FALSA PROTEÇÃO

Paula Felitto é mãe de três meninos, bailarina, militante feminista e modelo. Topou ser fotografada para esta reportagem porque acredita que este assunto deva ser espalhado. “Para que mulheres parem de sofrer tanto, pois somos nós mesmas e a nossa sororidade que pode romper esse ciclo horroroso”, defende.

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omente em janeiro de 2017, sete mulheres foram mortas dentro das próprias casas por atuais ou ex-companheiros em Santa Catarina. A estatística levantada pela Secretaria de Segurança Pública indica quase duas mortes por semana. O número já é duas vezes maior do que a média registrada ao longo de todo o ano passado pelo mesmo órgão estadual. No Brasil, a taxa de assassinatos é de 4,8 para 100 mil mulheres — a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Na iminência do Dia Internacional da Mulher deste ano, entre o fim de janeiro e o início de março, cinco feminicídios no Oeste chocaram o Estado: um homem e duas mulheres foram mortas pelo ex-namorado de uma delas em Barra Bonita (SC), cidade distante 57 quilômetros de Cunha Porã (SC), onde três irmãs foram assassinadas também pelo antigo companheiro de uma delas, que tinha apenas 15 anos. Bastante semelhantes entre si, os casos foram antecedidos por agressões psicológicas, verbais e físicas — e também pelo registro de boletins de ocorrência em delegacias de polícia e pela solicitação de medidas protetivas ao poder judiciário.

A realidade do Oeste catarinense se reflete pelo Estado, ainda que em menor escala, devido a uma cultura que perpetua a violência doméstica. Somadas a essa realidade, as falhas no processo pré-estabelecido pela Lei Maria da Penha, pelo Código Penal e, mais recentemente, pela Lei do Feminicídio, que tipifica o homicídio cometido com requintes de crueldade contra mulheres por motivações de gênero, expõem à morte as vítimas que já sofreram algum tipo de violência — e, inclusive, contabilizaram-na junto às autoridades policiais em um ato claro de empoderamento. Quando conseguem desmanchar o relacionamento e expulsar de casa o algoz, elas acabam amedrontadas dentro dos próprios lares. A desassistência permanece até que o companheiro esqueça-a ou mate-a, já que menos da metade dos casos é investigada, a punição não chega a acontecer em mais de dois terços das ocorrências e a reeducação do agressor se resume a casos pontuais.

Abaixo, o Diário Catarinense mostra os problemas no amparo às mulheres vítimas de violência intra-familiar, lembra o caso de Ana Raquel Santos da Trindade, que no fim do ano passado foi absolvida por unanimidade pela Justiça por matar com 12 tiros o ex-companheiro (contra quem mantinha 20 registros por agressões) e aponta possíveis mudanças para este cenário de violência de gênero.

“Acho que a Justiça espera que seja algo mais grave para tomar uma decisão”

gressão verbal e física, estupro, cárcere privado e ameaça de morte. Para completar o ciclo da violência doméstica, só faltou a morte para Ana Raquel Santos da Trindade, 31 anos, natural do interior do Rio Grande do Sul, mas moradora de Florianópolis. A massoterapeuta chegou a prestar depoimentos de mais de quatro horas de duração, chamar policiais civis e militares a sua casa até cinco vezes em um mesmo dia, registrar 20 boletins de ocorrência em delegacias comuns e especializadas, apresentar provas à polícia e solicitar medida protetiva à Justiça.

Nada foi suficiente para que as agressões fossem interrompidas. O descaso do Estado foi, inclusive, motivo de deboche para Renato Patrick Machado de Menezes, que era chefe de Ana Raquel e, inconformado com a negativa da mulher em manter com ele um relacionamento amoroso, passou a persegui-la, humilhá-la e ameaçá-la.

— Em uma das mensagens que eu entreguei na delegacia, ele dizia assim: “não adianta tu tentar medida protetiva. Nada vai fazer com que eu não vá atrás de ti. A Justiça não pode ir contra mim” — conta ela.

E, de fato, polícia e Judiciário, aparatos do Estado que deveriam proteger a mulher antes mesmo de chegar a acontecer uma situação de violência, sequer investigaram o autor dos crimes. Na primeira vez que esteve em uma delegacia para denunciá-lo, Ana Raquel esperava sair com a documentação encaminhada para que ele se afastasse. Foi desencorajada por quem deveria assisti-la, no primeiro de uma sucessão de erros.

— Eles (policiais) diziam que não era para eu entrar em contato com ele, mas era ele que vinha atrás de mim. Continuei fugindo. Continuei denunciando. Desde quando ele me agrediu pela primeira vez, até quando ele tentou me esfaquear na frente do meu filho de três anos. Na delegacia da mulher, o delegado me perguntou: “se tu não queria ser estuprada, por que tu fez amizade?”. Depois disso, não fui mais na delegacia da mulher, só na comum.

Em certa ocasião, a massoterapeuta lembra que o algoz esteve próximo de ser detido, mas livrou-se graças ao pagamento de fiança — o que é proibido desde março de 2015, com a sanção da Lei do Feminicídio.

— Sei até que, naquele dia, o Renato pagou um valor e foi embora da delegacia. Uma ou duas horas depois ele estava no meu portão de novo. Foi a noite toda ele tentando entrar dentro de casa. Chamei a polícia, falaram para mim que não iam mais, porque aquilo era “briga de casal” — desabafa.

Frente ao desamparo, a ideia de fazer justiça com as próprias mãos já estava plantada na cabeça de Ana Raquel.

— Poucos dias antes de eu atirar no Renato, eu conversei com o delegado. Disse que o Renato tinha invadido minha casa e me ameaçado de morte. Ele me disse que não podia fazer nada — lembra, com angústia.

Foi quando Renato invadiu de novo a casa onde Ana Raquel reside até hoje no bairro dos Ingleses, na Capital. Ameaçou “matar todo mundo”, se ela não aceitasse ser sua mulher. Frente à possibilidade de ver morto o filho, fruto de um relacionamento antigo, Ana Raquel pegou a arma que, escondida e clandestinamente, comprara há algumas semanas. Como não havia conseguido concretizar o plano de fugir da cidade, carregou-a com projéteis e atirou. Chora quando lembra daqueles minutos, cujo terror só teve fim quando, presa, ela descobriu que Renato estava morto.

— Eu jamais na minha vida imaginei que ia tirar a vida de alguém. Sempre ajudei um monte de gente, sempre tentei fazer tudo certo na minha vida. Quando eu peguei (a arma) e atirei, eu pensei: meu Deus, o que eu fiz? Aí eu fiquei pensando que era melhor eu ter morrido do que ter tirado a vida dele. (...) Fiquei com medo de que ele fizesse algo com meu filho, isso pesou muito — analisa.

Três anos após o crime, depois de ter deixado a cadeia com um habeas corpus, e quatro meses após ser absolvida por unanimidade em júri popular em Florianópolis, Ana Raquel tenta, aos poucos, restabelecer a vida.

— Eu tinha medo de sair. Até hoje, eu vivo trancada dentro de casa. Não consigo trabalhar. Porque a sensação que eu tenho é que sempre tem alguém atrás de mim. Também não consigo mais confiar em homem nenhum — diz.

Longe de recomendar alguma mulher a matar o próprio companheiro violento, apesar de com frequência receber pedidos de ajuda nesse sentido, o que reforça a ineficiência do Estado, ela considera a decisão judicial um pedido de desculpas.

— Às vezes eu acho que a justiça espera que seja algo mais grave para tomar uma decisão — avalia.

"Até hoje eu vivo trancada dentro de casa. Não consigo trabalhar. Porque a sensação que eu tenho é de que sempre tem alguém atrás de mim. Também não consigo mais confiar em homem nenhum.

 

Ana Raquel santos

da trindade

Massoterapeuta, vítima de violência contra a mulher

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O PROCESSO - E AS FALHAS - DA PROTEÇÃO À VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

EXPECTATIVA

REALIDADE

VIOLÊNCIA CONSUMADA

REGISTRO DE B.O.

MEDIDA PROTETIVA

 

INVESTIGAÇÃO

DENÚNCIA

JULGAMENTO

Fonte: Leis 11.340/2006 e 13.104/2015, Secretaria de Segurança Pública de SC, Defensora Pública Fernanda Mambrini Rudolfo e professora de Direitos Humanos Daniela Félix

Em tese, a Lei Maria da Penha protege a mulher da violência doméstica e familiar: física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral. Para isso, o primeiro capítulo do texto versa sobre as medidas integradas de prevenção, em nove itens.

Depois de qualquer violência doméstica e familiar, a mulher deve procurar uma delegacia (especializada ou não) para registrar um boletim de ocorrência. Ela vai narrar a agressão sofrida, apontar o suspeito, entregar possíveis provas (como fotos ou mensagens) e deixar os dados pessoais. Os policiais podem pedir para que ela retorne para complementar a investigação. Ela não pode retirar a queixa, e a delegacia fica obrigada a apurar a situação exposta. Dependendo do tipo de violência, a mulher deve receber autorização para realizar um exame de corpo de delito no IML ou IGP. Ela também pode ser encaminhada a um psicólogo na própria delegacia.

Ainda na delegacia, os policiais devem perguntar sobre o interesse da mulher em uma medida protetiva, que estabelece uma distância mínima de afastamento físico do companheiro, se concedida judicialmente. A situação de risco em que a mulher está envolvida é o balizador da fixação da medida protetiva. Se houver risco, ela pode ser encaminhada a uma casa de abrigo.

Em paralelo à medida protetiva, é dado início ao processo criminal. Em 2016, 40% dos boletins de ocorrência envolvendo violência contra a mulher registrados em Santa Catarina foram investigados, segundo a Secretaria de Segurança Pública. O resultado dessa investigação é encaminhado ao Poder Judiciário. Nessa fase, que deve durar até seis meses, a mulher pode ser novamente chamada à delegacia, bem como o companheiro.

Quem decide pela denúncia do suposto agressor é o Ministério Público, que deve receber o resultado do inquérito da Polícia Civil. Se houver a denúncia, o processo criminal começa a tramitar na Justiça. Nesse momento, há o direito de defesa do acusado e são solicitados novos depoimentos da mulher e de testemunhas.

Ao final do processo, pode haver condenação e aplicação da pena correspondente, que pode variar de três meses a três anos de detenção em regime fechado. Em 2015, com a aprovação da Lei do Feminicídio pela ex-presidente Dilma Rousseff, a penalização foi aumentada em um terço até a metade se o crime tiver sido praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência. O texto também torna a violência doméstica inafiançável.

As diretrizes não impedem que o companheiro faça da esposa uma vítima.

A subnotificação — quando o número de casos registrados é menor do que a realidade porque nem todas as vítimas fazem o BO — atrapalha o diagnóstico real. Quando o BO é feito, é comum a mulher sofrer um pré-julgamento. Muitas relatam perguntas intimidadoras, como “você estava usando essa roupa curta?”, “mas você pediu o tapa, né?”, entre outras. Isso acontece com maior frequência em delegacias não especializadas, mas há relatos nas próprias delegacias da mulher. Não raro, a mulher narra a violência sofrida em uma sala com as portas abertas, enquanto outras pessoas podem ouvir as informações, que são de foro íntimo. Nem todas as delegacias têm psicólogo disponível.

É comum que os policiais civis não orientem a mulher sobre essa possibilidade, que deve ser encaminhada pelo delegado em até 48 horas. A vítima também pode requerer a medida protetiva voluntariamente, mas muitas não são informadas sobre isso. O pedido pode ser feito ainda em uma defensoria pública ou no Ministério Público. A partir dele, a Justiça tem dois dias para decidir se concede ou não a medida protetiva. Quando sim, falta fiscalização do cumprimento da ordem por parte dos agressores. Mas, às vezes, a medida é negada – e a palavra da mulher, enfraquecida. No Estado, também não há casas de passagem suficientes para as vítimas de violência.

A Polícia Civil de SC diz que é comum as vítimas não continuarem a representação e, por isso, justifica, a investigação é prejudicada. Outro problema é a dificuldade em produzir as provas, em função da precarização da Segurança Pública, segundo Daniela Félix. Com frequência, o prazo de um semestre para investigar o crime é ignorado, porque ele não é elencado como prioridade e há pouco efetivo policial. O processo é arquivado.

Em 2016, 77% dos inquéritos dos principais crimes de violência doméstica foram remetidos ao Ministério Público, de acordo com os dados da Secretaria de Segurança Pública. Na comparação com o número de boletins de ocorrência registrados por mulheres que sofreram algum tipo de violência, o índice de denúncias do agressor cai para 31%.

Santa Catarina só possui três varas especializadas em violência doméstica, sendo uma na capital e outras duas no interior. Há um acúmulo de processos nesses espaços e em outras varas criminais, que não dão conta de julgar, penalizar ou reeducar o agressor com a celeridade necessária.

“A lei não altera a cultura”

Daniela Felix

Advogada popular, professora de Direitos Humanos
e coordenadora do Grupo de Pesquisa e Estudos em
Direito de Gênero e Feminismos do Cesusc

A Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) foi promulgada a partir da condenação do Estado brasileiro à melhoria do seu Sistema de Justiça no trato das violências de gênero, com base em um caso concreto de violência do marido contra a esposa. Por certo é um marco histórico no Brasil de enfrentamento às violências de gênero e doméstica, assim como a Lei do Feminicídio (nº 13.104/15), que trouxe a qualificadora no crime de homicídio, quando praticado em face das mulheres, sejam vítimas de violência doméstica ou de gênero. Contudo, as legislações não trazem em si (e por si) indicativos significativos de avanços às pautas femininas, feministas, à luta contra o patriarcado e, principalmente, não têm influído na redução dos índices de violências, mesmo ultrapassados 10 anos de vigência.

São tantas as reflexões a serem feitas, mas o que se verifica concretamente é que pouco avançamos nesse processo de combates e erradicação das tantas dores. O sistema de justiça criminal (composto pelos órgãos policiais, Ministério Público e Poder Judiciário), com suas perspectivas e metodologias de combate ao fato crime, tem agravado ainda mais a problemática. Suas intervenções não alcançam, e nem sequer pretendem, uma solução viável que tenda à alteração do curso histórico e sociológico. O cumprimento dessas leis não influi significativamente nos processos culturais edificados sobre concepções machistas, misóginas e patriarcais, e muito menos nas violências que envolvem muitas relações entre homens e mulheres (aqui fala-se em relações heteronormativas). A lei não altera a cultura.

Por outro lado, percebe-se que as pautas de gêneros e feminismos vêm sendo potencializadas nos últimos três anos com as lutas do campo político, ante a possíveis retrocessos legislativos. As mulheres passaram a ocupar as ruas e a protagonizar movimentos pelos seus direitos sociais e reprodutivos, e, por consequência, trouxeram à tona violações históricas de seus corpos, seja por violências físicas, morais ou sexuais. Penso ser este o caminho: tirar o debate das violências contra as mulheres do campo jurídico-penal e levar às ruas, fazendo-se a luta política, a fim de libertar todas as mulheres dos mecanismos estruturais e estruturantes que as oprimem.

Lei existe. O que ela prega, não

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  Organização das Nações Unidas (ONU) considera a Lei 11.340/2006, que leva o nome da brasileira Maria da Penha, um dos três melhores códigos do mundo quando o assunto é proteger as mulheres. O que a lei prega, no entanto, não se reflete na prática. O resultado disso é uma falta de enfrentamento real da violência doméstica no Brasil, que se agrava com a realidade de cada Estado.

Na avaliação da professora de Direitos Humanos do Cesusc, Daniela Felix, a legislação sozinha não dá conta de assistir integralmente a mulher agredida. Para diminuição dos índices de feminicídio, por exemplo, ela argumenta ser necessária uma mudança cultural profunda na sociedade, que ainda vê o gênero feminino de maneira inferior ao masculino:

— A lei ampara, mas a política precisa ser construída. O Estado geralmente é chamado depois do crime, e aí a gente só consegue enxugar o gelo.

Para a advogada criminalista, os erros do Estado persistem de forma sistemática, agravando-se logo no início do processo, quando a mulher registra o boletim de ocorrência.

— O mais problemático é a violência sofrida pela vítima nesse primeiro enfrentamento. Essa dupla violência que ela sofre em um momento de extrema fragilidade, quando geralmente é atendida por um homem que não deixa de fazer o pré-julgamento da situação — aponta.

A coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (Dpcami) em Santa Catarina, Patrícia Zimmermann, justifica-se ao lembrar do problema histórico da falta de efetivo da Polícia Civil no Estado, que conta atualmente com 3,2 mil servidores. A delegada lembra que novos policiais devem ser chamados pelo governo ainda neste semestre e, portanto, acredita na possibilidade de melhoria nesse atendimento inicial, considerado por ela imprescindível.

— Não é qualquer boletim de ocorrência que vai resultar em um feminicídio. Mas grande parte dos feminicídios é precedida de uma ocorrência anterior. Então, a gente precisa dar atenção a essa situação no início também, que exige capacitação frequente — reconhece.

A delegada acrescenta outro impeditivo para redução da violência de gênero na rede de proteção às vítimas.

— Nós precisamos do fortalecimento das equipes multidisciplinares. Porque empoderar a mulher não é só dar trabalho. Você precisa ter o grupo da assistência social, o grupo de psicólogos, o pessoal da área da saúde. E não é só tratar a mulher. A gente precisa pensar no tratamento para o cônjuge agressor, para o filho, porque ele reproduz aquilo que ele vê em casa. Se nós tivermos uma equipe multidisciplinar atendendo vítimas, autores e filhos desse casal, a gente vai começar a compreender o fenômeno da violência doméstica e vai poder trabalhar com a redução de índices. Porque há uma relação de afeto, que torna tudo mais difícil — pondera.

Medida protetiva que não protege

omente em 2016, a Justiça de SC concedeu 6,6 mil medidas protetivas a mulheres vítimas de violência doméstica. O pedido, garantido pela Lei Maria da Penha, pode ser feito na delegacia em que é registrado o BO. Mas nem sempre é o que acontece. Para a defensora pública Fernanda Mambrini Rudolfo, a dúvida da palavra da mulher, que com frequência leva ao indeferimento do pedido de afastamento do agressor, e a falta de fiscalização do cumprimento a medida tornam o contexto de proteção bastante desafiador.

— Há duas circunstâncias: a primeira é quando a medida protetiva é negada, porque só tem a palavra da mulher. Foi o caso da Ana Raquel (Santos da Trindade, que matou um homem após o registro de 20 boletins de ocorrência por crimes variados). Mas sinceramente, mesmo se (a medida) tivesse (sido concedida), não seria respeitada. Essas medidas não são eficazes porque não são fiscalizadas. Isso é de atribuição de todo o sistema de Justiça, do poder judiciário e da polícia — explica.

Apesar de garantir que a medida protetiva seja expedida em prazos inferiores aos previstos em lei, chegando a 10 horas em algumas delegacias catarinenses frente às 48 horas exigidas, a delegada Patrícia Zimmermann reconhece o problema:

— Precisamos que ela (vítima) noticie isso (a aproximação do agressor) para que a gente possa informar ao juiz, que deve analisar se é o caso de decretar a prisão preventiva dele.

Para a especialista em Direitos Humanos, Daniela Félix, a fiscalização deveria ser de responsabilidade da Secretaria de Justiça e Cidadania, que também cuida das medidas cautelares. Frente à indefinição, a Polícia Militar de Chapecó tomou a frente do serviço no Oeste de Santa Catarina. Na tentativa de garantir o afastamento do agressor, a corporação implantou em novembro de 2016 o projeto Guardião Maria da Penha. Três policiais militares, preferencialmente mulheres, fazem rondas semanais nas casas de vítimas de violência com medidas protetivas em vigor a fim de se certificar de que elas e os filhos passam bem.

— A gente espera que as vítimas queiram fazer parte do programa, mas depende da manifestação de cada uma delas. Nós pegamos o endereço, fazemos acompanhamento e ela fica com o nosso telefone para contato direto. Qualquer emergência de aproximação do marido, a guarnição vai e prende em flagrante, porque temos profissionais focados nesse atendimento 24 horas por dia — explica o tenente-coronel da PM em Chapecó, Ricardo Dias.

Desde que o programa começou, quatro homens foram detidos por desrespeitarem a medida. Para o policial, que conta que o projeto nasceu de um estudo acadêmico de outra militar da região, o Oeste necessita da iniciativa devido a uma maior incidência de crimes de violência contra a mulher.

— As mulheres que se inserem nesse programa acabam tendo subterfúgio e se sentindo mais seguras em uma região essencialmente paternalista. Os policiais têm treinamento psicológico e orientam elas a buscarem outras alternativas na vida. Para que elas entendam que não é o fim do mundo uma eventual separação — diz ele.

A ideia tem sido bem recebida e existe um projeto de lei em tramitação na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) com a intenção de ampliá-la a todo o Estado. O texto, do deputado Keneddy Nunes (PSD), precisa passar por três comissões antes de ir a Plenário. Foi nesse curso legislativo que outra matéria que tinha a intenção de “mapear” a localização dos homens com medida protetiva deferidas acabou sendo barrada. Os parlamentares catarinenses decidiram por arquivar a proposta das tornozeleiras eletrônicas para os agressores por considerarem-na inconstitucional devido à geração de custo adicional ao governo.

 

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Marcio Cunha / Especial Exceção ao problema, Chapecó tem o projeto Guardião Maria da Penha, que fiscaliza as medidas protetivas

Da ocorrência à punição,

um caminho de falhas

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e o homem que agride a mulher não chega a ser preso preventivamente, ele tampouco é detido em um eventual julgamento de processo criminal. Em se tratando dos cinco principais crimes de violência doméstica que são registrados em SC (ameaça, lesão corporal dolosa, estupro e feminicídio), só um terço dos BOs resulta em inquérito remetido ao MP, conforme os dados da Secretaria de Segurança Pública.

A coordenadora das Dpcamis no Estado, delegada Patrícia Zimmermann, justifica o cenário devido ao recuo que, eventualmente, a vítima dá na representação criminal:

— A maioria das denúncias é por ameaça. Nem todas viram inquérito, porque, na maioria das vezes, a mulher só quer deixar registrado. Se ela não representa, acaba ali. Elas saem da delegacia com uma data em juízo, mas, muitas vezes, dizem que não querem mais (processar criminalmente o agressor). E aí a agressão volta a acontecer.

A desembargadora do Grupo de Monitoramento e Fiscalização, que englobou a antiga Coordenadoria de Execução Penal e Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Cínthia Schaeffer, confirma o cenário. Ela acrescenta que o Estado tem apenas uma vara focada em violência doméstica, o que, por vezes, torna moroso o trânsito dos processos criminais e das medidas protetivas.

— As varas criminais do interior acumulam os processos de violência doméstica. Nossa orientação é para os juízes darem prioridade a esses casos, mas há um acúmulo e, quando as próprias mulheres não desistem do procedimento, nem sempre eles são julgados com a rapidez necessária. De qualquer forma, a nossa prioridade é o réu preso. Ao que prescreve a lei, considero a punição adequada, principalmente depois da nova roupagem que o feminicídio deu, devido à misoginia (ódio às mulheres) — afirma, ao lembrar que a pena por matar a companheira pode ir de

12 a 30 anos de prisão.

No Brasil, menos da metade dos inquéritos de feminicídio instaurados entre março de 2015 e novembro de 2016 foram denunciados à Justiça. Os 47,93% estão bem longe da meta de 100% estipulada pelo Conselho Nacional do Ministério Público.

— A gente só pode oferecer a denúncia se houver elementos suficientes para isso. Pode acontecer de não ter uma linha de investigação definida, faltar os elementos ou provas e o laudo demorar a chegar. Muitos casos ainda podem ter oferecida a denúncia, não foram arquivados. Vamos perseguir essa meta para zerar as investigações — argumenta Lúcia Iloizio, à frente do Grupo Especial de Combate a Homicídios de Mulheres no Conselho.

Marisa Sanematsu, coordenadora do Dossiê Feminicídio, do Instituto Patrícia Galvão, reforça a visão de gênero que deve permear o processo, desde a investigação até o julgamento:

— (É preciso) tentar identificar o que o fato de a vítima ser mulher alterou nos acontecimentos. No feminicídio íntimo, dentro de casa, não é apenas olhar para uma cena de crime e falar que matou por ciúmes. Ninguém está olhando o contexto de violência que precedeu aquele desfecho. Se os investigadores começarem a olhar para as denúncias de violência doméstica com mais atenção, com mais sensibilidade, podemos conseguir evitar muitas mortes, muitos desfechos trágicos.

 

Do registro à denúncia

Número de BOs e de inquéritos instaurados por tipo de ocorrência

envolvendo violência doméstica em Santa Catarina.

*A SSP difere estupro tentado e consumado, mas na Lei 12.015/2009, que reformula o Código Penal, os dois são considerados estupro

Rede de assistência é insuficiente

o

O governo estadual afirma que há 361 Centros de Referências de Assistência Social (Cras) em 286 municípios e promete construir outras

31 unidades ainda neste ano, ao custo de R$ 34 milhões. A situação é pior em relação aos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), que são somente 92 em 81 cidades — outros 11 estão previstos também para 2017. A cobertura dessa última modalidade de atendimento, que foca no atendimento continuado a indivíduos e famílias com direitos violados, só abrange 31% do Estado.

A Casa da Mulher Brasileira — projeto do governo federal que concentra Cras, Creas, abrigo de passagem, Delegacia de Polícia, Instituto Geral de Perícias, Defensoria Pública e Vara Criminal — facilitaria o atendimento às mulheres em situação de violência. Prometida para 2015 em Santa Catarina, a iniciativa da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), do então governo Dilma Rousseff, corre o risco de ser inviabilizada depois do impeachment. A nova secretária da pasta, Fátima Pelaes, diz que não, mas também não apresenta data para início das obras no Estado, que estavam previstas para Florianópolis, ao lado da Delegacia da Mulher, no bairro Agronômica, e já tinham orçamento para manutenção reservado.

— O programa não foi interrompido. Além das três casas já em funcionamento, em Campo Grande (MS), Brasília (DF) e Curitiba (PR), mais quatro unidades da Casa da Mulher Brasileira serão inauguradas no primeiro semestre de 2017: Boa Vista (RR), São Paulo (SP), Fortaleza (CE) e São Luis (MA) — contabiliza.

Presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim), Sheila Sabag, tem diagnóstico mais desanimador em relação à construção da Casa da Mulher Brasileira em Santa Catarina. De qualquer forma, ela garante que o governo estadual fez a sua parte.

— O Estado fez a doação e o processo estava tramitando, mas parou, inclusive porque a SPM não tem recursos suficientes para construir as casas. As que já estavam sendo construídas serão finalizadas, as demais estão paradas e não têm prazo para iniciar. Foram cortados aproximadamente 50% dos recursos da secretaria, que agora depende das emendas parlamentares para financiar seus projetos — conta Sheila.

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expediente

REPORTAGEM

gabriele duarte

fotografia

Betina humeres

edição

natália leal

edição de fotografia

Ricardo WolffenbÜttel