrespeito à vida.

Na família Boff, educação dos filhos é coisa séria e merece investimento. Lucas tem 13 anos, é filho do médico Luciano e da estudante de Psicologia Flávia Fernando. O casal é separado e, embora o menino more com a mãe, o pai é muito presente na sua educação. Lucas cursa o 8o ano no Colégio Nossa Senhora de Fátima, em Florianópolis. Ele está muito bem informado sobre o Baleia Azul. Porém, não foi na escola nem com os pais que soube do jogo. Foi de Windersson, o youtuber favorito do garoto, que ele ouviu falar da corrente pela primeira vez. O comunicador fez um vídeo sobre o assunto, alertando os milhares de seguidores para o perigo. O menino ficou interessado e foi pesquisar mais por conta própria. Depois, contou à família sobre as descobertas.

– Acho que só adolescente que está com sua saúde psicológica comprometida joga esse tipo de coisa. Não é coisa de gente normal. Eu li bastante sobre o jogo, sei o que acontece e estou fora – garante Lucas.

Na casa da mãe, o uso do celular é mais liberado. Já quando está com o pai, ele exige que o filho interaja com as duas meio-irmãs pequenas  e que não passe o tempo inteiro conectado.

 – Fácil não é, mas precisamos encontrar um equilíbrio. A convivência familiar é muito importante, e estamos sempre de olho no que o Lucas está fazendo – diz Luciano.

Bruna Boff tem nove anos e é prima de Lucas. Filha única do engenheiro Cristiano e da auditora Simone, a garota é muito esperta. Também sabe o que é o jogo Baleia Azul, embora não tenha liberdade para acessar o que quiser na internet. Não tem celular nem tablet próprio. Usa o computador de casa para jogar e ver desenhos, sempre supervisionada por um adulto. Os pais trabalham o dia inteiro, mas isso não diminui a qualidade da relação familiar.

– Somos muito presentes na vida dela e conversamos sobre todos os assuntos – diz a mãe.

Bruna também convive muito com a avó (a escritora Maria Luiza Boff, com quem inclusive já publicou um livro infantil) e com a bisavó Conceição, que acaba de completar 98 anos. Ela também já sabe o que é o tal jogo que induz os jovens ao suicídio.

– A internet tem muita coisa boa, mas tem muito lixo também. Então, cabe a nós, pais, filtrar o que nosso filhos podem ou não ter acesso – diz Cristiano.

A rapidez com que as informações chegam pela internet, sem mediação, leva os jovens a ficarem confusos e muitas vezes empaticamente distantes da realidade da qual fazem parte.

 

Maria Inês Araújo Garcia Silva,

Psicoterapeuta especialista

em adolescência

lém dos jogos periogosos, a internet se torna ambiente fértil para o bullying. Um terço de crianças e adolescentes brasileiros já presenciou alguém ser discriminado na rede, mostra a pesquisa TIC Kids Online. As ofensas pela cor ou raça lideram (23%), seguidas pela aparência física (13%), por gostar de pessoas do mesmo sexo (10%), por ser pobre (8%), pela religião (7%) e por não usar roupas da moda (7%).  Testemunhas do preconceito, 6% dos jovens também disseram que já foram alvo de algum tipo de insulto online, percentual que equivale a 1,5 milhão de pessoas.

Especialista em direito digital, o advogado Fernando Mangold frequentemente realiza palestra sobre o tema em escolas, para pais, professores e alunos. Recentemente esteve no Educandário Imaculada Conceição (EIC), em Florianópolis, com a palestra Futuro em Construção: Respeito à Vida – Combate à Intimidação Sistemática: Bullying e Cyberbulliyng. De acordo com ele, estamos todos experimentando uma nova realidade em relação ao acesso a informações. Não há mais fronteiras físicas, tudo acontece em alta velocidade, instantaneamente. Passamos a nos sentir em uma enxurrada de informações  e não fomos devidamente preparados para isso. É o que chamamos de revolução digital ou sociedade da informação.

– Isto traz alguns problemas que precisam de maior atenção, principalmente relacionados às crianças e adolescentes, que estão criando suas personalidades, laços e tentando entender o mundo.

Os adolescentes nascidos depois de 1997 já cresceram acessando todas as novas tecnologias e não conseguem perceber o mundo sem elas. Já os pais que viveram metade ou mais das vidas sem esses equipamentos, na maioria das vezes, não têm noção dos perigos digitais, porque na época deles perigoso era subir em árvores ou andar de bicicleta.

– A gente saía para brincar na rua e voltava para casa quando anoitecia. Os pais daquele tempo não tinham celular para contatar os filhos e saber o que estavam fazendo, e nem era preciso. Então, esses pais, quando olham para os filhos dentro de casa, com o celular nas mãos, sentem uma falsa sensação de segurança – ressalta o advogado.

Um conselho? O mesmo de sempre: os pais deveriam passar mais tempo com os filhos fazendo atividades ao ar livre, brincando e jogando (mesmo no computador). Em resumo, estar de verdade com eles nos momentos em que for possível. Limitar o uso das tecnologias, acompanhar em quais as mídias sociais seus filhos possuem perfis, ler os regulamentos destas mesmas mídias e acompanhar os filhos na escola também são cuidados necessários, diz o advogado.

De acordo com um relatório divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2014, a depressão é o principal problema de saúde entre os adolescentes, fator diretamente relacionado ao suicídio, uma das três maiores causas de morte na faixa etária de 10 a 19 anos, juntamente com acidentes de trânsito e o vírus da Aids.

 

O Centro de Valorização da Vida (CVV) registrou aumento de aproximadamente 400% no número de mensagens de texto e ligações de pessoas dispostas a conversar sobre o suicídio desde a estreia do jogo Baleia Azul e da série 13 reasons why.

 

As profissionais do setor de psicologia do Colégio Energia, de Florianópolis, também estão atentou à grande repercussão do jogo Baleia Azul e da série 13 Reasons Why, do Netflix.

A produção conta a história de um garoto tímido que recebe em casa um misterioso pacote com fitas cassete – nelas, gravações de uma menina que discorre sobre os 13 motivos que a levaram a tirar a própria vida. Os dois fenômenos entraram na pauta de uma palestra especial para os pais, professores e estudantes feita em maio com o tema Redes Sociais: Comportamentos, Crimes, Riscos e Conflitos.

A psicóloga Mayara Leandro Nascimento, da equipe do colégio, acredita que é fundamental um trabalho conjunto entre família e escola para um melhor entendimento em relação ao processo vivenciado pelos adolescentes.

– A escola tem que se mostrar aberta às mudanças e se adaptar ao contexto tecnológico. Nossos educadores fazem uso da tecnologia dentro da sala de aula e, com isso, o ambiente educacional torna-se mais interativo, despertando no aluno uma identificação com o conteúdo abordado – explica.

A psicóloga ressalta que a cada dia fica mais evidente a influência da mídia, especialmente da televisão e das redes sociais, na vida e na formação das crianças e adolescentes. O problema é que grande parte das vezes essa rede de informações não é supervisionada, monitorada ou verificada, ou seja, há falta da família. Quanto às mídias eletrônicas, um dos problemas está na dificuldade de separar o que é verídico do que é fictício, o que é útil do que é descartável, o que pode ser considerado censura e o que pode expressar uma manifestação de cidadania. O conteúdo não é controlado e nem analisado, tornando os adolescentes vulneráveis a todos os tipos de mensagens.

Em um ambiente de avalanche de informação e múltiplas telas, os pais sofrem com o impacto da revolução digital. Passam o dia no trabalho e chegam à noite com a sensação de que não conseguiram terminar as tarefas. Assim, vão para casa e continuam conectados em gadgets. Como as crianças e adolescentes aprendem pelos exemplos, então ao chegar em casa e ficar olhando o e-mail ou o WhatsApp, os pais estão ensinando os filhos a passar mais tempo usando essas tecnologias também. Sem conexão real, é difícil conquistar confiança.

 Exercite a escuta! Pergunte querendo saber. Tenha paciência, sobretudo se a opinião do seu filho for diferente da sua. Em outro momento, quando for adequado, coloque sua visão sobre o tema sem desqualificar a dele. Isso  estimula a reflexão e fará com que ele volte a procurar você quando tiver dúvidas ou simplesmente quiser compartilhar experiências.

 A tecnologia tem a função de servir, e não afastar; deve ser usada para fortalecer a vida, diminuir as distâncias, facilitar o aprendizado.

 Não é a tecnologia que nos faz perder os filhos para o mundo virtual, e sim a postura dos pais. Creia e confie que você como pai ou mãe tem tudo o que é necessário para guiar os filhos. Se está confuso, busque ajuda. Você é importante demais para eles e, se estiver bem, se sentirá forte para criar um futuro saudável.

Fonte: Psicoterapeuta Maria Inês Araújo Garcia Silva, do site Educando Nossos Filhos

 Pai e mãe precisam se incluir nas regras da casa. Por exemplo: se o uso de celular nas refeições é proibido, os pais também devem respeitar a combinação.

 Reserve tempo para estar em família sem a interferência dos eletrônicos.

 Crie regras em conjunto, possíveis e com bom senso para que sejam cumpridas. Porém, lembre-se: a principal responsabilidade de definir as referências de bom uso da tecnologia é dos pais.

 Crie espaços de reflexão e diálogo sobre as novidades que surgem nos smartphones e na internet.

 Faça com que os diálogos sejam agradáveis, e não sermões intermináveis que afastarão em vez de aproximar os jovens.

ean Zanelato, estudante de Jornalismo de Tubarão, escreveu Guerreiro quando tinha 17 anos. O livro conta a história de um jovem que sofria bullying na escola e foi ficando retraído e depressivo, até que a família percebe que ele havia encontrado na automutilação uma fuga dos problemas e decide buscar ajuda médica e psicológica. Gean hoje tem 19 anos, continua escrevendo e garante que o livro é autobiográfico na essência, apesar do personagem da história ter recebido o nome de Jerry.

“Eu não aguentava mais estar tão confuso, tão louco, não sabia o que fazer. Então, sentei no sofá e num ato inconsciente usei minha mão direita para arranhar a esquerda. Não foram arranhões fortes ou profundos de início. Era como se minha pele estivesse coçando por uma reação alérgica. Minha mão arranhou mais, com mais violência. Pensei na tristeza e desgosto que me haviam feito passar. Minha pele sangrou. Quando me dei conta do que estava fazendo, parei. Foi uma sensação breve e libertadora. A dor no meu pulso parecia nada, comparada à dor me causada pelos outros. Enquanto eu me machucava era como se parte da raiva deixasse meu ser e uma sensação boa subia pela minha coluna até o cérebro, agindo como calmante. Não entendi por que estava fazendo aquilo, não sabia por que decidi descontar sobre minha própria carne, e muito menos por que raios eu estava gostando daquilo. No minuto seguinte, caí num pranto dolorido e emocionado. Ao mesmo tempo, meus lábios diziam:

– Eu sou importante, eu sou. Eu não mereço isso.

Rapidamente e cambaleante, ainda meio perdido e sem ter muita consciência do que eu estava fazendo, fui até o banheiro. Abri o armário e retirei do antigo aparelho de barbear do meu pai uma gilete prateada. Prendi a respiração, soltei devagar. Não compreendi no momento o porquê daquilo, estava tudo muito confuso e eu só queria acabar com a dor. Num sussurro débil, eu disse:

– Vocês merecem isso.

Levei a gilete ao meu pulso esquerdo e a deslizei sobre a pele, rasgando de modo visível e profundo minha própria carne. Senti uma dor aguda e quente, o sangue brotou e permaneci num silêncio atormentador. Todos os pensamentos assustadores escorreram para fora de mim junto com aquele líquido quente e denso. Depois do primeiro corte abandonei a lâmina sobre a pia, abri a torneira, lavei o ferimento com água gelada e senti meu ódio, meus medos e desesperos descerem pelo ralo. Eu estava bem. Apesar da minha pele arder, me sentia limpo. Puxei quase um metro de papel higiênico e o envolvi na ferida. Estanquei o sangramento. Dez minutos mais tarde reabri o armário, guardei a gilete, retirei um band-aid da caixa e cobri a marca. Com o coração pulsando e as mãos trêmulas, voltei até o sofá, me deitei, tapei minhas pernas com o cobertor xadrez da mamãe e religuei a tevê no mesmo desenho que estava passando antes. Em cada cena eu soltava uma gargalhada, O meu senso de humor havia voltado. Era se como o sangue e a água da pia tivessem lavado minha alma, fazendo eu me esquecer de tudo.”

1 Baixa resistência à frustração, o que torna o jovem e a criança intolerantes a problemas e dificuldades.

2 Medo do futuro.

3 Descontentamento com o corpo.

4 Desilusões amorosas.

5 Perda real (morte de um dos pais) ou simbólica de elementos significativos na vida (quando os pais estão fisicamente presentes, mas não emocionalmente ou são muito ausentes).

6 Depressão dos pais: quando um deles está deprimido, é raro que a criança não sofra as consequências, uma vez que a relação de cuidador e cuidado pode ficar comprometida.

7 Adaptações psicológicas normais no desenvolvimento, que se tornem difíceis para a criança e acabem se tornando um fator de risco para a depressão (como mudanças de escola, casa, amigos, nascimento de um irmão etc.).

8 Ambiente familiar instável e inseguro (discussões frequentes, problemas econômicos, família numerosa, práticas educativas muito severas e invasivas etc.).

9 Maus tratos físicos e emocionais.

10 Abuso sexual.

11 Bullying.

12 Fatores biológicos (predisposição genética, baixa produção de serotonina).

anessa Bencz é jornalista e palestrante, escreveu quatro livros sobre bullying voltados para adolescentes. O mais conhecido deles é A Menina Distraída. O quarto foi lançado há pouco e chama-se Leia Quando Chegar em Casa, uma coletânea de depoimentos que a autora colheu durante as mais de 900 palestras feitas pelo Brasil em cinco anos.

“Vivi o bullying quando eu tinha 13 anos. Na época, há 20 anos, não existia essa expressão. Falavam que era ‘brincadeira’, e a gente tinha que aguentar. Os professores me diziam: ‘O mundo é dos fortes e você precisa aprender a aguentar essas zoeiras.’ Comecei a cometer automutilação porque achava que merecia me punir. Eu me cortava com um canivete pequeno que encontrei na gaveta do meu pai. Era uma espécie de exercício de administração de uma dor emocional que precisava ser física para existir. Me cortar era uma forma de legitimar o meu sofrimento. Eu achava que dores psicológicas eram coisa de gente covarde, fraca, reclamona. E eu queria ser ‘forte’, assim como falavam na escola, na mídia e na sociedade.

Só parei de me cortar quando meus pais me levaram (contra a minha vontade) a uma psicóloga. Eu havia me tornado uma adolescente rebelde e violenta. Procurava relacionamentos amorosos com pessoas igualmente problemáticas. Quando comecei a fazer terapia, entendi que o sofrimento emocional também é legítimo e que eu não merecia passar por aquilo. Não aprendi necessariamente a me defender; mas aprendi a gostar da imagem que via no espelho. Quando eu comecei a me sentir mais à vontade com a minha pessoa, me incomodei menos com o bullying e definitivamente não precisava mais me cortar. Foi muito natural encontrar o meu caminho como jornalista e esquecer toda aquela fase ruim.

Comecei a fazer palestras nas escolas sobre a importância da leitura, mas percebi que a questão do bullying ainda estava muito presente na sala de aula. Isso me revoltou demais. Pensei comigo mesma: “Estamos na época da internet, da informação, e isso ainda existe?” Então passei a focar minhas palestras nessa questão. Minha intenção era ensinar ferramentas de fortalecimento psicológico para estudantes, mas vi que o problema da violência nas escolas era bem pior do que eu imaginava. Muitos professores não estão preparados para lidar com casos de bullying, e inclusive muitos deles ainda pensam que bullying fortalece caráter. E o pior: muitos estudantes sofrem violência em casa ou no contexto familiar, e depois isso se traduz no comportamento na escola.

Vejo diariamente pais e mães que mantêm uma vida de aparências. Pagam cursos caros para os filhos, pagam tênis da moda, tatuagem, carro e viagens, e não percebem que por baixo do moletom caro do filho, nos braços existem cicatrizes doloridas e sofrimento. Por trás de um rostinho adolescente cheio de deboche existe uma carência que começou dentro de casa.

No começo eu me sentia extremamente exposta e vulnerável nas palestras, mas aos poucos entendi que falar sobre essa parte da minha história é totalmente necessário. Não sou fraca por contar uma parte ruim da minha vida. Pelo contrário, isso é coragem. Os alunos precisam se identificar e fazer o exercício de empatia para não praticar bullying com os outros.

É muito comum que, após as palestras, as crianças e adolescentes venham falar comigo. Nesses cinco anos ouvi muitas histórias difíceis. Todo santo dia ouço histórias de tentativa de suicídio. Tornou-se bem comum que estudantes me mostrem suas cicatrizes de automutilação. Geralmente eles têm entre 12 e 18 anos.”

 Avaliar o clima da escola e melhorar a conectividade entre equipe escolar, alunos e família, promovendo reuniões periódicas.

 Reforçar as parcerias família-escola, mantendo contato constante com atendimentos, telefonemas, e-mail e informativos.

 Ajudar as famílias a entender as necessidades de aprendizagem e saúde mental de seus filhos com palestras sobre temáticas específicas.

Fonte: Departamento de Psicologia do Colégio Energia

 Avaliar as necessidades emocionais e comportamentais de estudantes por meio de atendimentos individuais.

 Promover a solução de problemas e conflitos com mediação de grupos, realizando dinâmicas para melhorar o relacionamento entre os alunos.

 Comunicar-se de forma eficaz com os pais sobre o progresso do aluno e orientá-los acerca de questões educacionais mediante atendimentos em conjunto com os professores.

 Prevenir o bullying e outras formas de violência por meio de realização de rodas de conversas sobre assuntos específicos.

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