ENREDO IMPROVISADO

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Carnaval de 2016 em Joaçaba promete. A Aliança, atual tricampeã, vai falar da laranja. A pioneira Vale Samba, da maçã. A vizinha Unidos do Herval, do vento. Antes de colorirem a Avenida XV de Novembro no próximo final de semana, porém, nenhuma delas causou mais rebuliço do que a Acadêmicos do Grande Vale. A caçula das quatro agremiações locais pretendia louvar o deputado federal Jorginho Mello (PR), cuja base eleitoral fica na região. A repercussão da homenagem não foi bem o tipo de promoção que a liga independente das escolas de samba da cidade e de Herval d’Oeste (Liesjho) planejava para comemorar seus 20 anos. Nada, contudo, que ofusque o brilho de um desfile que “tende a ser melhor do que nunca”, como anuncia a entidade.

O enredo Da Praça do Herval ao Planalto Central – O “Negrinho!” – Menino Jorginho! Amigo do Peito do Carnaval não caiu nas graças dos ministérios públicos federal, estadual e de contas de Santa Catarina. Os órgãos recomendaram à liga, ao ministério da Cultura e à secretaria de Turismo, Cultura e Esporte do Estado – ocupada por Filipe Mello, filho do parlamentar – que não empregassem verbas públicas para promover qualquer autoridade pública, sob pena de ações judiciais.

– A única coisa que pedi para o deputado foi que nos ajudasse a ter uma sede própria – garante o fundador da Acadêmicos do Grande Vale, Jorge Zamoner.

 

A estrutura da escola consiste no andar térreo alugado de um prédio comercial da família Fuganti, nas antigas instalações da metalúrgica Wieser Pichler (cedidas por uma das herdeiras e convertidas em barracão), ambas em Joaçaba, e outro galpão, também cedido, para os carros alegóricos em Herval d’Oeste. O veto forçou a vermelho e branco a encontrar um novo mote para apresentar na passarela a menos de 40 dias do Carnaval. Em vez da trajetória do menino pobre que vendia paçoca na praça da estação ferroviária e se tornou parlamentar, a saída foi falar de si própria em Acadêmicos, Nosso Sonho, Nossa Paixão.

 

Oito alas foram excluídas. As 35 fantasias da ala do Congresso Nacional não serão mais usadas, assim como as camisetas com o rosto sorridente de Jorginho. Outras alegorias passaram por adaptações e o arranjo musical permaneceu o mesmo, com alterações em alguns versos. “Vou cantar a história desse amigo meu” virou “vou cantar o sonho que aconteceu”; “a homenagem para você, Jorginho Mello, destaque nacional” agora é “a homenagem para você, nosso artista principal”.

– Espero que isso nos motive ainda mais em busca de nosso primeiro título – diz o joaçabense, fazendo questão de mostrar todas as fantasias e alegorias já separadas por alas na fábrica desativada.

A Acadêmicos do Grande Vale nasceu em 2012, depois de Zamoner deixar a Vale Samba por divergências com o presidente Marcos Zanardo (que renunciaria em 2013 com duas conquistas em três anos de mandato). Nos dois anos seguintes, participou da festa como convidada, recebendo na estreia um terço do montante que a liga destinou a cada escola e 40% em 2014. A parcela subiu para 60% em 2015, quando acabou na quarta (e última) posição, e para 80% em 2016.

DIVISÃO DO BOLO

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m 2017, a Acadêmicos do Grande Vale terá direito a voto por completar cinco anos de desfiles, conforme determina o estatuto da Liesjho, e vai ganhar o mesmo que as coirmãs. Neste ano, o bolo a ser repartido seria de R$ 650 mil liberados pelo governo estadual e R$ 300 mil da prefeitura, uma redução de 50% em relação a 2015. Nesta semana, a administração municipal voltou atrás e soltou mais R$ 300 mil. Há ainda um projeto de R$ 1,3 milhão aprovado pela Lei Rouanet, dos quais R$ 700 mil foram captados. Empresas como Tirol, Scherer, Specht, Grupo Pegoraro e Bragagnolo estampam suas marcas nos materiais de divulgação.

O corte refletiu na redução de 24 para oito jurados. Segundo o diretor técnico e de julgamento da liga, César Junqueira, eles vêm de São Paulo a um custo de R$ 6,8 mil, divididos entre o cachê de cada um mais R$ 2 mil para o coordenador – o que dá R$ 600 por jurado.


– Em 2015, só de cachê foram R$ 70 mil. Incluindo as passagens aéreas de São Paulo-Curitiba-São Paulo, traslado até Joaçaba e estadia, o total atingiu R$ 123 mil. Para este Carnaval, seria de R$ 52 mil antes da verba cair pela metade – diz Junqueira.


Paulista de Tupã que se mudou para a cidade em 1983 para dar aulas de Educação Física, Junqueira, 60 anos, era do Florisul, um dos blocos que em 1994 originaram a Aliança. Foi o primeiro presidente da Liesjho, criada em 1996 nos moldes da liga independente carioca (Liesa), a organização que profissionalizou o Carnaval do Rio de Janeiro e o tornou um evento internacional. Uma das providências foi realizar um workshop com representantes da Riotur (empresa municipal de turismo do Rio) e com o então diretor cultural da Liesa, Hiram da Costa Araújo, idealizador dos quesitos que até hoje norteiam o julgamento na Sapucaí.

Com a Liesjho, as escolas de samba passaram a receber percentual na venda de ingressos e nos direitos de merchandising da avenida. A capacidade das arquibancadas, montadas ao longo da XV de Novembro, saltou de 600 para 1.750 lugares e hoje é de 3.950 pessoas, mais 2.244 nos camarotes e 1 mil vips. Os desfiles começaram a ser transmitidos pela televisão para todo o Estado, intrigando os catarinenses: como duas cidades pequenas, com população majoritariamente branca, colonizadas por italianos e alemães, e distantes 400 quilômetros do litoral conseguiam fazer um Carnaval com aquela grandiosidade, qualidade e empolgação?

 

ORIGENS NO CATICOCO

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e acordo com o último recenseamento, dos 27 mil habitantes de Joaçaba, 2.874 são pardos e 732, pretos. Entre os 21 mil de Herval d’Oeste, são 5.122 e 784. Mesmo assim, escreveu o falecido jornalista João Paulo Dantas no inédito livro Joaçaba Samba e Faz Carnaval Desde 1930, “o desfile de escolas de samba, que hoje acontece com muito sucesso em Joaçaba, criado e produzido por brancos, de classe média alta, se deve a um pequeno núcleo de negros que existiu em Herval d’Oeste nos anos 1930 e 1940”. A maioria deles, da Bahia, do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Espírito Santo, chegou ao Vale do Rio do Peixe para trabalhar na estrada de ferro São Paulo-Rio Grande, implantada no início do século 20.

 

Dantas cita ainda o Alô, Alô e o Anjos da Cara Suja como blocos precursores, em 1934. O Carnaval teria sido trazido por Manoel de Oliveira Lins, baiano que se fixou em Herval d’Oeste após escala no Rio de Janeiro, onde havia trabalhado com ninguém menos do que Mano Elói (cantor, compositor, pai de santo e camelô, eleito o primeiro cidadão-samba do Carnaval carioca em 1936). Ali, ele instalou um terreiro de candomblé, berço do “clube dos negros”, mais tarde conhecido como “Caticoco”. O local era reduto de batuqueiros que animavam os jogos de futebol com charangas, prontamente transformadas em baterias para a festa momesca.

 

– No final da década de 1950, casais se reuniam para desfilar antes dos bailes nos clubes Hervalense, Dez de Maio e Cruzeiro. Em uma época na qual pais não permitiam que as filhas saíssem sozinhas com os namorados, era um pretexto para elas poderem ir ao Carnaval. Sabendo do falatório que iria causar, o grupo se autodenominou Que Murmurem, nome de um bolero de 1954 – continua o radialista Antonio Carlos Pereira, o Bolinha, 65 anos.

 

Em 1979, a união dos blocos Fino Trato e Reis do Petróleo, da rapaziada que montara a companhia de Teatro de Joaçaba (Tejo) em 1972 sob a direção de Jorge Zamoner, resultou na Vale Samba a primeira escola de samba (e primeira campeã) joaçabense. Daquele desfile inaugural participaram também a (extinta) Esquinão e a Unidos do Herval (uma ampliação do Que Murmurem, com data oficial de fundação de 1981).

 

– O pessoal achava que Carnaval era coisa do diabo. Éramos totalmente rechaçados. Até que uma senhora da alta sociedade desfilou, depois outra, outra… Todo esse processo fez com que o Carnaval se firmasse. Como a gente aprendeu fazendo, foi criando amor, as famílias foram se envolvendo e gostando – lembra Zamoner.

 

 

CONCENTRAÇÃO

PARA O DESFILE

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enchente acabou com a festa em 1983. O silêncio durou dez anos. Na volta, havia uma nova concorrente, formada por blocos dos bairros Cruzeiro do Sul, Flor da Serra, Santa Tereza, Frei Bruno e Caetano Branco.

– Era a Aliança Serrana, mas parecia nome de banda nativista gaúcha, então ficou só Aliança. A mascote era para ser um sabiá, um pássaro bem comum na região. Como ninguém sabia desenhá-lo, adotamos uma pomba – diverte-se Carlos Fett.

 

Aos 57 anos, o dublê de carnavalesco e industrial toma sua cervejinha enquanto assiste ao ensaio da bateria na sede da escola. A área de 8 mil metros quadrados com dois barracões, quadra, alojamento e memorial foi doada por ele e os irmãos Luiz e Izabel. Fica quase em frente à empresa da família, a Specht. Fortalecida pela fabricante de farinha de trigo, a Aliança elevou o patamar do Carnaval de Joaçaba com mais organização, mais luxo e mais dinheiro.

 

– Fomos os primeiros a distribuir bandeirinhas nas arquibancadas, fazer camisetas do samba-enredo, soltar foguetes para anunciar o desfile e a usar esculturas de isopor, feitas por Gilberto Savério, da Imperatriz Leopoldinense. Ele vem todo ano e se hospeda na minha casa. Também veio duas vezes a pesquisadora e carnavalesca Maria Augusta Rodrigues, ex-Beija-Flor, que assinou nosso Carnaval de 1996 – lista Fett.

 

De lá para cá, a escola já montou enredos patrocinados por Tirol, Malwee e Nissin, contratou famosos como Raul Gazola, Falcão (do futsal), Scheila Mello, Luciano Szafir e Humberto Martins e ganhou 11 títulos. Para manter a coroa em 2016, conta com um orçamento estimado em R$ 1 milhão. Além da verba da Liesjho e do bolso de Fett, as fontes de renda da verde, branco e dourado são pagodes mensais, patrocínios e vendas de camisetas e de fantasias.

 

Na falta de um mecenas tão engajado, a Vale Samba vai tentar quebrar a hegemonia da Aliança com “R$ 400 mil, parte da liga, parte emprestada por benfeitores”, informa o presidente Hermes José Bersaghi. Uma das apostas para isso são os carros em movimento feitos pela equipe de sete ferreiros, escultores e pintores da festa de Parintins (AM) chefiada por Enisom Menezes. Sem tirar os olhos da peça que está revestindo com laminado no barracão, Cebola, como é conhecido, diz que costuma cobrar de R$ 40 a 80 mil pela empreitada.

 

– Eles foram contratados antes do corte, senão nem faríamos esse investimento. Reaproveitamos 95% do Carnaval anterior. Se as outras escolas têm folha de pagamento, nós temos voluntários – declara Bersaghi, um representante comercial de 50 anos formado em Artes Cênicas que se elegeu em 2014 com a proposta de resgatar a autoestima da agremiação.

A “campeã do povo” já viveu dias mais suntuosos. O ator Ailton Graça, por exemplo, por dois anos engrossou suas fileiras. Hoje, a Vale Samba sofre por não dispor de estrutura física que comporte ações paralelas para reforçar as receitas. Nos fundos de seu barracão sem pintura, com reboco aparente, há um pequeno espaço que não pode ser ampliado porque, aponta o presidente, corre um riacho logo atrás.

 

A Unidos do Herval não tem esse problema. Pelo contrário: com capacidade de 2,3 mil pessoas, o amplo galpão é solução para perfazer os R$ 600 mil previstos para montar o desfile, recebendo shows e formaturas durante o ano. A grana dá vazão à criatividade de Zezzo Henzze, 44 anos, o responsável pelo Carnaval da escola. O carioca conheceu a cidade em 2008 como auxiliar de Alexandre Louzada, à época na Beija-Flor.

– Eu nunca tinha ouvido falar, nem sabia onde era. Nos mandaram DVD e revistas para a gente ter uma noção – admite.

 

Em 2010, Henzze retornou como carnavalesco titular. Todos os anos, acomoda-se no apartamento montado especialmente para ele no barracão em junho e só vai embora após cumprida a missão na avenida. Na sua avaliação, o nível dos desfiles equipara-se ao do grupo de acesso do Rio de Janeiro. Mas o que mais o surpreende é a quantidade de gente de fora que desfila. Nem poderia ser diferente: juntando os integrantes das quatro escolas, dá quase 5 mil foliões, mais do que 10% da população de Joaçaba e de Herval d’Oeste. Assim, é comum a existência de alas de outras cidades, como Concórdia, Xanxerê e Ouro.

 

O crescimento do espetáculo faz também com que seja cogitado um novo palco. Com 700 metros e arquibancadas provisórias, a XV de Novembro estaria impedindo o Carnaval de progredir em tamanho dos carros alegóricos e público. Cesar Junqueira, da liga, revela que há um projeto para a construção de um sambódromo entre os campi I e II da Unoesc que não vai adiante porque falta “vontade política”. Bersaghi, da Vale Samba, atribui um charme à atual passarela, apesar de não descartar a necessidade de um espaço próprio em breve.

 

Se fosse inevitável a mudança, na opinião do radialista Bolinha, esse espaço seria a Avenida Beira-Rio – endereço da Unidos do Herval, um retão que abrigaria os desfiles e possibilitaria a construção de uma espécie de “cidade do samba”, com os barracões transferidos para lá. No entanto, o veterano comunicador não se ilude, alegando que “devido à rivalidade, Joaçaba jamais permitiria que o Carnaval se mudasse para Herval d’Oeste”. Por enquanto, o considerado terceiro melhor Carnaval do Brasil (atrás somente do Rio e São Paulo) pela Associação das Cidades Carnavalescas das Américas (sem registros no Google) continuará seu esplendor na XV de Novembro.

 

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