a falta de balneabilidade das praias desperta a reflexão sobre os impactos da exploração do litoral catarinense e cobra a responsabilidade de quem vive,  visita, governa, fiscaliza ou empreende no Estado

vômito e a diarreia vieram fortes. Da penúltima semana de 2015 a primeira deste ano, o número de casos de virose identificados pelos dois sintomas em Florianópolis pulou de 200 para 1,2 mil. Embora a Vigilância Epidemiológica não tenha atribuído o surto – atípico mesmo para uma época em que costumam aumentar as ocorrências – a algum fator específico, tudo aponta para o contato com águas impróprias como o motivo determinante. Mas o que elevou os níveis de coliformes fecais desperta a reflexão sobre os limites da exploração do litoral catarinense.

 

Cerca de 70% das pessoas infectadas frequentaram praias, principalmente Ingleses (32%), Canasvieiras (20%) e Ponta das Canas (11%). Todas apresentaram contaminação acima do normal segundo relatório da Fundação do Meio Ambiente (Fatma) que analisou a balneabilidade de 208 pontos no Estado de 4 a 7 de janeiro. Somente entre os dias 7 e 9, 215 pessoas com quadro de gastroenterite foram atendidas na Unidade de Pronto Atendimento do norte da Ilha, onde ficam as três praias citadas.

 

A avaliação mais crítica ocorreu em Canasvieiras. Seus oito pontos monitorados foram reprovados pelo levantamento. Nenhum pedaço de sua extensão era recomendável para um banho sequer. Segundo a Fatma, a razão para a proliferação das bactérias Escherichia coli é o esgoto despejado diretamente no mar. Mais da metade (51,6%) dos 3.010 imóveis inspecionados pela prefeitura no bairro nos últimos dois anos não possui ligações de esgotamento sanitário regulares. Na vizinha Cachoeira do Bom Jesus, o índice chega a 57%. Os proprietários são notificados e, se não se mexerem, multados. Em 2015, foram 45 mil notificações no norte da Ilha.

 

O rio do Braz se tornou um símbolo da degradação. Para conter o avanço de suas águas poluídas pelo descarte de dejetos, a prefeitura recompôs a faixa de areia que o separa do mar de Canasvieiras. Na madrugada de sexta-feira, uma chuva forte desmanchou a contenção e o esgoto voltou a jorrar forte na praia. Um cheiro podre tomou conta da área, dando sinal inequívoco de que algo não estava bem.

 

A Companhia Catarinense de Água e Saneamento (Casan) anunciou que irá implantar mais uma bomba para ampliar o fluxo de dejetos até a estação de tratamento. Completando o pacote de medidas paliativas, serão lacradas as saídas de esgoto dos imóveis não conectadas à rede. São 28 unidades comerciais, cujos donos já foram notificados e multados, mas ainda não se adequaram.

 

Como no romance Ensaio sobre a Cegueira, em que a súbita perda da visão em um motorista contagia a população e provoca o caos, a situação verificada no início de 2016 na capital põe em xeque o nosso tão propalado “padrão de primeiro mundo”. No livro do português José Saramago (adaptado para o cinema pelo diretor Fernando Meirelles), a disseminação da “treva branca” acentua um mundo já sombrio. Na Santa & Bela Catarina, as bandeirinhas vermelhas vetando 71 pontos da orla em plena temporada revelam que cada um – poder público, iniciativa privada e indivíduo, seja morador ou turista – tem sua parcela de responsabilidade para que chegássemos a esse estágio.

 

Enquanto na ficção escrita pelo prêmio Nobel de literatura o fato que desencadeou a história surgiu de repente, na realidade catarinense as causas e consequências são bastante conhecidas. Pelo menos desde 2001, relatórios da Fatma denunciam que a balneabilidade em Canasvieiras está condenada nas imediações do rio do Braz. No lado oposto da Ilha, o Riozinho, no Campeche, está limpo. O curso d’água que batiza o badalado point, no entanto, vinha oscilando entre próprio e impróprio desde 2012, até ser dado como inapropriado em todas as medições de 2015.

 

– Aqui sempre teve poluição. Quando começaram a fazer os condomínios, aumentou. Desconfio que tem gente que despeja o esgoto à noite, porque pela manhã exala um cheiro forte – diz o nativo Dalmir Santos, 53 anos, lembrando que até meados da década de 1980 cansou de tomar banho no Riozinho com então “dois, três metros de profundidade”. Hoje a água bate no joelho, se tanto.

 

Não à toa, na edição 2015 do Índice de Competitividade do Turismo Nacional, elaborado pelo ministério do setor em parceria com o Sebrae e a Fundação Getúlio Vargas para fornecer um retrato detalhado de 65 destinos indutores, Florianópolis não apareceu entre os 10 mais bem-posicionados em sete dos 13 indicadores aferidos. Um deles foi “aspectos ambientais”, que abrange estrutura e legislação municipal de meio ambiente, atividades em curso potencialmente poluidoras, rede pública de distribuição de água, rede pública de coleta e tratamento de esgoto, coleta e destinação pública de resíduos, patrimônio natural e unidades de conservação no território municipal.

 

Conforme o professor Daniel Silva, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFSC, considerando-se apenas a atividade turística, a quantidade de visitantes a ser recebida deve ser definida por estudos de capacidade de suporte do ambiente. Isso implica exatamente nos critérios levados em conta na modalidade em que Florianópolis deixou a desejar.

 

– Portanto, o que estamos vivendo neste verão é resultado dessa falta de infraestrutura permanente e de uma cultura sustentável da economia do turismo. Pensar que a improvisação na recepção aos turistas pode resolver porque se trata de uma demanda sazonal é exatamente o limite que está nos levando ao colapso – alardeia.

 

Não é só o esgoto que preocupa. Em seis etapas do projeto Limpeza dos Mares em 2014 e 2015, a Associação Náutica Catarinense para o Brasil (Acatmar) recolheu 23 toneladas de lixo. Destas, 10 foram retiradas do fundo do canal da Barra da Lagoa, em Florianópolis, e sete da praia de Palmas, em Governador Celso Ramos.

 

– Encontramos gabinetes de computador, carrinhos de bebê, televisões – afirma o presidente Mané Ferrari.

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A pedido da reportagem, o professor Daniel Silva, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFSC, calculou as necessidades de 1 milhão de pessoas – como volta e meia é estimada a população de Florianópolis na temporada – a sugeriu potenciais soluções sustentáveis para supri-las:

Abastecimento de água – Seriam precisos 200 milhões de litros por dia, algo em torno de 2,3 mil litros por segundo. É o dobro da atual captação na fonte que abastece grande parte da cidade, a bacia do rio Cubatão, em Santo Amaro da Imperatriz, na Grande Florianópolis. As estratégias englobariam a redução das perdas que são de quase 40% para patamares de um dígito e a proteção dos aquíferos e nascentes com a perspectiva de aumentar a capacidade de autonomia de oferta de água a partir da própria Ilha, hoje dependente sobretudo da Lagoa do Peri.

 

Esgotamento sanitário – Para cada litro de água fornecido e usado pelas pessoas seria gerado um litro de esgoto. Ou seja, 200 milhões de litros diários e uma capacidade de tratamento de 2,3 mil litros por segundo, algo fora de cogitação atualmente. Uma saída seria a adoção das pequenas estações de tratamento já utilizadas pela Casan, combinada com tecnologias ambientais descentralizadas por bairros e maior eficiência do controle e operação, sem o uso de emissários.

 

Resíduos sólidos – A dificuldade estaria em encontrar sítios disponíveis para mais aterros sanitários na região metropolitana, para onde é levada a totalidade dos resíduos sólidos provenientes da Ilha. A receita, nesse caso, exigiria uma mudança cultural (e radical) no consumo, impactando na produção e no tratamento daquilo que iria se jogar fora. Como? Estimulando as comunidades a consumir menos materiais descartáveis e a fazer reciclagem.  Afinal, 90% do lixo que produzimos são restos orgânicos e matérias recicláveis como papel, plástico, alumínio, ferro e vidro.

 

Drenagem pluvial urbana – Com a educação ambiental e a governança local, a comunidade poderia fazer a manutenção. Entretanto, o sistema todo iria requerer uma redefinição das dimensões das canalizações quanto de logística de escoamento. As dimensões atuais são insuficientes para as chuvas intensas e o direcionamento para os antigos córregos que hoje estão contaminados também não é mais seguro. Teria que se construir sumidouros e revitalizar as inúmeras pequenas lagoas e lagos da Ilha para receber as águas superficiais que hoje estão perdidas pela cidade por escoarem completamente fora de seus cursos naturais.

O

aindo da capital, a Prainha do Farol de Santa Marta, em Laguna, um paraíso alternativo nos anos 1970, também atravessou o ano passado inteirinha sem condições de balneabilidade. A placa que avisa isso, porém, foi arrancada. No local vivem 3 mil pessoas, que passam de 10 mil na temporada. Os nativos falam que 12 loteamentos estão previstos nos arredores, somando 6 mil lotes – muitos deles desrespeitando áreas de preservação permanente, nascentes de água e sambaquis. Um dos quais, inclusive, pertence a Ronaldinho Gaúcho, que comprou 47 hectares na localidade de Campos Verdes.

 

A perspectiva de ver seu reduto ameaçado, além de pelos dejetos lançados a céu aberto pelo impacto que haverá se todos esses empreendimentos se confirmarem sem o cumprimento das regras estabelecidas, lança uma série de dúvidas entre os moradores.

 

– Será que vai haver água potável para todos? As comunidades tradicionais serão descaracterizadas? E o lixo de toda essa galera? – pergunta o biológo Reinaldo Langer Jaeger, presidente da associação de surfe local e integrante do Movimento Natural e Cultural da cidade (MNCL).

 

Para o gaúcho de 34 anos que, de tanto viajar para o Farol para pegar onda em 2008 se mudou de prancha e cuia para lá, são questões que não incomodam um tipo de turista: “Aquele que, tendo cerveja e som alto, tanto faz se há cheiro de cocô”.

 

A prefeitura garante que o tema esgoto está na pauta. De acordo com o secretário municipal de Turismo, Lazer e Comunicação, Iberê Aguiar Jaques, a intenção é que o saneamento chegue assim que forem concluídas as obras em andamento em outros bairros da cidade. No Mar Grosso, a fiscalização está lacrando os imóveis sem ligação na rede.

 

– Criou-se no Brasil, uma espécie de pragmatismo às avessas, onde toda a situação de calamidade em que vivemos, por exemplo no saneamento, na mobilidade e na segurança, são tidas quase como naturais, quase como resultados inevitáveis do crescimento. É falso: a crise é de planejamento, de enfrentamento e não do desenvolvimento – comenta o arquiteto e urbanista Dalmo Vieira Filho, superintendente do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis de 2013 a abril de 2015.

 

O receio dele é de que situações experimentadas somente nas semanas de pico da temporada virem nosso cotidiano daqui a alguns anos se nada for feito. Ou, como escreveu Saramago, “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”.

a prainha do FAROL DE SANTA MARTA, EM LAGUNA, UM PARAÍSO ALTERNATIVO NOS ANOS 70, ESTÁ SEM BALNEABILIDADE —

E TAMBÉM SEM A PLACA QUE AVISA ISSO, JÁ QUE ELA FOI ARRANCADA

 

PRAIA DOS INGLESES. FOTO DIORGENES PANDINI

 

PRAIA DOS INGLESES. FOTO DIORGENES PANDINI

 

 PRAINHA DO FAROL DE SANTA MARTA . FOTO MARCO FAVERO

 

PRAIA DE CANASVIEIRAS. FOTO DIORGENES PANDINI

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