O que leva Santa Catarina a ter esse destaque? Um Judiciário mais ágil e competente? Ativistas mais combatentes? Uma população mais aberta, amigável e menos preconceituosa? Não existe uma resposta pronta. A única certeza é de que o tema é atual e analisá-lo vai nos ajudar a compreender melhor os anseios desta parcela da população que luta para ter os seus direitos respeitados, e que não aceita mais ser apenas tolerada. Afinal, como tão bem declarou o escritor José Saramago, “tolerar a existência do outro e permitir que ele seja diferente ainda é muito pouco. Quando se tolera, apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro”.

A presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB/SC, Margareth Hernandes, ressalta que esses casamentos, em que pese a presença de Santa Catarina no topo, ainda são muito poucos em relação à população homossexual. Apenas uma minoria adere ao registro civil. Sobre os motivos que levam o Estado a registrar um maior número de uniões gays, ela acredita que pode estar ligado ao alto índice educacional na região, muitas universidades, acesso à cultura e à ascendência europeia, que contribuem para maior liberdade sexual e afetiva.

Em termos de direitos, ressalta a advogada, nada muda se o casal homossexual (ou hétero) se decidir pelo pacto de união estável ou pelo casamento civil.

 

– O que difere é o regime de bens. Depende de como as duas pessoas desejam partilhar o patrimônio caso ocorra a separação ou morte de uma delas – diz.

É preciso, porém, um esclarecimento. No Brasil não existe lei em favor dos casais homoafetivos, apenas decisões judiciais, como a do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011 que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu a resolução para os cartórios aceitarem a união civil, depois o próprio Superior Tribunal de Justiça (STF) reconheceu o direito à adoção de crianças por casais homossexuais.

– Então, dá para perceber que o nosso Judiciário em geral avançou (e muito) nos direitos LGBT, enquanto o Legislativo nada fez, pois temos uma bancada ultraconservadora que domina o Congresso e não deixa passar os projetos existentes nesta área – arremata Margareth.

A musicista Milena Dugacsek e a jornalista Tamara Hauck, ambas de 38 anos, acabam de comemorar um ano de casamento civil. Decidiram pela união porque, além do amor e da vontade de formar uma família, sentiram necessidade de oficializar a relação para garantir seus direitos.

–Estamos diante do Congresso mais conservador dos últimos tempos, que vem destruindo conquistas valiosas na área dos direitos humanos. É importante ressaltar que o discurso de ódio e intolerância travestido de liberdade de expressão não se limita à violência simbólica, pelo contrário, ele se converte em violência física, a ponto de estarmos entre os cinco países que mais matam homossexuais no mundo – diz Tamara.

Para as duas, o casamento civil é também “um ato político, que busca combater essa onda perversa e conservadora por meio do aumento de uniões homoafetivas”.

– Assim como nós, acredito que outros casais estejam oficializando a união para garantir direitos e combater a homofobia – afirma a musicista.

Outros casais homoafetivos, que já têm a certidão de união estável, não veem, entretanto, necessidade do casamento civil, como afirma Cristian Goulart, 25 anos, mestrando da UFSC, que divide a vida há sete anos com o assistente de vendas Cláudio Souza, 33 anos. Entre o namoro e o “morar juntos” foram apenas dois meses, em 2008. Aos poucos, foram percebendo que seria melhor regularizar a situação, principalmente após comprarem a casa própria. Naquela época, a declaração de união estável havia sido estendida aos casais homoafetivos, e eles aproveitaram a oportunidade.

– Assim, conquistamos outros direitos, como a inclusão de dependentes em planos de saúde, conta conjunta e outros que são assegurados a qualquer casal. Sabemos que hoje o casamento civil já é permitido aos casais homoafetivos e trata-se de uma grande conquista para a população LGBT. No entanto, optamos por permanecer como estamos, por não vermos necessidade de oficializar nossa união no civil – explica Cristian.

O professor universitário Ricardo Sékula, 34 anos, passou a morar em Florianópolis há dez meses, vindo de Chapecó. Para ele, foi uma surpresa a marca de SC no número de casamentos gays.

– Sob muitos aspectos, considero o Estado um tanto conservador para questões de gênero e sexualidade. Não me baseio em estatísticas para afirmar isso, mas em sensações que surgem de vivências cotidianas. Sou de uma região (Oeste), por exemplo, onde as relações homoafetivas são bastante veladas e o preconceito ainda perdura. Em Florianópolis, devido ao perfil da cidade, sinto que essas questões já estão mais naturalizadas, porém não livres de preconceito por parte da população. Então, creio que essa liderança se deva mais à coragem de casais homoafetivos em assumir seus relacionamentos e de pessoas engajadas na luta por esses direitos do que por alguma característica específica de Santa Catarina – afirma.

—Enquanto uniões homoafetivas forem notícia, não alcançaremos realmente um marco civilizatório defensável. Uniões são uniões. Mas a matéria é nova e causa polêmica.


O comentário é da advogada e escritora Elza Galdino, que diz que o preconceito, observado pelo viés religioso, lhe parece ser “o mais truculento e explícito”. Ela argumenta que o Brasil é um estado laico por determinação constitucional.

– É inegável que as convicções religiosas são uma espécie de patrimônio cultural dos brasileiros. Entretanto, visões pessoais não devem interferir na análise de questões que decidem o direito de todos, indistintamente – afirma.

Para Elza, uma coisa é a lei, outra, a religião. A lei deve ser universal, igual para todos. A religião, uma questão pessoal.

A advogada relembra que há pouco mais de dois anos um promotor negou, em Santa Catarina, a realização de uniões homoafetivas, sob o argumento de que é isso o que diz a Constituição Federal. Só que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já havia se pronunciado a favor, e a autorização para a união passou a ser a norma.

– Ainda assim o promotor insistiu nas negativas. O que se constata é que estamos longe de um comportamento que mereça ser chamado de civilizado, no sentido do respeito ao outro. Diante da intolerância e da violência, digo que estamos caminhando a passos rápidos em direção à Idade Média, quando se queimava pessoas em praça pública (e havia plateia!).


Quem sente (ou já sentiu) na pele a discriminação e o preconceito também acredita que ainda há muito que evoluir.

– Não acredito que Santa Catarina seja um Estado avançado no que diz respeito ao Judiciário. Cada vez mais os homossexuais o têm precisado recorrer a associações e Ongs para terem seus direitos resguardados – lembra Cristian Goulart.

O professor Ricardo Sékula é da mesma opinião.


– Não creio que o Judiciário catarinense seja mais “aberto” às diferenças. Mesmo porque um “avanço” nesse sentido exigiria políticas mais claras e abrangentes em relação aos direitos dos homossexuais, o que na verdade nada mais é do que a garantia dos diretos de qualquer cidadão. No entanto, gays, lésbicas e trans continuam diariamente a sofrer agressões (sejam físicas ou verbais). Os que denunciam, muitas vezes relatam sofrer preconceito dos próprios órgãos responsáveis por sua defesa, o que acaba gerando um certo silêncio em relação a crimes de homofobia. Além disso, pequenas ações do dia a dia, como andar de mãos dadas na rua ou demonstrar afeto publicamente geram reações preconceituosas, desde olhares de reprovação a piadas de mau gosto – comenta.


Nem todos os homossexuais, no entanto, pensam da mesma forma. Um casal de mulheres formado por duas gaúchas que morou por muitos anos em Florianópolis e hoje está em Brasília ressalta que, das três capitais, Florianópolis é disparada a melhor para se viver, com menos preconceito e mais liberdade.

– Sentimos que na capital catarinense os casais homoafetivos são aceitos com maior tranquilidade. Mais do que em Porto Alegre, cheia de guetos, e muito mais do que o Distrito Federal, onde hoje vivemos e ainda paira um ranço contra homossexuais, ranço esse que desconhecíamos em Florianópolis. Aqui ainda existem guetos, quadras e poucos bares para frequentar, enquanto em Floripa íamos a qualquer lugar sem medo de deixar escapar um carinho, uma mão na outra ou olhares comprometedores. Aqui em Brasília a gente tem que pegar leve porque mulheres ainda apanham na rua. Recentemente um bar que muitos gays frequentam foi palco de um ataque gravíssimo de homofobia. Nos 14 anos em que morei em Florianópolis, vi reações parecidas apenas no “beijaço” na frente do Palácio Cruz e Sousa, que foi pacífico. Não lembro de ataques com agressão física.

Ato 2. Cena 1

Ramayana Lira é professora da área de Cinema, Artes e Letras, além de pesquisadora com foco nas questões de gênero e sexualidade, na Unisul. Sobre o pretenso protagonismo de Santa Catarina na defesa dos direitos gays, ela, de saída, já desconstrói a frase.

 

– O protagonismo não é de SC, mas dos ativistas. O que parece haver aí é a cooptação pelo Estado do esforço de mobilização das pessoas, que se transforma em ferramenta de marketing para a indústria do turismo, por exemplo. Outra questão é a que diz respeito ao que chamamos de direitos gays: não há direitos gays, mas sim direitos. Ponto. Direitos que são distribuídos seguindo o comando heteronormativo que dita que certas configurações de desejo, de relações, de instituições sejam consideradas “anormais” e, com isso, alijadas da proteção jurídica – pontua a professora.

 

A pesquisadora ressalta que Santa Catarina, assim como o Rio Grande do Sul, pode até apresentar certo número de decisões judiciais que favoreçam gays, lésbicas e transgêneros, o que, em si, é positivo. Mas o dia a dia, a luta cotidiana, as micro e macroagressões, ainda revelam o caminho árduo que é preciso trilhar em busca de uma verdadeira igualdade. E comenta:

 

–Sou uma privilegiada: branca, classe média, professora universitária, em relacionamento estável (o que me confere respeitabilidade em comparação com as pessoas que não se adequam à monogamia). Não posso ignorar essas vantagens. Acredito que o exercício diário de checar os privilégios é necessário para evitarmos afirmações apressadas, pois se eu fosse falar apenas de minha experiência pessoal eu reforçaria a teoria do paraíso tolerante (em qualquer lugar do Brasil, não apenas em Santa Catarina). Nunca sofri ataques homofóbicos, por exemplo. Mas sei de outras tantas vivências muito mais doloridas, de violências, de escárnio, de exílios. Assim, antes de pensarmos se Estado é mesmo gay friendly, precisamos nos perguntar friendly em relação a quem? Aos gay ricos, brancos, sarados apenas? E quanto a todas as outras pessoas cujos desejos, vivências, corpos e esperanças vivem fora de uma norma que existe para proteger apenas a reprodução, tanto humana quanto do capital?

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(1946-1991)

 

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(1922-1975)

 

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(1973)

 

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rob halford

(1951)

 

Ben Ami Scopinho

Infografista

 

benami.scopinho@

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Agradecimento à  doçaria Patrícia Goedert que cedeu o

bolo e outras delícias que ilustram este especial.

uando começa a tocar a marcha nupcial e as duas entram vestidas de noiva no salão, Anelise de Barros, 27 anos, e Jéssica Aline Souza, 23 anos, mal conseguem conter a emoção. Embora vivam juntas há cinco anos, elas sabiam que o casamento civil, mais do que uma formalidade legal, seria a confirmação de que a história de amor que as une é mais forte do que o preconceito. Nesse caso, diz Anelise, um preconceito duplo: além de homossexual, Jéssica é negra.

A família de Anelise se negou a ir à cerimônia. A mãe e a irmã de Jéssica estavam lá, vibrando com a alegria do casal. Estão casadas no civil há pouco mais de dois meses, e Anelise fez questão de que Jéssica assumisse, também, seu sobrenome.


– Ela é minha esposa e vai carregar meu nome, gostem os outros ou não. Na hora da troca das alianças, choramos lembrando de tudo o que passamos até aquele dia. Mas era um direito nosso. Além disso, casar no civil foi um ato de cidadania – diz.


Anelise é auxiliar de escritório e Jéssica, autônoma. Moram em Palhoça e uniram-se no civil durante o primeiro casamento coletivo homoafetivo realizado em Florianópolis, em setembro deste ano.


– Só quero dizer que amor é mais do que gênero. O amor está na alma – resume Anelise, acrescentando que nunca foi tão feliz quanto agora.


O casamento civil de Anelise e Jéssica ainda não entrou para as estatísticas do IBGE, já que os resultados são divulgados no ano seguinte, mas em 2014, segundo o instituto, outros 342 casais homoafetivos também compareceram na frente de um juiz de paz em Santa Catarina para oficializar a união. O Estado foi o terceiro do país em número de uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro.

Só quero dizer que amor

é mais do que um gênero.

O amor está na alma.

 

Anelise Barros

Estamos diante do congresso mais conservador dos

últimos tempos.

TAMARA HAUCK

pesar do preconceito no dia a dia, o fato é que o número de casamentos civis entre casais homoafetivos cresce no Estado. Em setembro deste ano, 40 casais gays participaram de uma cerimônia coletiva de casamento civil em Florianópolis. A iniciativa foi uma parceria entre a Associação Amigos em Ação, que tem como objetivo promover a cidadania, e o Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Cerca de 800 pessoas participaram da cerimônia, realizada em um grande hotel da cidade. Cada casal de noivos podia levar 20 convidados, e a celebração foi conduzida por um juiz de paz.

 

– Eles já saem com as certidões de casamento civil nas mãos – explica Luciana de Bastos Silva, conhecida como “Lu do Bem”, coordenadora da entidade que já promoveu mais de 8,5 mil casamentos civis coletivos no Estado, todos dedicados a pessoas carentes que têm o sonho de legalizar a união.

 

No caso específico do casamento coletivo gay, Lu do Bem ressalta que a carência é muito mais do que financeira.

 

– Eles são carentes de respeito, de igualdade, de apoio. Então, no casamento coletivo eles sentem a força dos outros casais e, juntos, perdem o receio de mostrar os sentimentos. O casamento daqueles 40 casais foi uma emoção muito grande para eles, para os familiares e para nós também. Foi um grande ato de cidadania – afirma.

 

Toda a documentação é feita gratuitamente, sem custo para os noivos. A próxima edição do casamento coletivo homoafetivo já tem data marcada: será dia 26 de março do ano que vem.

Caminhamos a passos rápidos em direção à Idade Média.

ELZA GALDINO

 Sentimos que na capital catarinense os casais homoafetivos são aceitos com maior tranquilidade. Mais do que em Porto Alegre, cheia de guetos, e muito mais do que o Distrito Federal, onde hoje vivemos e ainda paira um ranço contra homossexuais, ranço esse que desconhecíamos em Florianópolis.

casal de lésbicas

Eles são carentes de respeito, de igualdade, de apoio. Então, no casamento coletivo eles sentem a força dos outros casais e, juntos, perdem o receio de mostrar os sentimentos.

lu do bem