Na semana da Consciência Negra, mostramos como os descendentes de Vidal Martins, homem que dá nome ao primeiro quilombo reconhecido em Florianópolis, guardam parte da memória e da resistência afro em Santa Catarina

menina com a boneca no colo espera na porta. Ali, no número 9.543 da rodovia João Gualberto Soares, é a sede da Associação Remanescente do Quilombo Vidal Martins. A comunidade é a do Porto, bairro Rio Vermelho, leste da Ilha de Santa Catarina, Florianópolis. O acesso até o lugar onde Elen, seis anos, aguarda, se faz por um terreno de chão empedrado. A criança se antecipa às apresentações e boas-vindas:

 

— Esta é minha filha Índia. Sabe por que desse nome? Era o nome da mulher do Vidal Martins.

 

Elen está no primeiro ano. Ainda não aprendeu que índia não é um nome próprio, mas a etnia da mulher que casou com o tataravô de Helena, sua mãe e primeira dona da boneca. Mas certamente não embala apenas um brinquedo. Acalenta sonhos. Ao se identificar como descendente de Vidal Martins, abraça a própria ancestralidade.

 

Assim como as 90 pessoas que vivem no local. Um lugar onde as casas mesclam cimento e madeira, com espaço pequeno, obrigando algumas das 26 famílias a construir em dois andares. Imóveis ainda inacabados, com paredes à espera de pintura e com goteiras no teto.

 

Realidade em desacordo com o senso comum, aquele aprendido nos livros de História do Brasil e narrativas oficiais, de que quilombo é um lugar de negros rebelados, fugitivos, escondidos no mato. Situação real do que seja um território remanescente de quilombo: grupos étnicos – predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana – que se autodefinem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias.

 

No Vidal Martins é assim. A renda das pessoas vem do trabalho e das aposentadorias, algumas por invalidez, devido à lesão por esforço repetitivo. Outros em decorrência de força excessiva, como nos tempos de pescarias em mar aberto. As atividades mais comuns são serviços gerais e jardinagem. Também ajuda o talento dos moradores em trabalhos manuais: renda, desenho, artesanato, tranças no cabelo, música. Alguns desses produtos e saberes são levados para feiras e eventos. A escassez de terras inviabilizou a agricultura na comunidade.

A

Jucelia Oliveira entre as filhas Helena (E) e Schirlen, descendentes

de Vidal Martins

Eu digo para as pessoas, para a minha filha: a gente não é descendente de escravos. Somos filhos de um povo que foi ignorantemente escravizado. A escravidão no Brasil foi uma ignorância. Somos descendentes de reis e rainhas que vieram para o Brasil. O quilombo é uma homenagem a Vidal Martins, meu tataravô, de quem muito me orgulho pela resistência. Mas é verdade que sofremos muita discriminação. A nossa família era conhecida como favelinha, os nada.

 

Helena Vidal, 33 anos

Pá e colher de pedreiro substituem o som de enxadas e roçadeiras. O número de construções fechou os acessos para a lagoa. A canoa de pesca divide espaço com veí­culos. E esses, ainda que simples e velhos, com o canto estridente dos antigos carros de boi. Expostos, os fios de luz não deixam as pipas dos meninos ganhar os céus.

 

Sem espaço para brincar na rua, meninas como Elen se distraem dentro de casa com suas abayomi, bonecas feitas de tiras de pano. Aprendizado trazido dos navios negreiros. Na época, para acalentar e acalmar as crianças assustadas com a travessia, as mães rasgavam os vestidos e faziam as bonecas.

 

Jucelia Beatriz Oliveira, 57 anos, é bisneta de Vidal Martins. A matriarca da comunidade diz responder  muitas perguntas sobre o fato de ali não ser praticada religião de matriz africana. Para ela, isso tem a ver com o fato de seus ancestrais  terem pertencido a um representante da Igreja Católica. Hoje, a maioria das famílias da comunidade segue cultos evangélicos.

 

No começo, quando as sobrinhas Helena, 34, e Schirlen Vidal, 33, começaram a investigar sobre o passado dos Martins, o tio Odílio Izidro Vidal, 63 anos, achou que poderia vir mais uma frustração – sentimento gerado pela discriminação ao longo dos anos. Pescador aposentado por invalidez, Odílio fica nervoso quando fala do preconceito:

 

— As pessoas fugiam da gente simplesmente porque a gente era negro.

 

Enquanto isso, Elen acompanha as conversas dos mais velhos. Vez que outra, passa a mão na chuca na cabeça de Índia. A boneca subverte o estereótipo da “nega maluca”.  Elen tem outra boneca negra, que ganhou de presente de uma pessoa que foi aos Estados Unidos. Diz que também brincaria com bonecas brancas se tivesse alguma. Porém, tem uma dúvida:

 

— Será que as meninas brancas seriam mães das minhas bonecas negras?

ECOS DE VOZES

AFRICANAS

idal Martins nasceu negro e pobre em 3 de julho de 1845 nas terras do Rio Vermelho. Era filho de Joanna, crioula escrava, e Manoel Fonseca do Espírito Santo, crioulo liberto. Descendente de africanos arrancados de lugares como Angola, Cabinda, Congo, Guiné, Mina, Moçambique e que em meados do século 18 chegaram à Ilha de Santa Catarina. Processo de migração forçada que fez dispersar 12 milhões de pessoas através do Atlântico e mergulhá-las na escravidão nas Américas.

 

Síntese da tragédia que se abateu sobre a África, observada pelo doutor em História, Ubiratan Castro de Araújo (1948-2013): “Filho separado de pai quebrando as linhagens que identificavam as etnias e nações; filha separada da mãe destruindo as famílias que consolidavam as solidariedades grupais”.

 

Os pais de Vidal Martins trabalhavam para Antônio de Santa Pulcheira Mendes e Oliveira, o primeiro padre residente na paróquia de São João do Rio Vermelho. O pároco não estava sozinho ao praticar tal submissão: negros escravizados trabalhavam para ordens religiosas, seminários, conventos. Documentos provam que o religioso lhes deu sobrenome e lhes concedeu liberdade.

 

Vidal se casou com uma moça chamada Maria Rosa, descendente de índios, os primeiros a viver na região. Ela era costureira e o casal teve nove filhos. Um deles foi Boaventura Linhares Vidal, que morreu aos 95 anos no mesmo Rio Vermelho onde viveram os antepassados. Ele dizia aos descendentes que os senhores dos seus avós haviam deixado terras para que formassem um quilombo na região.

 

É graças ao relato dos habitantes mais velhos, como Boaventura, sobre as histórias que lhes foram contadas pelas antigas gerações, que a maioria dos quilombolas consegue reivindicar as terras. No caso de Vidal Martins, também contribuíram documentos obtidos de cartórios, igrejas e arquivos públicos. Pesquisas mostraram que os antepassados, mesmo libertos, permaneceram no território do Rio Vermelho.

 

Conquista do território

 

Na década de 1960, o governo exigiu que os habitantes deixassem o local para a construção do Parque Florestal do Rio Vermelho. Famílias que viviam da agricultura e da pesca tiveram que se mudar. Em 1962 a área foi definida como uma Estação Florestal com o objetivo de experimentação e identificação das espécies mais aptas a crescer e proteger a orla marítima através da fixação de dunas, mas também disponibilizar uma área verde para a população. Por 12 anos foram plantadas espécies de pínus e eucalipto. Também outras espécies exóticas, como casuarinas e acácias. Hoje, a própria Fundação do Meio Ambiente (Fatma) reconhece que as espécies exóticas plantadas, em menor ou maior grau, são invasoras.

 

Enquanto isso, os familiares de Vidal Martins que foram embora voltaram e compraram alguns terrenos readquirindo o que historicamente já lhes pertencia. Por isso, a comunidade homenageia o antepassado, que morreu aos 65 anos, como símbolo de resistência. Reconhecida pela Fundação Cultural Palmares desde outubro de 2013, é a primeira comunidade quilombola certificada em Florianópolis. Depois, o processo da regularização fundiária foi aberto na regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Santa Catarina.

 

Até o final do ano, é possível que esteja concluído o relatório antropológico elaborado por uma equipe da UFSC. O documento é exigência para o andamento do processo de titulação do território, que vai garantir a propriedade definitiva das terras aos quilombolas.

 

 

V

A gente foi discriminado em tudo. Na escola, em todo lugar que a gente ia, era sempre dispensado. Nunca chegava um grupo para brincar. Nas pracinhas, as pessoas fugiam de nós porque a gente era negro.

Nos bailes, ficávamos em frente ao salão.

Não Entrávamos, pois a gente era de cor. Nós somos um exemplo de força e de resistência. Até hoje estamos no mesmo lugar, de pai para filho,

e de filho para pai. A gente resistiu até agora, continuamos resistindo.

 

Odílio Izidro Vidal, 63 anos

UMA ILHA NA HISTÓRIA DO

ATLÂNTICO NEGRO

em um lado opaco na história de Florianópolis. O fato de pessoas de origem africana não figurarem na crônica oficial da cidade do século 19. Exceto quando citados pelo uso de mão de obra – construções de prédios antigos, trabalho das lavadeiras nos rios e córregos, transporte de água potável e dejetos das casas.
O motivo disso é que Florianópolis, há bastante tempo, tem sido vista e interpretada como terra de tradições açorianas, e Santa Catarina como um Estado próspero graças à fixação de europeus. A economia catarinense antes da fundação das colônias de Blumenau e de Joinville é tida como insignificante; assim, o auge da escravidão no litoral e na Ilha de Santa Catarina é carente de atenção.

 

É o que observam as professoras e pesquisadoras Bea­triz Gallotti Mamigonian e Joseane Zimmermann Vidal, organizadoras do livro História Diversa – Africanos e Afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina. O livro apresenta elementos para que se forme uma outra imagem da história da cidade entre os séculos 18 e 19.

Uma história diversa, dizem elas. Diversa em todos os sentidos que a palavra possui: diversa porque diferente da história contada até agora; diversa porque múltipla e porque expõe a diversidade; diversa porque está mudada; e, ainda, diversa porque é discordante. “A história da experiência africana deve ser integrada à história de Florianópolis e de Santa Catarina. Acima de tudo, situar Santa Catarina no Atlântico”, escrevem.

 

Porém, segundo números da Fundação Cultural Palmares, instituição pública voltada para a promoção e preservação da arte e da cultura afro-brasileira, a “invisibilidade” da presença de africanos e descendentes na memória histórica não é prerrogativa dos catarinenses. Os vizinhos Paraná e Rio Grande do Sul tornam a Região Sul a segunda com menor número de comunidades certificadas no país. São 158, em um total de 2.474.

 

Outra pesquisa chama a atenção. Em 2009, André Luiz Santos, na tese de doutorado Do Mar ao Morro: a geografia histórica da pobreza urbana em Florianópolis, pela UFSC, mostra que, em 1810, um em cada três habitantes da Ilha era de origem africana. O estudo aponta que com o fim da escravidão muitos libertos não tiveram condições de se manter. Um dos problemas era a moradia, especialmente no centro de Desterro. Surgiu, então, o primeiro grande bairro formado por negros. Chamava-se Toca e ficava atrás do Hospital Imperial, o atual Imperial Hospital de Caridade.

 

em busca da LIBERDADE

 

Ainda que não seja reconhecido, o negro esteve presente no desenvolvimento do Sul do país. Um pouco diferente em termos numéricos do que nos grandes canaviais do Nordeste ou fazendas de café e minas de ouro do Sudeste. Por causa da atividade agrícola e da pecuária, no Sul, os senhores não tinham tantos escravos. Há documentos que mostram a presença de um único escravizado na propriedade que trabalhava ombro a ombro com o senhor.

 

Os primeiros indícios de quilombos na região datam de 1751. Na época, o governo baixou uma ordem para que pessoas comuns ajudassem a capturar fugitivos. As fugas ocorriam principalmente pelas duras condições impostas pelos senhores. Os escravos trabalhavam no mar, nas armações baleeiras, nas plantações de mandiocas para produção de farinha nos engenhos, no comércio, em atividades domésticas.

 

A recompensa em dinheiro pela captura oferecida pelo governo aos capitães do mato se fazia até com anúncios nos jornais. Os motivos eram explícitos: senhores sem seus trabalhadores, autoridades fragilizadas por não coibir esse tipo de situação e a população próxima das áreas temendo saques e furtos. O chamado Registro de Provisões de 1751 considerava quilombo o local que possuísse “ranchos, negros, armas, ferramentas, panelas, pilão”.

 

Ainda durante o Império, outra prova da presença dos negros escravizados na Ilha. Em 1796, o governador João Alberto de Miranda Ribeiro encomendou um levantamento do número de escravos nas quatro freguesias recenseadas (Nossa Senhora do Desterro, Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, Ribeirão da Ilha e Nossa Senhora das Necessidades de Santo Antônio), que somavam 1.995 – quase um quarto (22%) da população, formada por 9.141 moradores.

 

O registro trazia outro dado: separava os escravos considerados “forros”, libertos da escravidão, que eram 1,8% do total. Isso significava que 166 pessoas tinham alcançado a liberdade. Gente que não necessariamente partia em busca de outro lugar para viver, mas que muitas vezes ficava na propriedade trabalhando para os antigos donos como se a eles devesse gratidão.

 

Muitos dos escravizados desembarcara na Ilha por outros portos como o Rio de Janeiro. Mas a presença africana foi marcante ao longo de todo o século 19, isto é, no apogeu e decadência da escravidão. O pesquisador Henrique Espada Lima sugere em um dos capítulos do livro História Diversa – Africanos e Afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina que Santa Catarina foi exportadora de escravos para a grande lavoura cafeeira. O autor também observa que a partir do final dos anos 1860, antes da abolição (1888), existiam procurações de proprietários para comerciantes que atuavam na venda de escravos em outras praças, como Rio de Janeiro e Campinas (SP).

 

Apesar de a história sufocar os fatos, a presença do negro em Santa Catarina é forte e se mantém. Ela resiste ao passar do tempo e ao discurso que insiste em embranquecer e não assumir sua presença na construção do Estado.

T

glossário

20 de novembro:

Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, instituído oficialmente pela lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. A data faz referência à morte de Zumbi dos Palmares, em 1695, aos 40 anos.

 

Capitão do mato:

caçadores de negros escravizados que fugiam do domínio dos senhores.

 

Quilombo:

áreas pertencentes a grupos de descendentes de pessoas escravizadas.

 

Quilombolas:

descendentes de africanos escravizados que mantêm tradições culturais, de subsistência e religiosas ao longo dos séculos. O nome vem do cruzamento de canhambora (“escravo fugitivo” em tupi-guarani) com kilombo, (“cabana”, em quimbundo, língua africana).

 

 

Remanescentes
de quilombos:

grupos que se autoidentificam como descendentes de africanos escravizados, que na atualidade desenvolvem práticas de resistência na manutenção e reprodução de modos de vida característicos em um determinado lugar e cuja identidade étnica os distingue do restante da sociedade.

 

Religiões de matriz africana: conjunto de expressões religiosas que têm em comum uma origem na África.

 

Zumbi dos Palmares:

principal representante da resistência negra à escravidão na época do Brasil Colonial. Foi líder do Quilombo dos Palmares, comunidade livre formada por escravos fugitivos dos engenhos, índios e brancos pobres expulsos das fazendas, localizado na região da Serra da Barriga, atualmente parte do município de União dos Palmares, em Alagoas.

 

AS CORES DO

ESTADO

Santa Catarina declara-se o Estado mais branco do Brasil. Segundo dados do IBGE, 15,3% das pessoas que vivem no Estado são de raça negra (conjunto de pretos e pardos). Essa proporção nem sempre foi assim. Em 2009, André Luiz Santos, na tese de doutorado Do Mar ao Morro: a geografia histórica da pobreza urbana em Florianópolis, pela UFSC, mostrou que, em 1810, um em cada três habitantes da cidade era de origem africana. Hoje, Santa Catarina reconhece 13 comunidades quilombolas em seu território – há outras remanescentes em processo de certificação.

BRANCO

PARDA

PRETA

AMARELA

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QUEM SOMOS

EMERSON GASPERIN

Repórter

 

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JULIA PITTHAN

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Nesta edição:

Ângela Bastos

Repórter especial

 

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Em 1990, entrevistou

Vicente Francisco do Espírito Santo, que conseguiu uma vitória inédita no STF após ser demitido por racismo da Eletrosul. Mas foi com a cobertura do Carnaval que entrou em contato direto com a cultura e a

história dos negros em SC.

GUTO KUERTEN

Repórter fotográfico

 

guto.kuerten

@diariocatarinense.com.br

 

No início de carreira, fotografou uma comunidade negra no Sul do Estado e não ficou satisfeito com o resultado. Agora, no quilombo Vidal Martins, acredita que finalmente tenha conseguido captar a essência e o orgulho dos descendentes de africanos.

ALINE FIALHO

Editora de Design e Arte


aline.fialho
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Amilcar Oliveira

Editor convidado


amilcarfloripa

@gmail.com

 

Jornalista profissional

dedicado há mais de

20 anos à cobertura de

pautas sociais em jornais

diários e a trabalhos

com organizações do

movimento social

no Brasil.