Talento maior
que o vício e a rebeldia

Dream a Little Dream of Me, de The Mamas and The Papas

em 1997, Amy Winehouse fez testes para ingressar na conceituada Sylvia Young Theatre School, em Londres. Embora representasse e dançasse com razoável desenvoltura, o que lhe garantiu a bolsa de estudos foi a interpretação de On the Sunny Side of the Street, canção de um musical da Broadway de 1930. A aluna aplicada, principalmente em inglês, chegou a ser promovida para uma turma acima de sua faixa etária. Mas insistia em avacalhar com o uniforme da escola, mascar chiclete durante a aula e usar uma argola de prata no nariz. Entre o potencial mostrado pela garota de 13 anos e a disciplina exigida pelo regimento escolar, a direção optou por convidá-la a se retirar para não acabar expulsa. Amy era rebelde.

Em 2003, nas entrevistas de divulgação do disco Frank, Amy Winehouse atendeu uma emissora holandesa. Tudo corria normalmente, com elogios à sua espontaneidade, rara para uma artista estreante. Até o repórter lhe perguntar se as músicas tinham sido registradas ao vivo no estúdio. Ela respondeu que sim, que jamais permitiria cordas sintetizadas em um trabalho seu. De repente, lembrou-se que uma das faixas, Take the Box, continha elementos acrescidos na mixagem – e começou a espinafrar o responsável. Terminado o esculacho, restaram intermináveis segundos de silêncio. Percebendo o climão, ela se desculpou pela irritação, dizendo que odiava o cara que havia feito aquilo. Amy não tinha filtro.

Em 2007, de volta a Londres após um show em Chicago, Amy Winehouse soube que fora indicada em três categorias no MTV Video Music Awards pelo álbum Back to Black.

Na mesma noite de 8 de agosto, ela foi levada às pressas para o hospital. A gravadora informou que a internação devia-se à “severa exaustão”. Não demorou para surgir uma versão mais completa: a cantora e o marido, Blake Fielder-Civil, estavam há três dias se drogando. A quantidade de álcool, cocaína, crack e heroína encontrada nos 50 quilos distribuídos em 1,59 metro era tanta que os médicos se surpreenderam com a paciente – descrita como “uma zumbi, branca como um lençol e trêmula” – não ter morrido de overdose. Amy sofria de dependência química.

As transgressões, a autenticidade e o vício em drogas ocuparam de um jeito tudo o que está relacionado a Amy Winehouse, viva ou morta, que não raro relegam o seu enorme talento a segundo plano. Vistas em retrospecto, duas sequências do documentário póstumo Amy (2015) bastam para deixar claro que desde cedo ela tinha algo de especial. Em uma, a então menina fofinha entoa Happy Birthday na comemoração de 14 anos do irmão mais velho, Alex, com uma empostação vocal de arrepiar. Na outra, captada em julho de 2001, a timidez, o nervosismo e a insegurança da adolescente empunhando a guitarra em um palco desaparecem tão logo ela abre a boca para cantar. Amy havia nascido para aquilo.

Não fosse pelo cabelo, escorrido, sem o penteado “colmeia”, e pelas bochechas que ainda emolduravam o rosto púbere, ninguém diria que a cena fora gravada quando Amy Winehouse tinha apenas 16 anos. Como uma versão saudável de si própria, ela já mostrava as características pelas quais iria se tornar uma personagem facilmente identificável na constelação do pop: o vozeirão de uma negra veterana, o menear típico da cabeça enquanto cantava, o sinal sobre o canto esquerdo do lábio superior (depois realçado com um piercing). O que ninguém ali supunha era quão longe e alto seria o caminho trilhado pela aspirante ao estrelato. Amy também não – e não estava nem aí para isso.

Quando estourou com Rehab, Amy Winehouse descobriu o lado abominável do sucesso. De repente, ela não podia mais se comportar como a judia magricela do norte de Londres que só queria cantar e fumar maconha. Meninas imitavam seu visual, paparazzi a perseguiam, cada gesto seu ganhava uma dimensão absurda. Ninguém está preparado para um assédio nesse nível. Alguns se acostumam. Outros adotam o cinismo para manter a lucidez. Cercada por gente incapaz de lhe dizer “no, no, no”, atormentada pela prisão de Blake e com um punhado de fragilidades não resolvidas, a fã de jazz que gostava de reggae e rap escapou para as drogas. Amy não tinha nada de artificial, a não ser as substâncias que passou a ingerir.

Tão verdadeira, Amy Winehouse só não se livrou do clichê de morrer jovem. Pior, aos 27 anos e reunindo atributos dos mais célebres defuntos dessa idade. Como Janis (nome de sua mãe, aliás), desafiava os padrões de beleza femininos. Igual a Hendrix, teve um pai mais interessado em seu dinheiro do que em seu bem-estar. De Morrison, herdou a convicção de que fazia Arte, por mais descartável que fossem as paradas. E, a exemplo de Cobain, desprezava a bajulação inerente à fama. No texto que cada candidato à Sylvia Young Theatre School precisava fazer para explicar suas motivações, ela escreveu: “Quero ir para algum lugar em que possa ir até o meu limite e talvez mesmo além. Quero que as pessoas ouçam minha voz e simplesmente... esqueçam seus problemas durante cinco minutos”.

Parabéns, Amy. Você conseguiu. E por muito mais tempo do que planejava.

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