ALÉM DAS GRADES

Com uma atuação próxima à população carcerária catarinense, juiz João Marcos Buch defende medidas alternativas para a ressocialização de detentos

A

temperatura ultrapassava os 32°C na manhã de 17 de janeiro quando o chefe da segurança do presídio regional de Joinville anunciou:

– Ô, pessoal, todo mundo aqui no pátio porque o doutor João Marcos quer conversar com vocês.

Não demorou dois minutos para que o amontoado de mais ou menos cem presos de uma das quatro alas da unidade – nem a direção sabia o número exato de pessoas no pavilhão naquele dia – parasse o que estava fazendo. Enquanto uma parte terminava de torcer os lençóis recém-lavados, outra deixava a penumbra das celas. Não fossem as grades e a condição do local, a cena lembraria a abertura de um show, com detentos se aglomerando para ocupar o lugar mais próximo do palco. Neste caso, um corredor estreito com colchões velhos e varais de roupas. No espaço, o juiz da execução penal de Joinville, João Marcos Buch, parecia não se incomodar com a sensação de calor debaixo do terno escuro da grife italiana Ermenegildo Zegna. Com bermudas de moletom cinza e sem camisa, o grupo ouvia atentamente:

– Fazia tempo que eu não vinha aqui. É difícil, como já expliquei, pois tenho que ir a muitos pavilhões. Eu vou distribuir essas folhas, que devem ter o nome do detento, da mãe [em caso de presos homônimos] e o que vocês querem. Tudo o que precisarem, transferência para a penitenciária, saúde, família, coloquem no papel. Enquanto preenchem, eu vou tirar três de vocês para a gente conversar coisas gerais na direção: vestuário, alimentação, problema de visita, falta de colchão. No final, até quarta-feira, mando um resumo do que tratamos. Vocês podem ficar com a caneta.

Com 84 quilos, 1,82 metro de altura e uma cicatriz do lado direito do rosto que sai da boca até o início da orelha, dificilmente quem já foi preso não reconhece o juiz. Nas visitas ao presídio e à penitenciária de Joinville, agenda que mantém regularmente pelo menos duas vezes por mês, ele é interrompido a cada cinco minutos com um “Bom dia, doutor, tenho um bilhete para o senhor”. Na folha, os detentos pedem o básico, na maioria das vezes informações sobre processos. Todas as cartas são guardadas, depois avaliadas, e os pedidos atendidos ou não. Vai depender do que é solicitado.

O método de exigir que o apenado escreva pode não ter sido criado pelo magistrado, mas é difícil encontrar uma proposta parecida, afirma o desembargador Ricardo José Roesler, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. O comum é o juiz penal visitar as cadeias com seus assessores e anotar os pedidos, procedimento considerado por Buch desgastante e que não atende a todos. Escrevendo, o presidiário tem mais tempo para pensar em sua solicitação.

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ascido em Porto União, no Norte do Estado, João Marcos Buch virou juiz aos 23 anos. De lá para cá, foram mais de duas décadas de sentenças, parte delas marcada por fortes opiniões e interpretações consideradas tabus pela Justiça. A postura gera críticas de colegas do Judiciário, repulsa de membros das forças de segurança e o coloca como um dos magistrados mais polêmicos de Santa Catarina. E não é por menos. Buch já mandou prender diretor de presídio, condenou políticos do primeiro escalão, chamou secretários de Estado de incompetentes e não poupou frases de efeito, como quando comparou o Presídio Central de Porto Alegre a um campo de concentração.

Na outra ponta, há uma lista de fãs, principalmente detentos e familiares de presos, acadêmicos e outros magistrados que o elogiam principalmente pelas decisões que protegem os direitos fundamentais. Em 2010, por exemplo, mandou soltar um réu acusado de tráfico de drogas por falta de viatura que o transportasse do presídio para o fórum. Na sentença, criticou a estrutura do Estado: “Se não existe vontade política para melhorar a situação, então resta apenas à Justiça garantir os direitos dos detentos de forma coercitiva”.

Condenada a nove anos de prisão por associação ao tráfico de drogas, Maria, 32 anos, conseguiu o direito de cumprir o restante da pena em casa no ano passado após escrever uma carta a Buch. Na época, explicou que sentia falta dos três filhos, de quatro, 12 e 15 anos, e que os maiores apresentavam comportamento agressivo, enquanto o menor chorava mais do que o normal. Após um relatório do assistente social do fórum e do Conselho Tutelar, ela recebeu o benefício. Só pode sair do apartamento onde mora para assuntos que envolvam a educação ou a saúde das crianças.

– As pessoas dizem que o Brasil é impune. Mas não existe impunidade: o encarceramento está aumentando. Pelo menos 630 mil pessoas presas, são de 200 mil e 300 mil mandados de prisão expedidos em aberto (foragidos). Então, a gente pode ter 1 milhão de presidiários logo. E a violência não diminui. Pelo contrário, esse sistema de violência prisional está se refletindo aqui fora. Um dia as pessoas saem da cadeia. O caminho é criar consciência, trabalhar alternativas penais. Vamos responsabilizar as pessoas com outros métodos: liberdade assistida, acompanhamento terapêutico e serviço à comunidade – defendeu Buch um dia depois do massacre de 26 presos na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte.

Naquela manhã de janeiro, ele se mostrava preocupado com as informações que chegavam sobre rebeliões Brasil afora. Como já estava no complexo prisional de Joinville, aproveitou para conversar com líderes de facções criminosas que cumpriam pena em uma ala da penitenciária da cidade, considerada modelo e que abriga 631 presos na estrutura com capacidade para 670 pessoas – diferente do vizinho presídio, que está com 700 homens em um espaço para 506. Ele se gaba pela unidade ainda não estar superlotada. “É uma briga sempre”.

Na sala da diretoria, após um café expresso com grãos moídos na hora, dois detentos com uniformes laranjas chegam acorrentados pelas mãos e pés. Pertencem a uma organização ameaçada pela rival. Antes de começar a conversar, o juiz pede para tirarem as algemas das mãos. “Não há necessidade”, diz, deixando claro que está ali para saber como está a situação na unidade após os conflitos em outros Estados. “Vossa excelência, a gente só quer cumprir a nossa pena de boa, sem confusão”, diz um deles.

Para Buch, há uma só saída para acabar com a violência. Redução de desigualdade, que começa pela oferta de educação e mais oportunidades.

– Na época das Olimpíadas, quando a imprensa internacional falava da pobreza do Rio de Janeiro, as pessoas se revoltaram: aqui não é só favela. Mas é algo que a gente tem que se envergonhar mesmo. Temos que nos envergonhar do menino que nasce na favela de São Conrado, que fica olhando do outro lado da rua um hotel cinco estrelas com pessoas ali vivendo nababescamente e ele sem a menor possibilidade de sonhar em um dia ter aquela vida. O que vai acontecer com ele? Vai ser captado por facções, vai começar a traficar, vai matar e morrer com 25 anos. Então, é por aí: você tem que antecipar isso e ofertar oportunidades para essa juventude saber que ela pode ser feliz pelos caminhos lícitos – diz.

Embora seja categórico ao falar que todas as decisões estão na Constituição, Buch é visto como alguém que exagera. Em entrevista ao Diário Catarinense no ano passado, a desembargadora aposentada Marli Mosimann Vargas afirmou que ele é o responsável pelo aumento da criminalidade – em 2016 o município mais populoso de SC registrou número recorde de assassinatos.

– Por que Joinville está do jeito que está? É a cidade mais criminosa do Estado. Porque temos um juiz da execução penal que solta todo mundo. Para se ter uma ideia, o promotor fez 400 recursos no último mês contra ele. É aquele que passou uma circular para os presos que diz que, quem quiser, fica em casa.

Questionado sobre a crítica, ele diz que a postura de Marli é excepcional. Talvez, ameniza, outros desembargadores se deixem levar por “falatórios”, mas que muitos o respeitam mesmo não concordando com suas decisões.

Para outro magistrado, que falou sob anonimato, as sentenças que não diferenciam um preso altamente perigoso, por exemplo, de um “ladrão de galinhas”, aqueles que roubam em troca de drogas, com menos periculosidade, preocupam o Judiciário. Quando sai rapidamente da cadeia, o preso volta a praticar delitos graves. Ponto de vista questionado pelo desembargador Roesler, que acompanha Buch desde o início da carreira.

– Ele sempre demonstrou ser um juiz vocacionado. O que eu quero dizer com isso: comprometido com as causas da Justiça, muito participativo, ético. Um juiz que excede no seu trabalho. É muito cômodo você ficar no gabinete, julgar esses processos e terminar o dia com a consciência tranquila – elogia.

A cultura e a arte podem, assim como a educação, romper barreiras. Os detentos que participam de atividades culturais conseguem  contextualizar melhor a própria vida, observar melhor o mundo e a si mesmos. Da mesma forma, a arte produzida por um detento faz com que olhem para o preso de outra maneira.

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ilho de auditor da Fazenda e de uma dona de casa, Buch é o mais novo de seis irmãos (quatro mulheres e dois homens). Nenhum é advogado. Enquanto os livros dos pais influenciaram a maioria a seguir os estudos, para o juiz foi incentivo para que virasse escritor. Hoje, aos 45 anos, não consegue passar uma semana sem escrever sobre um episódio do cotidiano. Um flanelinha pedindo dinheiro é o bastante para uma reflexão. Parte desses textos foi publicada em seus livros de crônicas Relatos – Vivências, Diário de bordo de um juiz das causas humanas, Contos tirados de mim - A literatura do cárcere e Retroceder Jamais. Antes, se aventurou na ficção Encontre-me num café em Paris, romance que nasceu em um dos locais mais visitados por ele nas férias. A paixão pela liberdade dos franceses aparece em seu escritório, com imagem da Cidade Luz nas paredes.

Fã de Gabriel García Marquez, Graciliano Ramos, Luiz Fernando Verissimo, Chico Buarque, Jô Soares e José Saramago, ele confessa que tem uma “inveja branca” pelo estilo de Hemingway. Mas foi Jorge Amado, em os Subterrâneos da Liberdade, que o despertou para os direitos humanos. A história narra a conturbada vida social dos brasileiros na época de Getúlio Vargas, incluindo os socialistas. Devorou os volumes rapidamente.

O gosto pelos livros fez com que Buch apostasse em projetos de literatura, música e teatro na penitenciária de Joinville. Em 2013, propôs a redução de três dias de penas para quem lesse por 20 dias. Para ganhar o benefício, no entanto, é preciso escrever um resumo da obra.

– A cultura e a arte podem, assim como a educação, romper barreiras. Os detentos que participam de atividades culturais conseguem contextualizar melhor a própria vida, observar melhor o mundo e a si mesmos. E isso faz com que busquem a felicidade por caminhos menos tormentosos. Da mesma forma, a arte produzida por um detento atinge as pessoas do lado de fora e faz com que olhem para a prisão e para o preso de outra maneira – diz.

Das letras às leis, a atuação de Buch é ampla. A política, porém, ainda não está entre as atividades do magistrado. Não é por falta de convites. Quando fala no assunto, esboça um sorriso largo. Com o discurso bem alinhado e fala precisa, é um nome atraente para os partidos, já que transita em vários segmentos, da cadeia à associação empresarial. Mas garante que uma candidatura nunca lhe passou pela cabeça. O seu campo de batalha, diz, é o Judiciário. A luta pelos direitos humanos, no entanto, faz com que seja mais visto entre os simpatizantes da esquerda. A bandeira lhe rende críticas:

– Quanto aos que dizem “está com pena, leva para casa”, creio que para com estes estamos em falta. Estamos em falta em transmitir o fundamento histórico dos direitos humanos, em falta em transmitir afeto e sensibilidade para mostrar que a ética e alteridade é o único caminho para um mundo não violento. Estamos em falta em mostrar que respeitar a condição humana não é passar a mão na cabeça, mas sim olhar nosso semelhante com a humanidade que temos e que todos têm.

À esquerda, Buch com o ex-ministro Joaquim Barbosa em visita ao Presídio Central de Porto Alegre.
À direita, com o irmão José Alceu (E) durante a infância em Porto União.

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epois de deixar o complexo prisional, Buch dirigia seu Audi A5 por Joinville. No banco traseiro, um juiz substituto e um assessor jurídico acompanhavam a viagem. O repórter, que ocupava a carona dianteira, pergunta a ele por que o jornal escolheu ele para o perfil, e não outro magistrado. Sem pensar muito, diz: “Porque eu exponho, escrevo, coloco artigos em jornais e vou para a TV emitir opinião”.

E isso é verdade, doa a quem doer. Com uma fala imponente, sem deixar espaço para contestação, ele não deixa passar a oportunidade de criticar o sistema prisional catarinense e a falta de garantias à massa carcerária. Na semana passada, ameaçou interditar o presídio de Joinville pelas condições precárias. Desde que assumiu a execução penal, teve conversas calorosas com a secretária de Justiça e Cidadania, Ada de Luca. Ambos travaram uma guerra na mídia.

– Eu respeito o cargo que ela ocupa, ela tem essa legitimidade porque é a chefe maior da secretaria. É uma autoridade e deve ser respeitada, mas isso não me tira a opinião de que ela não tem capacidade técnica de estar onde está. Ela não compreende o sistema. Ela me respeita e eu a respeito, mas sabe que eu não concordo com a postura dela.

Em nota, Ada rebate a crítica alegando que está  preparada para o cargo e que trouxe servidores de carreira com longa experiência para integrar a administração da secretaria.

– Acreditamos, dentro do mesmo respeito, que não se pode pessoalizar ações de nossa gestão, que consideramos colaborativa e participativa com dezenas de técnicos experientes, assim como com ações de aproximação com o Judiciário, Legislativo, Ministério Público, Defensoria Pública e demais forças da sociedade.

Um dos servidores da segurança pública condenados por Buch foi o vereador joinvilense Richard Harisson. Em 2009, ainda diretor da penitenciária de Joinville, o peemedebista recebeu a pena de dois anos e quatro meses de prisão acusado de torturar detentos. A sentença foi revertida no Tribunal de Justiça, mas os dois por muito tempo tiveram uma relação, no mínimo, protocolar. Hoje, porém, não há mágoas, garantem ambos. Até trabalharam juntos com projetos no complexo prisional da cidade.

– É um juiz polêmico que traz à tona assuntos que permaneciam no esquecimento. O sistema prisional, a partir do trabalho do Buch, teve que se aprimorar. Às vezes a pessoa fica em uma situação confortável quando não tem alguém como ele. Quando chegou na vara criminal foi uma situação complicada.

Nas constantes visitas que faz às cadeias, o juiz diz que nunca se sentiu ameaçado, mesmo na frente de membros de facções criminosas ou réus que foram condenados por ele. É comum escrever sobre algum ex-presidiário que o reconheceu na rua em diversas situações. Sempre agradecem. Porém, quando julgava casos da administração pública, ou mesmo na execução penal quando tratou de apurações de sindicância de crimes praticados por agentes públicos, foi ameaçado. Em dois casos precisou andar com segurança 24 horas por dia.

– Eu já fui seguido, já houve interceptações telefônicas que citaram o meu nome, pessoas vindo trazer recados: olhe, pode acontecer tal coisa.

É um juiz polêmico que traz à tona assuntos que permaneciam no esquecimento. O sistema prisional, a partir do trabalho do Buch, teve que se aprimorar. Às vezes a pessoa fica em uma situação confortável quando não tem alguém como ele. Quando chegou na vara criminal foi uma situação complicada.

 

Richard Harisson,

Vereador condenado por Buch

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a infância, Buch não carrega só lembranças boas. Apesar de fazer parte de uma família de classe média que nunca deixou faltar nada em casa. É dessa época uma de suas marcas mais visíveis e que o aproxima da realidade dos detentos: a cicatriz no rosto. A marca contrasta com a vaidade que aparenta ter pelo porte atlético. Aos 10 anos, levou um tiro acidental de espingarda à queima roupa. Quem puxou o gatilho foi o irmão. Como era comum no interior, os homens caçavam e sempre deixavam as armas descarregadas pela casa. Mas naquele dia não foi assim.

– As crianças gostam de desafios e, enquanto adultos jogavam baralho, um dos colegas desafiou o outro a atirar por brincadeira. Buch estava sentado de frente para a arma e foi alvejado no rosto. Um dos chumbos acabou rasgando a pele da face. Outras crianças foram atingidas, mas ele foi o único que teve danos mais significativos – conta o amigo Fábio Stork, 49 anos, com quem o juiz mantém amizade até hoje.

Apesar de não lembrar muito bem do acidente, Buch diz que todas as armas foram queimadas. Questionado sobre fazer cirurgia plástica, diz que só lembra da cicatriz quando perguntam. Geralmente crianças são as mais curiosas.

A pergunta sobre a marca no rosto foi uma das últimas naquele 17 de janeiro. Longe do calor do presídio, no ar-condicionado de sua sala no fórum de Joinville, o juiz já estava impaciente com o repórter que ocupou grande parte do seu dia de trabalho. Não via a hora de terminar logo a entrevista e partir para os despachos, comuns na rotina diária das 8h às 19h. “Você falou que era a última pergunta”, esboça um sorriso seguido de um movimento de impaciência na cadeira. Mas ainda havia mais alguns questionamentos. Um deles:

– O senhor já conheceu algum jovem que mais tarde encontrou no presídio?

– Tinha um rapaz em um semáforo no Centro. Ele sempre parava para vender umas coisinhas. Eu comprava e ele me reconhecia. Um menino de uns 15 anos. Era muito esperto. Mostrou-me o boletim e tinha notas boas. Uma vez falei: fulano, vai no Fórum que eu vou procurar te encaminhar para um estágio. E ele nunca apareceu. Anos depois, entrei no presídio e, nessas visitas, comecei a conversar com os detentos. Tinha um rapaz mais atrás. Eu disse: você não quer falar nada? Ele se aproximou com a cabeça baixa, estava envergonhado. Levantou a cabeça e eu o reconheci. Falei: o que você está fazendo aqui? Ele respondeu: é muito tarde para mim.

Da posição ereta, sempre imponente, Buch se desmonta e, com a voz embargada, conclui:

– Eu me emociono quando falo isso. Era tarde para ele. Cometeu um latrocínio.

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