HERANÇA FÉRTIL

O lageano Glauco Olinger foi responsável pelo desenvolvimento da agricultura catarinense a partir da década de 1950. Hoje, aos 94 anos, mantém olhar atento para a sustentabilidade

G

lauco Olinger tinha 48 anos e era secretário de Estado da Agricultura de Santa Catarina quando desembarcou em Brasília com uma caixa de maçãs. Separou duas, colocou nos bolsos do paletó e bateu à porta do gabinete do então ministro da Fazenda Antônio Delfim Netto. Sem demora, Glauco, que já conhecia o ministro, lhe pediu que provasse uma maçã. Delfim aceitou, lustrou a fruta na camisa de manga curta que vestia e deu uma dentada.

– Deliciosa, Glauco! – elogiou.

– Agora, quero que o senhor adivinhe de onde veio esta maçã – desafiou o secretário.

Delfim chutou a Califórnia, depois o Chile e por fim a Argentina – naquela época, maçã, no Brasil, vinha sempre de fora.

– Negativo. Esta maçã que o senhor achou deliciosa vem de Santa Catarina e eu vim aqui lhe pedir dinheiro para começarmos um projeto de fruticultura.

Nascia a terra da maçã. A linha de crédito que saiu daquela reunião com o ministro, em 1970, tornou possível a implantação de um projeto de fruticultura que fez o Estado passar de importador a exportador da fruta. Além do dinheiro, Glauco trouxe os japoneses que ensinaram o cultivo.

Hoje o Estado é o maior produtor de maçã do país. É também o líder em produção de carne suína, o segundo maior de frango e um dos cinco maiores produtores de leite. As grandes cooperativas e algumas das mais importantes indústrias de alimentos – como a Sadia e a Perdigão – não surgiram aqui por acaso. Por trás de todos esses superlativos está Glauco, o engenheiro agrônomo que reinventou a agropecuária em Santa Catarina.

Aos 94 anos, garante que nunca tirou férias. Com tanto tempo de vida e tão pouco de descanso, é dono de um currículo comprido. Foi secretário de Estado da Agricultura e da Educação, presidente da Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater) – predecessora da Embrapa –, fundador do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pró-reitor da UFSC e fundador e presidente da Associação de Crédito e Assistência Rural do Estado (Acaresc), que transformou-se, depois, na Epagri. Como consultor da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), participou de projetos de extensão rural em Angola e Cabo Verde. No Paraná, assentou 3,5 mil famílias em um programa de reforma agrária. E isso é só parte da lista.

Tornou-se inevitavelmente uma unanimidade. De ex-funcionários a ex-ministros, não há quem não despeje adjetivos bondosos sobre ele.

– Foi certamente um dos homens que mais serviram a este país, é de uma competência absurda – elogiou Delfim em uma conversa por telefone, em uma manhã de dezembro. Em seguida, ainda acrescentou em tom de brincadeira que o apetite foi fundamental para aprovar a linha de crédito para a maçã catarinense.

– Sou um grande comilão – disse.

Ainda assim, Glauco questionou a ideia de a reportagem fazer um perfil seu. Na segunda vez que recebeu esta repórter no seu apartamento na avenida Beira-Mar, em Florianópolis, havia preparado uma série de manuscritos com assuntos que considera mais importantes e urgentes do que falar de si mesmo. Entre eles, a exportação de gado vivo – “um absurdo, temos que exportar bife, com maior valor agregado” – e um comentário da ex-primeira-dama da Capital sobre vagas de estacionamento no Jardim Botânico – “não posso conceber que queiram tirar um quadrado de grama para colocar um automóvel”.

Miúdo, agitado, de camisa jeans, calça Levi’s, tênis e uma caneta no bolso para qualquer eventualidade, não parava de falar mesmo quando posava para fotos. Glauco é um jovem que quer mudar o mundo. Sua trajetória até aqui prova que é capaz disso.

Das coisas que mais me arrependo estão os bois que abati com um lançaço na nuca, na charqueada do pai, em capoeiras, quando estudante em férias, para ganhar algum dinheiro e por prazer, talvez o mesmo que sentem esses malucos que arriscam a vida em acrobacias perigosas por pura adrenalina. estão, também, os pinheiros que derrubei no paraná, para dar espaço às construções que podiam ocupar outros lugares. hoje, me choca ver a poda radical de uma árvore.

o Estado é o maior produtor de maçã do país. É também o líder em produção de carne suína, o segundo maior de frango e um dos cinco maiores de leite. As grandes cooperativas e algumas das mais importantes indústrias de alimentos – como a Sadia e a Perdigão – não surgiram aqui por acaso. Por trás de todos esses superlativos está Glauco, o engenheiro agrônomo que reinventou a agropecuária em Santa Catarina

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história da revolução agrícola catarinense começa com Nelson Aldrich Rockefeller. Em 1948, o bilionário norte-americano, herdeiro da Standard Oil, visitou mais uma vez o Brasil. Seu destino era Minas Gerais, onde seria recebido pelo governador Milton Campos.

O interesse de Rockefeller pelo Brasil tinha várias motivações. Por um lado, a educação batista o fazia ser, em certo nível, um filantropo, coisa que a família colocava em prática por meio de programas não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos. Por outro lado, o cargo que ocupou no governo Roosevelt, de chefe do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs, fez dele um agente da política da boa vizinhança. Nelson esteve por trás de diversos projetos importantes no país, como o Museu de Arte de São Paulo (Masp).

A maior influência, contudo, foi na agricultura. No livro O Amigo Americano, Antonio Pedro Tota afirma que Rockefeller chegou a Minas com a ideia de que talvez houvesse uma possibilidade de repetir na região o êxito da revolução agrícola norte-americana iniciada no século 19.

Do encontro entre Nelson Rockefeller e Milton Campos nasceu a Associação de Crédito Rural (Acar). Inspirada em um programa do governo dos Estados Unidos, a Acar oferecia crédito barato a pequenos proprietários aliado a auxílio técnico. Também incluía um trabalho de ensino de noções de higiene e alimentação. Com o bom resultado da Acar, anos depois o presidente Juscelino Kubitschek, outro mineiro, replicou o modelo para mais Estados. A versão catarinense da ideia trazida por Rockefeller surgiu em 1956 com o nome Acaresc. À sua frente estava Glauco Olinger.

O trabalho de Olinger e, por consequência, da Acaresc, tirou a agropecuária do Estado do atraso. Até então, o aumento de produção só se dava pela expansão da área plantada, não da produtividade. Em parte, isso se devia a uma política paternalista do governo brasileiro: dava sementes, emprestava maquinário, mas não ensinava como aproveitar os insumos.

A Acaresc levava o conhecimento das pesquisas ao homem do campo, a chamada extensão rural. Para divulgar, lançavam mão de criatividade:

– Nossos veterinários faziam um programa de rádio falando sobre uma técnica específica e avisavam que estariam em tal município no sábado, por exemplo, para ensinar, na prática, como funcionava. Isso atraía a atenção das pessoas – relembra João Dela Ore, que foi diretor administrativo da entidade.

Com essa presença forte no Estado, pouco a pouco a instituição ganhou o respeito dos agricultores. Os extensionistas se tornavam referência por onde passavam. Uma amostra disso é o livro de memórias do agricultor Osvino Laske, no qual a associação mereceu um capítulo. O autor escreve: “Quando soube que o dia 6 de agosto de 1961 seria a data da inauguração do escritório da Acaresc em Piratuba, (Osvino) não teve dúvidas em comparecer, indo a pé até a cidade”.

Para que toda essa estrutura funcionasse – a instituição chegou a ter 11 mil servidores – entrava em campo a disciplina rígida de Glauco. Nem sempre ele é lembrado por ter tido um tom suave com os funcionários, mas essa dureza é apontada como necessária para que as coisas caminhassem dentro dos eixos. Adolfo Nunes Corrêa, ex-funcionário da Acaresc e ex-presidente da Epagri, conta que apesar de ser muito firme e afeito à disciplina rígida, o chefe sabia ouvir e tomava decisões em conjunto.

Glauco esteve à frente de 19 dos 35 anos de existência da Acaresc. Foi o responsável por plantar as sementes do que viriam a ser os grandes trunfos da agricultura e da pecuária estaduais. O celebrado cooperativismo do Estado, apontado recentemente pela revista The Economist como um dos pilares da força econômica de SC, não passava de um punhado de iniciativas pontuais antes da Acaresc. Foi por meio da disseminação da cultura de cooperativas, aliada à importação de técnicas, que a instituição fez surgir a agroindústria catarinense.

– A Acaresc conversava diretamente com o empresário e com o produtor, numa troca saudável de experiências e tecnologias. Um trabalho em conjunto que muito fortaleceu o agronegócio no Estado – conta Victor Fontana, sobrinho do fundador da Sadia e ex-secretário de Agricultura.

Segundo Glauco, o primeiro projeto de carne de frango embalada no Estado foi desenvolvido pela instituição estadual e depois comprado pela Sadia.

Embora colecionasse conquistas, a Acaresc acabou em 1991, em uma reestruturação do governo. Alguns apontam o corte de custos como a razão, outros, a falta de visão do governo estadual à época. Glauco é mais incisivo: a Acaresc acabou por vingança pessoal de Vilson Kleinübing. Quando ainda era senador, Kleinübing teria pedido que funcionários da Acaresc ajudassem a fazer propaganda política sua, mas esbarrou na forte cultura apolítica criada pelo próprio Glauco. Havia um código de ética muito claro: lá não se falava em partido político nem em religião, deveria ser um órgão eminentemente técnico. Por ressentimento, acusa o agrônomo, Kleinübing acabou com o órgão no seu primeiro ano de mandato como governador. O procurador-geral à época, Nelson Serpa, alega que foi uma reestruturação necessária para reduzir os gastos.

– Nesse período a folha de pagamentos estava atrasada, havia 13º para pagar ainda em março, inflação elevadíssima e baixa receita. Então foram feitas várias alterações estruturais no Estado, foi um processo de saneamento de finanças. Foi uma decisão acertada a meu ver. Hoje, a Epagri – órgão que substituiu a Acaresc – presta um serviço de excelência – explica Serpa.

E faz questão de emendar:

– A Epagri e o Estado devem muito ao Glauco.

O trabalho de Olinger e, por consequência, da Acaresc, tirou a agropecuária catarinense do atraso. Até então, o aumento de produção só se dava pela expansão da área plantada, não da produtividade. Em parte, isso se devia a uma política paternalista do governo brasileiro: dava sementes, emprestava maquinário, mas não ensinava como aproveitar os insumos

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pesar da ojeriza à política partidária, Glauco foi parar no meio de uma disputa que quase o levou a ser governador do Estado. Não que ele tenha feito esforço para isso. Era 1975 quando, aos 53 anos, foi chamado pelo comandante do 5o Distrito Naval de SC, Amaral Saboia, para um almoço. Sem jamais ter tido contato com o comandante, estranhou o convite, mas compareceu. Lá, em meio a garfadas, ouviu que era o candidato das Forças Armadas para suceder Colombo Salles no governo do Estado.

– Respondi que havia uma pessoa muito mais competente que eu para governar e que inclusive era meu parente, primo do meu pai. Ele se chamava Antonio Carlos Konder Reis – conta Olinger.

Não teve jeito. Os militares argumentaram que não queriam um político no governo, mas um técnico. Glauco saiu dali e foi encontrar com Konder Reis em um quarto modesto no hotel Royal, no centro de Florianópolis, onde se hospedava. Disse ao amigo que rezaria três ave-marias para que não se tornasse governador.

– Konder Reis me respondeu: eu rezo um rosário para que seja você, mas quero te adiantar que serei eu o governador.

Glauco, que sempre transitou com tranquilidade por todos os partidos e esferas, foi ter então com Aderbal Ramos da Silva, do PSD, partido contrário ao de Konder Reis. Soube ali que o próprio PSD havia se aliado à UDN para derrubar Colombo Salles. O candidato do PSD era também Konder Reis.

Em paralelo, Colombo era informado da escolha das Forças Armadas, opção que endossou. Mas passou a receber uma romaria de candidatos ao governo.

– Ele falava para todos: “vou colocar seu nome na lista que eu levarei ao Geisel”. E garantiu que meu nome ia encabeçar – lembra Olinger.

Glauco acompanhou Colombo até Brasília para a audiência com o presidente Ernesto Geisel na qual foi levada a lista, então com cinco nomes selecionados. No entanto, na hora de responder a pergunta do presidente sobre qual candidato era de sua preferência, Colombo abriu mão de optar por Glauco, simplesmente se absteve de fazer indicação. Com isso, reduziu as chances do seu secretário da Agricultura. Segundo Glauco, o deputado federal Joaquim Ramos, do PSD, também diminuiu suas chances ao soprar para o general Golbery do Couto e Silva, com enorme influência sobre a presidência, que o candidato deveria ser Konder Reis. No dia da eleição, o emissário de Geisel, Petrônio Portella, cravou: o candidato do governo federal seria mesmo Konder Reis. Glauco teve alguns votos, mas, como se sabe, perdeu a disputa.

– Confesso que senti um grande alívio.

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trajetória de Glauco foi longa até chegar aos altos cargos do Executivo. Nascido em Lages em 1922, cresceu em uma fazenda. O pai, também de Lages, tinha poucos anos de escolaridade, mas era bom negociador, o que lhe propiciava uma vida abastada. A mãe, natural de São José, havia completado o ensino médio – um grande feito para a época –, lia Émile Zola e gostava de teatro. Foi a principal incentivadora da sua educação, diz. Apesar de pais com boa situação financeira, o primeiro ano de vida de Glauco foi em um rancho rústico no sítio.

– Acredito que meu pai queria testar minha mãe, ver se ela aguentava essa vida de fazenda.

Hoje ecologista, cresceu matando passarinhos e derrubando pinheiros de araucária, dois itens da sua lista de arrependimentos. Ainda menino, foi tropeiro junto com o pai. Ia a cavalo de Lages até o litoral, viagem que hoje leva horas de carro e à época durava dias.

O destino quis que olhasse com carinho para a terra, mesmo quando deixou o campo. A família se mudou para Florianópolis e ele passou a estudar no tradicional colégio católico Catarinense. Um dos professores, o padre naturalista Alvino Bertholdo Braun, despertou sua curiosidade para as plantas.

Mais tarde, um colega que tinha interesse em cursar Agronomia na Escola Superior de Viçosa (MG), o incentivou a também tentar o exame admissional. Glauco, que havia repetido o ano no colégio, conseguiu ser aprovado. O amigo, um dos melhores alunos do Catarinense, não passou.

O pai chegou a querer que o filho abandonasse os estudos para se dedicar aos negócios. A mãe o incentivou a prosseguir, mas houve uma outra motivação importante: tinha uma namorada em Minas, Maria. É com ela que é casado há 74 anos e teve duas filhas. Uma morreu de sarampo aos quatro anos. A primogênita, Gláucia, é advogada e artista plástica e deu a ele duas netas.

– O que posso falar do meu pai? Foi um excelente pai e um excelente avô. É hiperativo, gosta de gente jovem, gosta de esportes e sempre foi muito honesto – resume Gláucia.

A honestidade de Glauco foi posta à prova várias vezes, uma delas logo no começo da carreira. No início da década de 1950, foi indicado por Konder Reis – então chefe de gabinete do ministro da Agricultura – para administrar a Colônia Agrícola Nacional General Osório (Cango), no sudoeste do Paraná. Como as terras para assentamento eram atraentes para uma companhia da região, a empresa ofereceu ao agrônomo um cargo fantasma com um salário alto. Era uma tentativa de convencê-lo a fazer vista grossa para os avanços da empresa sobre as terras federais.

– Era bem mais do que eu ganhava como administrador, e eu já ganhava bem. Disseram que eu podia manter o cargo de administrador. Não quis – lembra o agrônomo.

Em 1938, Getúlio Vargas criou uma política de colonização e avanço das fronteiras agrícolas do país, a Marcha para Oeste. A colônia paranaense, criada em 1943, foi resultado disso. Sob a administração de Olinger, foram assentados 3,5 mil colonos, a maioria do Rio Grande do Sul.

Hoje a preocupação dele já não é levar pessoas ao campo, mas mantê-las. Diz que para aplacar o êxodo rural é preciso incentivar a permanência, seja por meio da isenção de impostos ou de outra forma. Também é necessário fazer a agricultura ficar atrativa para os jovens, com acesso aos mesmos serviços que são encontrados nas cidades, como boas escolas e hospitais.

A maior fonte de desassossego, contudo, é a segurança alimentar mundial. Na lista de apontamentos que fez, explica que em 2050 seremos 9,3 bilhões de habitantes, o que demanda um aumento entre 60% e 70% da produção de comida, números da FAO. A previsão é que o Brasil atenderá de 30% a 40% do consumo futuro. Para isso, será necessário revitalizar 70 milhões de hectares, hoje degradados, e explorar o potencial existente sem prejuízo das florestas.

Ao final das anotações, escreve uma frase atribuída a um líder indígena norte-americano: “Parece que tão somente depois que for poluído o último mar, o último lago, a última lagoa, envenenado o último rio e capturado o último peixe, exaurida a última mina de carvão, esgotado o último poço de petróleo, degradado o último traço de terra e poluído o ar com o lixo do supérfluo é que então o predador humano se dará conta de que dinheiro não se come”. Aos quase cem anos de vida, Glauco Olinger ainda tem muito a dizer.

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