Cultura açoriana, alemã e italiana fazem parte do caldo cultural que dá gosto à cozinha catarinense.  Para chefs e estudiosos da boa mesa, a valorização de  ingredientes locais é chave para o sucesso da gastronomia do Estado

empere um porco desossado com sal, alho, cebola, suco de limão, vinho branco, orégano, salsa e cebolinha e o deixe no forno a lenha por 36 horas. Vire-o com o couro para baixo, espalhe extrato de tomate sobre a carne
e cubra tudo com muçarela, requeijão, milho e ervilha. Em seguida, acrescente coração de galinha, linguiça calabresa e peito de frango desfiado. Finalize com tomates e pimentões em rodelas e, para arrematar, mais uma camada de queijo. Trinta minutos no fogo e pronto: você está diante de um legítimo porco-pizza.

A receita foi desenvolvida em Chapecó por Pedro Pesavento, um ex-mecânico industrial de 59 anos que, após se aposentar da Sadia, passou a ganhar a vida assando leitões, ovelhas e costelas na brasa. Em 2009, um freguês lhe sugeriu a inusitada combinação. Pedido feito, pedido aceito – e aprovado. Hoje, a iguaria é servida sob encomenda a R$ 19 o quilo e satisfaz mais de 30 pessoas, conforme o peso do bicho (25 quilos, em média) e da fome dos comensais.

– A gente está sempre se aperfeiçoando. Com catchup, molho madeira... – complementa Pesavento.

Talvez um pouco indigesto a estômagos mais sensíveis, o porco-pizza é um exemplo extremo do (com o perdão do trocadilho) caldo de culturas que forma a alimentação do catarinense. Em um Estado cuja população reflete os costumes e tradições de mais de 50 etnias – principalmente italianos (45%), alemães (35%) e açorianos (8%), segundo dados oficiais –, a gastronomia também apresenta-se como um somatório de todas essas influências. Cada região tem suas comidas típicas, o que impossibilita a identificação de um prato específico que represente toda Santa Catarina.

– Assim como comida espanhola lembra paella, e alemã, chucrute, apesar de esses países terem uma mesa rica e variada, hoje o que mais representa a cozinha catarinense é a ostra. Florianópolis é conhecida em todo o Brasil pela produção e pela qualidade de suas ostras. O curioso é que é não é uma herança açoriana, e sim um cultivo implantado nos anos 80 – explica a coordenadora do curso de Gastronomia da universidade Estácio de Sá da cidade, a nutricionista Elizabeth Maria Diamantopoulos Neme.

 

história ensina que os colonizadores do arquipélago dos Açores que migraram para o litoral sul da então Província de Santa Catarina eram, em sua maioria, agricultores e pecuaristas. Com eles, vieram especiarias e condimentos como cebolinha verde, alfavaca, coentro, orégano, manjericão, cominho, cravo, canela, noz-moscada, pimenta, hortelã e menta, além de diferentes modos de preparar, temperar e conservar os alimentos.

Devido à dificuldade em encontrar os ingredientes de sua culinária original, os novos habitantes aprenderam a pescar com redes e tarrafas e se adaptaram aos frutos do mar e a raízes, frutos, sementes e cereais usados pelos índios itacarés e carijós. Daí se derivou o que se conhece como a comida local: peixes, crustáceos e moluscos (ensopados, fritos, assados), cozidos de
carnes e verduras, mandioca (em farinha para pirão e massas sovadas), inhames e couves.

Esses pratos ainda compõem o cardápio ilhéu em variações que reproduzem
as diferentes origens dos moradores da cidade. E, no que depender do Departamento de Nutrição da UFSC, serão mais difundidos como
alternativa saudável.

– É a “dieta do Atlântico Sul”, que destaca receitas tradicionais, a incorporação de alguns preceitos da dieta do Mediterrâneo e releituras
do que o manezinho sempre comeu – diz Narbal Corrêa, 52 anos, um
dos chefs entusiastas da ideia.

 

os tempos da casa da avó na Rua Bocaiúva, no centro de Florianópolis, ele guarda com carinho a lembrança dos camarões que nas mãos dela viravam croquetes, eram preparados com chuchu ou enriqueciam o molho para o talharim. Entrou no mundo da culinária cozinhando no quintal os badejos brancos e tainhas que pescava com primos e tios. Autodidata, profissionalizou-se e já comandou diversos restaurantes na cidade, todos priorizando insumos nativos – credo mantido em seu atual estabelecimento, o Centro Gastronômico Rita Maria, na região central da Capital.

– Noventa por cento do que eu sirvo aqui tem que estar a no máximo 100 quilômetros de distância – garante.

Para seguir tal regra, Corrêa sai todos os dias em seu barco de 30 pés. O produto da pesca vai para a sequência de frutos do mar, o prato mais pedido no Rita Maria. O que não consegue pescar, compra de pescadores artesanais e de mergulhadores. Entre arpões e panelas, o chef é um defensor intransigente dos sabores locais:

– Anote aí o que estou dizendo, a próxima onda será a “comida da família”, pois o manezinho come muito bem tanto no sentido nutricional quanto no paladar – diz Corrêa.

A aposta do chef é que a cozinha local ganhe relevância na mesma onda de valorização internacional da comfort food, expressão em inglês para os sabores de infância, a comida preparada pela mãe ou pela avó.

 

mais ou menos no que acredita a coordenadora Elizabeth. Na opinião da nutricionista, “o futuro é o regional”: um entendimento mais amplo da chamada slow food, que abrangeria não apenas o comer devagar, como a valorização de toda a cadeia produtiva que envolve o alimento até sua chegada à mesa.

– É importante respeitar a cultura de cada lugar. Como o turista vem para cá e prefere salmão congelado em vez de ostra, siri ou tainha fresquinhos? – questiona em tom de provocação.

Ela abre uma exceção somente para o polvo, que, como boa descendente de gregos, adora na brasa com alecrim. Nesse caso, a referência é o Rosso Restro, fundado em 2009 pelo chef Alysson Müller no bairro Sambaqui, norte da Ilha, justamente como um restaurante dedicado à cozinha regional. Mas o molusco (crocante, glaçado ou grelhado, vindo de Itajaí ou do Rio Grande do Sul) fez tanto sucesso que se tornou o carro-chefe do estabelecimento.

– Somos os maiores vendedores de polvo do país, com duas a três toneladas consumidas por mês. – afirma o filho de um casal de donos de um modesto restaurante em Biguaçu, na Grande Florianópolis.

O que não quer dizer que o Rosso abandonou o conceito de destacar as delícias estaduais. No menu encontra-se, por exemplo, o risoto de linguiça Blumenau com erva-doce ao lado dos pratos com frutos do mar. Müller ressalta ainda as carnes de pato do Vale do Itajaí e de gado britânico da Serra catarinense como ingredientes nobres que merecem mais atenção dos chefs que atuam no Estado. A ave já aparece no cardápio de seu outro restaurante, o italiano contemporâneo Artusi, no Centro, na forma de um ragu que acompanha nhoque.

 

 

 

esde 2013, faz sucesso no disputado mercado culinário de Paris um bistrô chamado Le Pario. Lá, uma refeição completa — entrada, prato principal e sobremesa — sai por volta de 25 euros (pouco mais de R$ 100), uma conta razoável em um país onde o salário mínimo é de 1.337 euros. Com pratos requintados como canelone de lagosta e codorna recheada com trufas e foie gras e, aos sábados, a brasileiríssima feijoada, o estabelecimento ganhou um Bib Gourmand do rigoroso Guia Michelin, distinção dada a restaurantes com comida de alto nível a preços acessíveis. À frente da cozinha e da administração está um florianopolitano de 36 anos, Eduardo Jacinto.

Do bairro do Saco dos Limões ao reconhecimento na capital mundial da gastronomia, o manezinho percorreu um longo caminho. Filho de funcionários da Eletrosul, cursava Geografia na UFSC até fazer um concurso para trabalhar na Base Aérea de Florianópolis, onde o irmão era oficial. Aprovado em segundo lugar, pôde escolher em que área iria atuar. Optou pela cozinha, não por se identificar com a função, mas porque o horário do expediente lhe permitia conciliar o emprego com o estudo. Quatro meses depois, o sargento lhe perguntou se ele gostaria de cozinhar para o comandante e sua família, pois o titular estava se aposentando.

— Foi ali que despertou meu interesse, embora eu ainda não soubesse fazer muita coisa além do trivial. No primeiro dia, preparei arroz, feijão, salada e um frango que já estava pré-pronto — diverte-se

Duda, como os seus amigos de Florianópolis o apelidaram.

O futuro geógrafo deu lugar a um calouro no curso de Gastronomia na Unisul. Ainda na universidade, foi fazer um estágio na Itália. Na volta, faturou um concurso na Fenaostra de 2002 utilizando as técnicas que aprendeu em Veneza para criar um prato que batizou de “ostras em cativeiro”: massa similar à de profiterole, como se fossem os cestos em que as ostras são cultivadas (daí o nome), com gratin de batata e ostras, molho de jabuticaba e purê de alcachofra. O prêmio era um curso de dois meses em La Rochelle, região francesa produtora do molusco, e um estágio em um restaurante com duas estrelas do Guia Michelin.

Passado esse período, Duda retornou, formou-se, começou a trabalhar com o chef Zeca d’Acampora (um dos mais famosos de Florianópolis, falecido em 2008) e a participar de eventos. Num deles, em São Paulo, conheceu o chef que o levaria para Paris, Cristian Constant, do prestigiado Le Violon d’Ingres (uma estrela no Michelin). Depois de nove anos aprendendo todos os aspectos da gestão de um restaurante, ele alçou voo solo e criou o Le Pario (junção
de Paris e Rio). No menu, alia a fina culinária francesa com sutis inovações
à brasileira, como farofa e uma versão de bobó de camarão com leite de
coco e bacalhau.

— É difícil incluir ingredientes catarinenses porque eu não teria como servir frescos os frutos do mar que são típicos do nosso Estado. E a qualidade dos produtos é fundamental para qualquer restaurante sobreviver em Paris — diz.

Quando vem visitar os pais, no entanto, Duda se esbalda com pastel de camarão, de berbigão, pirão com peixe e com a comida simples de restaurantes como o Vieira, na Armação, sul da Ilha. Se um dia tiver
uma filial do Le Pario em sua cidade natal, jura que será mais barato
do que os concorrentes.

— Precisa ter um desenvolvimento maior, os restaurantes em Florianópolis abrem e fecham com muita frequência. Também acho que falta
conhecimento técnico de uma cozinha de alto nível. Sem falar nos
preços praticados, um absurdo – avalia.

 

chef de um dos restaurantes do momento em Florianópolis tem 37 anos, é capixaba e adora uma prosaica massa ao alho e óleo. Eudes Rampinelli tem ganhado elogios pelo Jay Bistro, inaugurado no final de 2013 em Jurerê Internacional. Antes de completar um ano, o local foi premiado como o melhor restaurante da cidade pela edição catarinense do concurso Comer & Beber, promovido pela revista Veja. E Rampinelli, eleito o melhor da cidade.

– Tento fazer o “simples pensado”, em vez do “complicado forçado” – diz, recém-chegado da casa de Gustavo Kuerten, onde havia preparado o
almoço para o campeão mundial de surfe, Adriano de Souza, o Mineirinho: vieira grelhada com molho de maracujá, tartar de salmão, peixe-branco grelhado com molho de laranja e, de sobremesa, pudim de molho
toffee com flor de sal.

A relação com o tricampeão de Roland Garros vem de longe. Foi para montar o cardápio do Double Seven, restaurante do qual Guga era um dos sócios,
que Rampinelli mudou-se para Florianópolis, após seis anos trabalhando e estudando no ramo em Barcelona. Com o fechamento da casa, em 2012,
ele foi estudar nutrição na universidade Estácio de Sá e fazer comida para
o ex-tenista número 1 do mundo.

– Fiquei um ano cozinhando para o Guga. Criei lá o peixe com banana-da-terra, farofa crocante de brioche e molho de pancetta que hoje faz parte
do menu do Jay.

De amigo, Guga virou sócio de um negócio que exigiu investimentos de R$ 1,2 milhão. Segundo o chef, um jantar com bebida custa de R$ 120 a R$ 150 por pessoa. Com 65 lugares, o restaurante oferece pescados e massas, das quais
o destaque é o espaguete à carbonara com linguiça Blumenau. Não falta também, entre as carnes, o ossobuco, que Rampinelli assegura ter sido o primeiro a servir na cidade, ainda no Double Seven.

– Leva três dias para fazer, poucos restaurantes se dão a esse luxo – afirma.

QUEM SOMOS

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ben ami scopinho

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