a cidade de luiz alves, em Santa Catarina, detém o título de Capital Nacional da Cachaça. No Estado, a tradição açoriana ganhou força com a chegada de outros imigrantes europeus

ÂNGELA BASTOS

angela.bastos@diariocatarinense.com.br

 

ue nos perdoem os abstêmios, os doentes do pé, os ruins da cabeça. Assim como arroz e feijão, Pelé e gol, poucas coisas da nossa brasilidade combinam tanto como cachaça e samba.

 

E falando em samba, registre-se Angenor de Oliveira, o Cartola, compositor de Tempos Idos:

 

Pelos salões da sociedade/ Sem cerimônia ele entrou/ Já não pertence mais à Praça/ Já não é mais samba de terreiro/ Vitorioso ele partiu para o estrangeiro

 

E falando em cachaça, registre-se. O que era dos negros na senzala, passou aos pretos velhos nos terreiros, respingou nos salões e batizou os camarotes. Artigo nacional, de luxo, símbolo da brasilidade. Tudo isso cai bem quando se fala dos 500 anos da cachaça no Brasil.

 

Mas, com tantos anos de vida assim, é natural que não faltem histórias em torno da cachaça. Do ponto de vista histórico, seria a primeira bebida destilada na América Latina. Na Capitania de São Vicente, atual Estado de São Paulo, a primeiríssima teria pingado em 1530. Porém, pernambucanos dizem terem sido os pioneiros no preparo da bebida.

 

Também não existe consenso do nome. Teria vindo de Portugal? Da Espanha? Um verso do século 16, do poeta português Sá Miranda, diz: “Ali não mordia a graça/ eram iguais os juízes/ não vinha nada da praça/ ali, da vossa cachaça/ ali, das vossas perdizes”. Conta-se que, antes dos embates corpo a corpo do passado, os soldados tomavam “januária cum pórva” para criar coragem de partir para a luta.

 

Outro relato tem a ver com a Independência do Brasil, em 1822. Dizem que já ali o produto seria reconhecido como símbolo da identidade brasileira. Há, inclusive, quem garanta que foi com cachaça que Dom Pedro I brindou a independência.

 

Em Santa Catarina, a produção da bebida é artesanal e abastece quase que exclusivamente o mercado interno. Com a colonização açoriana, a produção de cachaça em solo catarinense foi impulsionada.

 

Com a chegada de imigrantes italianos, alemães e poloneses, essa produção se expandiu por todo o Estado, deixando de ser apenas do litoral e ganhando as encostas das serras e os campos. Há registros de aumento da atividade em Grão Pará, Urussanga e Lauro Muller. Também estendeu-se pelo Vale do Itajaí, com forte presença em Luiz Alves, que hoje ostenta o título de Capital Nacional da Cachaça. A conquista é motivo de orgulho e lembra um fato inusitado na cidade:

 

– A gente quase perdeu o reconhecimento, porque uma cidade de Minas Gerais trabalhou quietinho, bem no estilo mineirinho, para levar o título  – diz o secretário de Turismo do município, Heitor Benigno Erbs.

 

Os mineiros não levaram e Luiz Alves trabalha para realizar a 28a Festa Nacional da Cachaça, que ocorre em julho. Ninguém sabe ao certo a relação entre a colonização alemã e a cachaça em Santa Catarina, mas o fato é que a marvada também conquistou a cultura germânica no Estado. São Pedro de Alcântara, a primeira colônia catarinense a receber imigrantes alemães, também é um polo produtor da bebida, com pelo menos dez alambiques.

 

Aumento de consumo à parte, tem coisa dando dor de cabeça para os produtores catarinenses: a alta da tributação sobre bebidas, em vigor desde 1o de janeiro deste ano. A cachaça, que paga o ICMS estadual (25%), também acumula o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), assim como outras das chamadas bebidas quentes (vinho, uísque, vodca, rum).

 

Histórias à parte, é possível dizer que a tal marvada virou chique. A branquinha – há quem prefira a amarelinha – passou a sentar em botecos finos, frequentar exposições de artes, andar por restaurantes caros e se meter em festa de gente famosa.  Mas é bom seguir as recomendações

do Ministério da Saúde: beba com moderação. Nada de mergulhar num copo de pinga para enfrentar as durezas da vida. Nem para esquecer aquela ingrata que o amava e o abandonou.

inho, se estragar, dá para fazer vinagre. Cachaça, se estragou durante o processo, só vai dar dor de cabeça.”

 

O aviso é de quem entende do assunto. Adolar Wruck, 70 anos, carrega o nome de um dos pioneiros da fabricação de cachaça artesanal em Luiz Alves. Filho de Otto Wruck, o produtor está à frente do negócio iniciado 75 anos atrás desde que o primeiro rótulo foi impresso.

 

Isso que – destaca Adolar – quatro anos antes já era possível degustar a bebida produzida no bairro Braço Francês, onde ainda hoje permanece um dos alambiques mais visitados da região.

Otto Wruck se tornou o segundo produtor no município, que na década de 1960 chegou a ter 100 alambiques. Hoje, são em torno de dez em atividade.

 

A produção da empresa é de cerca de 60 mil litros por safra. A marca Wruck se encontra em quase todos os Estados brasileiros, ranking de consumidores liderado por São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e Santa Catarina. Mas é o mercado externo recentemente conquistado que enche de orgulho a família descendente de alemães.

 

– Nossa cachacinha chegou na Alemanha. Nem sabemos muito bem como isso aconteceu, pois não investimos em propaganda – conta Adolar.

 

Deve ter sido pela fama da boa qualidade. Afinal, nos últimos anos, as garrafas da Wruck têm se destacado em feiras e eventos nacionais. O certo é que ano passado, uma pessoa propôs aos Wruck o envio de uma carga com destino ao porto de Hamburgo. A exigência era de que a bebida tivesse no mínimo oito anos de envelhecimento em barris de carvalho. Nenhum problema, pois num dos galpões aguardam 400 barris importados da França, cheios da “amarelinha”. A encomenda foi atendida. Mas os números e valores são guardados em sigilo pelo produtor.

 

No mercado nacional, os preços são transparentes: a partir de R$ 15 (branquinha). A envelhecida, mínimo de R$ 42.

 

– Dá para sobreviver – brinca Adolar, que conta ter buscado informações para melhorar a produção e a qualidade do produto.

 

São visitas a produtores de outros Estados, em especial de Minas Gerais e de São Paulo, e participação em feiras, exposições e eventos de degustação. Adolar considera que, apesar da tributação elevada e diminuição no número de alambiques, a empresa tem o que comemorar: a quarta geração está chegando para dar continuidade ao trabalho iniciado por Otto Wruck.

 

O produtor vê com bons olhos o interesse dos mais jovens pelo negócio e acredita que possam ser eles a eliminar o preconceito que rotula a cachaça como uma bebida que pode prejudicar as pessoas, seja no campo da saúde como do comportamento. Certa vez, conta, durante a visita de uma turma de alunos ao alambique, um estudante perguntou se ele não achava que produzia algo que faz mal à saúde.

 

– Na vida, é preciso dosar tudo. Senão, vira veneno.

À

s vésperas de mais um Carnaval, o nome parece de acordo: Zé Folia. Assim se apresenta José Eugênio Schimitt, 68 anos, morador na localidade de Santa Filomena, em São Pedro de Alcântara, na Grande Florianópolis. O apelido, claro, tem a ver com o jeito dele, alegre e divertido. Pegou tão bem que Zé Folia foi o nome usado para o eleger duas vezes vereador na cidade (pelo antigo PFL) que é berço da colonizaçãoA alemã em Santa Catarina. Um bom motivo para também virar rótulo da cachaça artesanal que produz.

 

A produção anual oscila de 22 mil a 25 mil litros. Entre os meses de dezembro e junho, o volume médio é de 200 litros por dia.

Os seis hectares de cana-de-açúcar que planta não são suficientes e é preciso buscar matéria prima em outros canaviais. O engenho de Zé Folia está instalado na frente da casa onde mora com a família. O moinho começou com carro de boi, passou a ser movido por tobata (pequeno veículo de transporte motorizado) e hoje por eletricidade.

 

O alambique é bastante rústico e toda a moagem, fermentação e destilação da cana seguem processo artesanal. Em um galpão ao lado, Zé Folia expõe as pipas e bordalezas onde a cachaça é armazenada antes de ser engarrafada. Também alguns barris de carvalho, que ele garante terem vindo da Escócia. O custo dos toneis não é tão alto, já que desembarcam no Brasil carregados de uísque.

 

Zé era um menino de sete anos quando começou a ajudar o pai, Eugênio Schimitt, o Geninho, no alambique. São 60 anos dedicando-se a uma atividade que esse descente de imigrantes teme que irá desaparecer.

 

– Em 1998, São Pedro de Alcântara tinha 53 alambiques. Hoje, 10. Como não achar que vai acabar? – indaga.

 

O produtor enumera alguns motivos: o êxodo dos jovens para a cidade, a diminuição da área de plantio de cana de açúcar, as exigências dos órgãos ambientais com relação à preservação das matas, a taxação de impostos. Sobre a qualidade do produto, já que muitas vezes há informações sobre origem duvidosa, ele se opõe a produtores que apresentam maior interesse no lucro do que preocupação com a saúde do consumidor:

 

– Há quem use soda cáustica para aumentar a quantidade, além de misturar produto químico para a fermentação e dar cor de envelhecida. Aqui, no meu alambique, isso não acontece – garante.

 

Zé Folia não tem ponto de venda da cachaça, exceto o próprio alambique. Quem quiser comprar o produto tem que ir até Santa Filomena. O preço (a partir de R$ 5) varia de acordo com o tipo e quantidade. A graduação alcoólica de 45º.

 

Como é o próprio Zé que atende aos clientes, pode ser um bom passeio: o caminho dos alambiques é bonito, com propriedades bem cuidadas e um clima que fica agradável no verão. Além do quê, seja ou não tempos de Rei Momo, oportunidade de um animado encontro com Zé Folia.

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