INSPIRADAS em ideais de respeito à natureza e ao próximo, as ecovilas surgiram como uma opção ao ritmo estressante das grandes cidades, mas exigem uma mudança radical de mentalidade de quem está pretendendo “largar tudo” para morar em uma delas

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MARCO FAVERO

marco.favero@horasc.com.br

 

ra uma noite fria de 1996 em Atibaia, no interior do Estado de São Paulo. Sob a luz da lua, quatro pessoas se dirigem a um bosque próximo à Pedra Grande, cartão-postal da região. Enquanto as nuvens passavam rápido no céu, uma fogueira foi preparada. Havia uma energia no ar, seria uma noite especial. O grupo se senta ao redor do fogo e começa a meditar. Fitando o trepidar das chamas, o coração da argentina Eliana Gavenda se enche de paz e ela tem uma epifania. Vem à sua mente a imagem de um vale verde. Nele havia uma floresta onde podia se ver um telhado. De repente, ela escuta uma voz dizendo as palavras “aldeia” e “sul”.

 

Assim começou a nascer a Bio Aldeia Arawikay, a única ecovila do Estado registrada nas duas principais entidades mundiais do gênero, a Rede Global de Ecovilas e a Irmandade das Comunidades Intencionais (GEN e FIC, na sigla em inglês). Segundo o administrador de empresas Gabriel Siqueira, mestre pela UFSC em gestão de comunidades intencionais e similares, são assentamentos funcionalmente completos, em que as atividades humanas estão integradas com a natureza de forma sustentável. Em suma, uma sociedade alternativa que remete aos ideais do movimento hippie das décadas de 1960 e 1970, na qual o respeito ao meio ambiente e ao próximo andam de mãos dadas.

 

Intrigada com a revelação, Eliana resolveu compartilhar o ocorrido com a amiga Tania Valladares, pessoa sensível e mais experiente na prática da meditação. Tania, que também estava ao redor da fogueira, disse ter percebido algo de sagrado naquela noite e interpretou que a visão serviria de orientação para elas. Naquele momento, as duas decidiram ir atrás de um lugar de florestas e paz “sem saber exatamente como e o que aconteceria nele”, relata a argentina.

 

Ambas caíram na estrada e, entre idas e vindas, acabaram se estabelecendo em Florianópolis para lecionar em um curso universitário de Naturologia. Já cansadas da procura pela tal floresta, cada uma rogou por um sinal que indicasse qual propriedade deveria ser adquirida. Eliana pediu que encontrasse alguma coisa artesanal no terreno, Tania queria que tivesse árvores cítricas.

 

A cidade de Antônio Carlos sempre deixou Eliana intrigada. “O que será que tem naqueles vales?”, perguntava-se. Em agosto de 2000, elas visitaram a região na Grande Florianópolis e encontraram um terreno à venda. O dono havia colocado um preço alto demais, mas sabia que o vizinho também queria vender o dele. Feito o contato, esse outro proprietário hesitou quanto à vontade de se desfazer de suas terras. Até sua esposa ouvir a conversa e, esticando a cabeça para fora da janela, gritar: “Ele quer vender, sim”. Não só o preço era mais acessível, como também havia um imponente engenho e um pomar de frutas cítricas – exatamente os sinais que a dupla tanto ansiava.

 

– Foi amor à primeira vista – admite Eliana, que comprou a fazenda na hora.

 

A dupla batizou o lugar de Bio Aldeia Arawikay, que significa “canção do ser” em quéchua (língua indígena falada por diversos grupos étnicos espalhados pelos países andinos, na América do Sul).

 

– Todos temos musicalidade. Somos vibração, afinação. O caminho da biofilia é cantar uma canção todos juntos – explica a hermana, hoje com 53 anos.

 

A biofilia é um dos pilares da iniciativa. Conforme Eliana, representa nosso vínculo com o ecossistema em um sentido mais próximo. É fazer parte e amar. Isso se reflete na maneira como as duas cuidam da fazenda. Quando adquirida, existiam apenas três nascentes. Agora, graças ao trabalho de manejo florestal, já há sete.

 

– Aprendemos com a natureza o que fazer com ela – conta.

 

As matas também receberam atenção especial. Cada vez mais densas e espalhadas, a aldeia já tem 40% de seu território formalmente registrado como intocável. A meta é atingir 80%. O terreno, localizado a 12 quilômetros do centro de Antônio Carlos, possui 18 hectares e nele pode-se encontrar irarás, quatis, tatus, tucanos, iguanas, cobras e outros tipos de animais. Sem falar da flora exuberante, que ainda inclui as frutas cítricas de Tania.

 

Outro pilar é a resiliência, que significa estar pronto para enfrentar desafios da vida, ter vitalidade e criar oportunidades para se alimentar dessa vitalidade. Tânia acredita que nosso corpo está em constante troca de energia com o ambiente. Algumas situações nos retiram essa energia e outras nos reabastecem. A radiação emitida por alguns eletrônicos, por exemplo, nos desvitaliza.

 

– É preciso encontrar alguma forma de compensar isso. O contrário da tecnologia é a natureza – prega.

 

Apesar disso, elas não se dizem radicais e não dispensam celulares e computador pessoal.

 

– A Bio Aldeia Arawikay é para ampliar a percepção, proporcionar novas experiências e valorizar a diversidade – conclui.

LUGAR PERFEITO

Desde a Antiguidade, o homem pensa em comunidades baseadas em modelos alternativos de convivência, de consumo e de governo. Veja alguns exemplos na filosofia e na história:

A República, de Platão

A cidade ideal preconizada pelo filósofo grego em uma de suas obras mais famosas teria 5.040 habitantes e seria regida pelo bem e pela justiça.

 

Utopia, de Thomas Morus

Na sociedade imaginada pelo escritor inglês, a intolerância e o fanatismo eram punidos com o exílio e a escravidão, havia liberdade religiosa, a propriedade individual e o dinheiro eram incompatíveis com a felicidade e o parlamento zelava pelo bem do povo.

 

Falanstérios

O intelectual francês Charles Fourier sugeria comunidades de 2 mil a 3 mil pessoas, com produção e consumo

baseado no sistema de cooperativismo e liberdade individual para que cada um desenvolvesse suas vocações. Em Santa Catarina, os colonos franceses implantaram o Falanstério do Saí em 1841 às margens da Baía da Babitonga, próximo a São Francisco do Sul.

 

New Harmony

Em seus escritos, o inglês Robert Owen  propunha associações de trabalhadores formadas por comunidades com população de 500 a 300 pessoas . Após mudar-se para os Estados Unidos, ele fundou uma colônia socialista chamada New Harmony em 1828 em Indiana. A experiência durou pouco e o fez perder 80% de sua fortuna.

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alando em diversidade, as criadoras da aldeia afirmam que seu público é bastante eclético. Tania estima que ao longo de 15 anos em atividade elas já receberam mais de 1,5 mil pessoas das mais variadas nacionalidades e profissões, “formando uma comunidade com cada uma que veio”. Entre os visitantes, há desde aqueles que buscam um estilo de vida alternativo a empresários estressados. Um desses executivos, pertencente a um grupo italiano, inclusive, chegou a fazer uma proposta milionária para a dupla.

 

– Fiz as contas e dava para viajar o resto da vida pelo mundo, mas resolvemos não vender por acreditar no nosso propósito – conta Eliana, rindo ao relembrar o causo.

 

Cada experiência vivida na Arawikay é única, tanto para quem a vive quanto para quem a proporciona.

 

– A gente passa o que sabe, absorve o que trazem e se enriquece. É muito bom esse intercâmbio com os diferentes perfis – diz Tania, que, embora seja musicoterapeuta, considera que não tem bem uma profissão, mas vários saberes e experiências que são aplicadas no dia a dia.

 

A vivência na Bio Aldeia é customizável e os preços podem variar, assim como o pagamento: aceitam dinheiro, escambo e/ou trabalho. Há a chamada agenda fixa, que contém as atividades que podem ser realizadas ao longo do ano inteiro na fazenda. Para participar, o interessado deve sugerir pelo menos duas datas para a execução da experiência, podendo ficar de um dia a dois meses no local.

 

Fazem parte da agenda fixa as ecopráticas, nas quais a pessoa tem atividades manuais que vão do artesanato à manutenção das construções; as revitalizações, experiências sobre saúde natural envolvendo técnicas corporais, práticas artísticas e meditação; as oficinas, que promovem uma reflexão sobre ecologia e reaproveitamento de materiais nas práticas artísticas, na alimentação e no artesanato; e o ecolazer, em que os participantes têm à disposição a estrutura de um sistema ecológico de hospedagem e podem usufruir dele da maneira que desejarem.

 

Existem também as 10 atividades esporádicas anunciadas na Agenda Móvel. Entre elas oficina de tecelagem em fibras naturais, dinâmicas de grupo e experiências artísticas diversas. As datas dessas vivências são postadas no blog da aldeia ou enviadas para os e-mails cadastrados no site.

 

Todas essas atividades são pensadas para estimular a noção de interdependência das coisas. A ideia é valorizar os talentos individuais de forma a contribuir com o todo e propor um estilo de vida menos agressivo.

 

– Não acreditamos em mudar o mundo, acreditamos em mudar a nós mesmos, nossa família, nosso bairro, e isso vai se juntar a outras mudanças – frisa Eliana.

MILENA LUMINI

Jornalista, ex-repórter do Diário Catarinense

 

Em abril do ano passado fui à Chapada Diamantina (GO) em busca de contato com a natureza, tranquilidade e paz de espírito. Após dias de deslumbramento com as trilhas, cachoeiras e amizades feitas pelo caminho, passei uma curta estadia na comunidade Campina, próxima ao Vale do Capão, em Palmeiras (BA).

 

A comunidade existe (e resiste!) há pouco mais de 20 anos e os seus cerca de 30 habitantes vivem com o mínimo de impacto ambiental. A eletricidade é por energia solar e se restringe a abastecer as luzes da cozinha comunitária e da área administrativa. Não há geladeira e o fogão é a lenha, que os homens se reúnem para cortar todas as segundas-feiras.

 

Há um profundo entendimento do que é viver em comunidade, sem que se esqueça da individualidade de cada um. Na Campina, os moradores contribuem com três horas de serviço diário para a comunidade; o resto pode ser aproveitado para seus afazeres pessoais ou curtindo a natureza. O trabalho é feito na horta, herbário, confecção de produtos naturais como sabonetes e xampu, administração e cozinha. As refeições são compartilhadas: cada dia um fica responsável por preparar o café da manhã, almoço ou jantar para os demais. O resultado é pouco tempo cozinhando em troca de comida pronta por vários dias.

 

As casas são feitas de terra, espalhadas entre as árvores. Estão suficientemente longe umas das outras para que não se escute o barulho do vizinho e próximas o bastante para ouvir qualquer pedido de socorro. Há ainda uma casa para receber hóspedes e grupos que participam de cursos e encontros na comunidade. A hospedagem é uma das fontes de renda do grupo, que também arrecada com os produtos naturais para comprar, na feira mais próxima, os alimentos que não são produzidos na horta.

 

Muitos já passaram pelas casas da Campina. Há quem vive ali com os filhos desde a sua fundação e aqueles que há poucos meses encontraram, neste terreno cercado de morros e riachos, a sua melhor alternativa para uma vida plena. Um lugar onde se come bem e se dorme com o corpo cansado e a mente tranquila.

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lgumas pessoas são tocadas de maneira tão profunda por esse estilo de vida que pensam em ir morar na Arawikay definitivamente. As criadoras da aldeia esclarecem que não é para qualquer um, mas que sempre estudam a possibilidade de receber um novo vizinho. Quando alguém se candidata, é aplicado um questionário para apurar se a pessoa tem mesmo o perfil de morador de uma ecovila. A intenção é construir não mais que 14 novas edificações. Três pessoas já passaram pelo questionário e em breve estarão aptas a morar no local.

 

Por mais antipática que pareça, a triagem é necessária. Nos cursos de gestão de ecovilas que ministra, o administrador Gabriel Siqueira alerta para algumas condições a serem observadas por quem pretende “largar tudo” e se mudar para uma comunidade alternativa. Ter dinheiro que permita um fluxo de renda para se manter até o negócio engrenar é uma delas. Outra passa pela famosa “mudança de paradigmas”: como boa parte das ecovilas fica em zona rural, deixar a cidade implica abrir mão de uma série de confortos urbanos.

 

– Morando em uma comunidade, você é o responsável pelos problemas e pela resolução deles. Dá muito mais trabalho. Tem também a questão do relacionamento. Na cidade, se você não quer ver alguém, basta evitá-lo. Em uma comunidade, não tem como, você vai ter que conviver diariamente com essa pessoa. A falta de habilidade social é o que mais acaba com as ecovilas – diz ele, desde 2012 residente com a mulher e os dois filhos em uma comunidade em Itacaré (BA).

 

A despeito da grande extensão territorial, a Arawikay tem poucas construções. Além da casa principal e do antigo engenho que serviu de sinal para Eliana, há o “salão de celebrações”, onde são realizadas práticas artísticas e meditativas, e um chalé que está sendo remodelado. No mais, o terreno é preenchido com paz. O som das águas correndo, as copas das árvores saudando o vento e o canto dos pássaros dão o tom da trilha sonora que ecoa pela aldeia e traz tranquilidade para quem passa por ali.

ORIGEM DA PERMACULTURA

A permacultura ou “cultura sustentável ou duradoura” é um conceito criado pelos ecologistas australianos Bill Mollison e David Holmgren na década de 1970, baseados no modo de vida integrado à natureza dos aborígenes daquele país.

A ideia nasceu ligada à agricultura sustentável, mas passou a abranger também a arquitetura ecológica, uso de fontes de energia renováveis e princípios éticos quanto ao uso da terra e ao plantio e as relações de cooperação entre os habitantes de comunidades alternativas.

Tendo como pilares o cuidado com as pessoas, com a terra e a divisão dos excedentes, a permacultura recomenda 12 atitudes:

1. Observe e interaja

2. Capte e armazene energia

3. Obtenha rendimento

4. Pratique autorregulação e aceite retornos

5. Utilize e valorize recursos e serviços renováveis

6. Evite o desperdício:

7. Projete dos padrões aos detalhes:

8. Integre em vez de segregar

9. Utilize soluções pequenas e lentas

10. Utilize e valorize a diversidade

11. Valorize elementos marginais

12. Responda criativamente às mudanças.

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