Um coração,
duas paixões

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rês horas antes de cada jogo do Avaí na Ressacada, em Florianópolis, o ex-bancário Osvaldo Schmidt sai de casa para ver o time. O tempo é suficiente para que o aposentado de 59 anos percorra a pé os 14 quilômetros entre o Balneário do Estreito, onde mora, na parte continental da cidade, e o estádio no Sul da Ilha – e ainda sobre para uma cervejinha antes de a bola rolar. No último sábado, ele completou o trajeto pela 255ª vez na partida contra a Ponte Preta. Com um futebol sofrível, a equipe avaiana venceu por 1 a 0 e manteve viva em seu torcedor a esperança de que a caminhada continue na Série A do Campeonato Brasileiro.

 

O Forest Gump da Ressacada, como é recebido pelos conhecidos no anel de acesso às cadeiras sociais, não corre como o personagem de Tom Hanks no filme homônimo que lhe valeu o apelido. Mas bate perna que é uma beleza. Somadas apenas as idas, Osvaldo já andou 3.150 quilômetros por amor ao Avaí. As voltas são de carro, de carona com um amigo, para não se arriscar à noite na passarela para pedestres da ponte Pedro Ivo.

 

 – Eu era flamenguista por causa do Zico. Até o dia em que meu irmão me levou ao (estádio) Adolfo Konder (atual Beiramar Shopping) e virei também avaiano. Hoje, sou só avaiano – conta, referindo-se ao antigo campo do clube.

 

O hábito de os catarinenses torcerem para um time de fora ou dividir essa paixão com uma equipe local já foi bem maior. Além dos imigrantes que traziam consigo as cores clubísticas de seus Estados, as transmissões radiofônicas das emissoras cariocas faziam ouvintes de todas as regiões do país sem forte representação futebolística sonharem com as grandes disputas no Maracanã. O futebol estadual e o brasileiro habitavam universos diferentes. O torcedor vestia uma camisa para as competições nacionais, outra para o campeonato de Santa Catarina. Com a constante participação de clubes do Estado nas duas principais divisões do esporte no país, enfrentando e ocasionalmente vencendo os grandes outrora inatingíveis, isso vem diminuindo ano a ano.

Segundo pesquisa realizada em 2011 pela Lupi & Associados com 1,6 mil pessoas em 230 municípios catarinenses, o Flamengo lidera com 18,4%. O time de Santa Catarina mais bem-colocado, Avaí, aparece apenas na sexta posição, com 7,4%. No entanto, o número de entrevistados que apontaram uma equipe do Estado como a preferida quintuplicou: de 4% em levantamento idêntico, em 1999, para 21%. Outra pesquisa, realizada em 2012 pelo Instituto Ipson Marplan em 12 regiões regiões metropolitanas, revelou que na Grande Florianópolis 37% são torcedores alvinegros e 21% azuis. Na sequên­cia, vêm Flamengo (6%), Grêmio (5%), Internacional (4%) e Corinthians (3%).

 

– Em Florianópolis, quase todo mundo torcia para times do Rio de Janeiro. Agora é minoria, e tudo gente de fora que vem morar aqui. O manezinho mesmo torce para Figueirense ou Avaí – analisa o comentarista esportivo Miguel Livramento, da rádio CBN Diário e do jornal Hora de Santa Catarina.

 

Ele próprio é um exemplo disso. Na juventude, sintonizado nas rádios do Rio de Janeiro como Nacional, Globo e Mayrink Veiga, tornou-se flamenguista. Como o rubro-negro era vítima contumaz do Botafogo de Garrincha, Didi e Nilton Santos, Livramento antipatizava com qualquer time preto e branco. No primeiro clássico florianopolitano a que assistiu, quando o Figueirense entrou no gramado do Adolfo Konder com seu tradicional uniforme, não teve dúvida: transformou-se em avaiano. Embora permaneça fiel ao Leão da Ilha, os 42 anos de profissão o levaram a torcer também para os demais clubes do Estado.

 

– Desde que não estejam jogando contra o Avaí – pondera.

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ualquer sociólogo de boteco sabe que os fatores determinantes para a escolha do time do coração vão dos tons da camisa à influência familiar, da identificação com a cidade à exposição na mídia, da existência de ídolos a glórias. Na história do futebol catarinense, não há muito o que comemorar além das fronteiras estaduais. Em 1926, Santa Catarina estreou no campeonato brasileiro de seleções, então a maior competição nacional, tomando 16 a 0 de São Paulo.

 

A primeira vitória só iria acontecer em 1942, 4 a 2 contra os paranaenses em Curitiba. Sua melhor campanha foi em 1960. Após eliminar o Paraná, bateu o Rio Grande do Sul em Porto Alegre, caindo em seguida ante Minas Gerais. Em 1982, finalmente veio um título, conquistado de forma invicta do outro lado do mundo em um certame irrelevante: campeã do torneio de Merdeka, na Malásia, em uma época na qual as seleções estaduais despertavam pouco ou nenhum interesse.

 

Não que os clubes catarinenses tivessem muito mais a oferecer. O primeiro a disputar um campeonato oficial contra times de outros Estados foi o Hercílio Luz, credenciado para participar da Taça Brasil de 1959 por ter sido campeão estadual naquele ano. O alvirrubro tubaronense perdeu as duas partidas para o Atlético Paranaense e se despediu do torneio, similar à Copa do Brasil de hoje. Durante a década de 1960, o criciumense Metropol chegou a incomodar a dupla Gre-Nal na chave Sul da Taça Brasil e quase desclassificou o Botafogo nas quartas-de-final, em 1968.

 

Nada disso, porém, incentivava o torcedor catarinense a trocar seu vitorioso time carioca por um capenga do Estado. Em Florianópolis, o cenário começou a mudar no início dos anos 1970 com as campanhas da TV Cultura para atrair mais gente ao estádio e criar identificação com os times locais. De 1972 a 1975, o título estadual se revezou entre Figueirense e Avaí, quebrando um jejum de 31 anos sem campeões da capital. Nesse período, o Alvinegro registrou suas maiores médias de público, com cerca de 17 mil pessoas por jogo no estádio Orlando Scarpelli.

 

De 1973 ao final dos anos 1980, Figueirense, Avaí, Joinville, Chapecoense ou Criciúma figuraram no Brasileirão – o equivalente à Série A atual, com a diferença de que o regulamento era aberto a toda sorte de fórmulas e casuísmos. Os brilharecos ocasionais não impediam que o futebol catarinense fosse visto como saco de pancadas. O triunfo do Criciúma na Copa do Brasil sobre o Grêmio em 1991, até hoje o maior feito de um clube de Santa Catarina, e do Avaí na Série C do Brasileiro em 1998 ajudaram a forjar as condições para consolidar as equipes do Estado como opções viáveis ao torcedor.

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esde a padronização do sistema de disputa das duas principais divisões do futebol brasileiro por pontos corridos em 2003, sempre houve no mínimo um clube catarinense na Série A – com o requinte de, em 2015, o Estado ter quatro representantes entre as 20 equipes da elite, número inferior apenas ao de paulistas (cinco) e superior ao de cariocas (três), gaúchos e mineiros (dois cada). E nenhum deles aproveitou tão bem esse processo para crescer como a Chapecoense.

 

De 2008 a 2013, o Verdão do Oeste pulou de “fora de série” (não disputava nenhuma das quatro divisões) a integrante da Série A. Os acessos consecutivos fizeram com que as duas torcidas dominantes em Chapecó em função da colonização gaúcha perdessem terreno.

 

– Paramos de noticiar gols dos jogos da dupla Gre-Nal nos alto-falantes da Arena Condá, desestimulamos o uso de camisetas de Grêmio e Internacional no estádio e promovemos a campanha “Chape, meu único time” – diz o diretor de marketing do clube, Andrei Copetti, um ex-gremista de Cruz Alta (RS) que transferiu sua devoção à Chapecoense para as duas filhas crianças.

 

O time retribuiu dentro das quatro linhas. Faturou 10 dos 12 pontos disputados contra os porto-alegrenses nesta temporada, com direito à virada histórica por 3 a 2 contra o Tricolor dos pampas na Arena gremista. Dos catarinenses, é o único garantido na Série A em 2016. O Joinville caiu para a B, de onde havia saído em 2014 depois de levantar a taça e coroar uma escalada que o levou da Série D à elite em cinco anos, erguendo no percurso também o caneco da C em 2011. Em 2012, o Instituto Paraná perguntou aos joinvilenses para qual time torciam. Tirando os 35% que responderam “nenhum”, deu empate técnico entre JEC (16,25%) e Flamengo (15%).

 

O Joinville terá a companhia do Cri­ciú­ma, outro que faturou a Série B (2002) e a C (2006). O Tigre já viveu dias melhores. No Estado, só ele conhece a Libertadores da América, na qual obteve um honroso quinto lugar no torneio continental em 1992. Em número de vezes na Série A, é superado somente pelo Figueirense, 16 a 13. Foi rebaixado em 2014.

 

– Quando conquistamos a Copa do Brasil em 1991, houve uma grande transformação. Ali nasceu uma geração de torcedores que adotou o Criciúma como seu primeiro time. É a força que esse clube tem em contagiar a cidade e região que faz com que essa paixão nunca morra – assegura a gerente comercial do Tigre, Viviani Olimpio.

 

Para não se juntar aos dois co-irmãos na Série B, Figueirense e Avaí entram em campo neste domingo precisando da vitória. O dentista Felipe Wolff, 39 anos, estará no Scarpelli com um olho no gramado e outro nos resultados paralelos. O Furacão tem que ganhar do Fluminense e secar Avaí ou Coritiba. Como o pai, ele torcia para o Alvinegro e para o Vasco da Gama. Até a decisão do campeonato catarinense de 1984, disputada entre o Figueirense e o Joinville. Com o empate, o JEC sagrou-se campeão.

 

– Chorei tanto naquele dia que descobri que era Figueira acima de tudo – conta o dentista.

 

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svaldo Schmidt só não vai gastar a sola do tênis para apoiar o Avaí porque a partida é em São Paulo. Mais do que nunca, o Leão da Ilha vai ter que “fazer coisa” para não ser rebaixado: sua obrigação é vencer nada menos do que o campeão Corinthians na casa do adversário. Mesmo com o inegável avanço que o futebol catarinense mostra nos últimos anos, o desafio dos times do Estado na Série A ainda é se manter nela.

 

– A persistir esse modelo de divisão da verba da TV (a maior fonte de receita para os clubes), as chances de um dia brigar pelo título ficam menores para nós e para quase todos os times. Corremos o risco de a disputa do Brasileiro se restringir a duas equipes, como é na Espanha com Real Madrid e Barcelona – acredita Copetti, da Chapecoense.

 

O diretor de marketing está falando dos R$ 180 milhões que Flamengo e Corinthians irão receber pela transmissão de seus jogos em 2016. Para um time como o Verdão do Oeste, com um orçamento anual de R$ 40 milhões, é difícil furar esse círculo vicioso: os times com maior audiência levam mais dinheiro, têm mais partidas televisionadas, mais jogadores de qualidade, mais títulos e, consequentemente, mais torcedores, que dão maiores audiências. Miguel Livramento acha que falta é ousadia para os dirigentes locais:

 

– Tem que assumir alguém com peito para montar um time que brigue na parte de cima da tabela.

 

Enquanto isso não acontece – se é que um dia vai acontecer –, resta torcer, não importa a divisão. Quando Schmidt começou a andar até a Ressacada, há 10 anos, o Avaí estava na Série B. Não é porque o time corre risco de voltar para lá em 2016 que ele deixará de caminhar para levar seu apoio ao Leão.

QUEM SOMOS

Mengálvio

(1939)

 

EMERSON GASPERIN

Repórter

emerson.gasperin
@diariocatarinense.com.br

 

Escreveu o Almanaque do Futebol Catarinense com Zé Dassilva sem revelar para qual time torce. Copero y peleador, disputa cada partida como se fosse a última e beija cada escudo como se fosse o primeiro.

Maycon

(Andréia dos Santos)

(1977)

 

JULIA PITTHAN

Editora

julia.pitthan
@diariocatarinense.com.br

 

Um rádio à pilha, a almofada debaixo do braço e a mão do avô a puxando para dentro do estádio são as lembranças mais antigas que tem do futebol. Gosta de pensar que ele ainda está torcendo toda vez que

seu time volta a jogar.

 

Falcão

(1953)

 

ALINE FIALHO

Editora de arte e diagramação

aline.fialho
@diariocatarinense.com.br

 

Sua paixão por futebol resume-se a um fenômeno quase fisiológico que acontece de quatro em quatro anos, a Copa do Mundo. Herdou a tradição colorada de família, mas só conhece  Falcão e Gabiru.