Reabertura do Mercado

Público de Florianópolis

Reportagem Ângela Bastos, Hyury Potter e Thiago Santaella | Fotos Diorgenes Pandini e Felipe Carneiro

Edição Cristian Weiss e Natália Leal | Design Fábio Nienow

A partir deste 5 de agosto, moradores, comerciantes e turistas finalmente poderão cessar a ansiedade de voltar à ala sul do Mercado Público de Florianópolis. O espaço que serviu de ponto de encontro por mais de um século, após um ano e dois meses em reforma, reabre com novidades.

É tempo de Mercado

 

 

s 11 horas, o relógio da entrada norte do vão central do Mercado Público de Florianópolis anuncia que o local está oficialmente reaberto. Depois de 15 meses, a entrega da ala sul reacende a relação de simbiose entre o remoçado prédio e os seus antigos frequentadores. Retomada de um espaço que se caracteriza pela informalidade, onde se firmam encontros temperados por saberes, sejam populares e da cultura local e também formais e aprendidos.

 

Ainda que recomece com ocupação parcial e substituições em alguns dos pontos mais tradicionais, a reabertura do mercado traz uma sensação de aconchego. Depois do período em obras, em que tapumes esconderam a construção, a redescoberta das paredes amarelo-ouro e portas verde-oliva provoca sentimento de carinho pelo ponto mais democrático da cidade.

 

Neste 5 de agosto de 2015, a Ilha acorda faceira. Não decretaram feriado municipal, mas no entorno há gostinho de preguiça. Não pelos trabalhadores que viraram noites para finalizar os serviços. Mas pelos que gostariam de mais tempo para celebrar a reabertura.

A escolha da data atendeu a um pedido dos comerciantes, que queriam aproveitar a proximidade do Dia dos Pais. Mede-se a importância do Mercado pelo relato dos lojistas do entorno: no período em que esteve fechado, as vendas caíram.

 

A partir de hoje, a cortina de ferro se reabre para todos. Do lado de fora só devem ficar os pombos visitantes. Os turistas são bem-vindos e ajudam a fomentar a massa de 26 mil pessoas que todos os dias passam pelo local.

 

Trabalho segue mesmo

com reinauguração

 

A reabertura não dará fim à movimentação intensa dos últimos dias. Há muito ainda a fazer. Dos 35 boxes, 14 permanecem finalizando as acomodações. Boa notícia para os que gostam de frutos do mar: das 13 peixarias, 11 estarão abertas hoje.

 

– A gente está louco para sentir como ficou. Só não pode ter muita frescura, senão manezinho foge – diz Carlos Machado da Silva Rocha, nascido no Pantanal, e hoje morador do Estreito.

Para desconfiados assim, que acham que o novo mix carrega no glamour e retira a essência do lugar, Paulinho Abraham, o Boca, tem resposta.

 

– A gente ‘disglamuriza’, ora – brinca.

 

Ele é o idealizador do Berbigão do Boca, que tradicionalmente abre o Carnaval da cidade, tendo a área do Mercado Público como ponto de encontro da multidão que participa do arrastão pelas ruas históricas.

 

A pedagoga Marilu Lima de Oliveira, coordenadora do Programa Antonieta de Barros, da Assembleia Legislativa, é outra animada. Ela começou a frequentar o Mercado incentivada pela saudosa sambista Nega Tida. Tempos em que o local era considerado um espaço de e para homens. Época em que as mulheres negras e pobres passavam por ali na condição de empregadas.

 

– A gente está cheia de saudade desses encontros ocorridos principalmente aos sábados, nos quais, de jeito bastante informal, reúnem-se intelectuais, artistas, funcionários públicos, donas de casa, pescadores.

 

Mas têm marcas do velho mercado que o novo mix não apaga. Referências guardadas nos labirintos da memória. Como o que se ouviu na semana que antecedeu a reabertura, quando o prefeito Cesar Souza Junior fazia uma vistoria para avaliar a acessibilidade. Primeiro checou o interior da ala, depois a área externa, em direção à Avenida Paulo Fontes. Para mostrar as outras obras, o prefeito não hesitou:

 

– Vamos até a esquina do Alvim.

 

Um lapso. O lugar onde o box 1 do Mercado funcionou por 57 anos, sob o comando de Alvim Nelson Fernandez da Luz, deu lugar a um outro empreendimento. Ficou o ponto de referência. Embora muita gente aposte que o Bar do Alvim, hoje instalado na Rua João Pinto, possa voltar.

 

Ponteiros ditam o ritmo da reabertura

 

Depois de quatro anos paralisados voltaram a andar os ponteiros do relógio do vão central. O objeto também foi restaurado. Só existem três peças iguais no mundo – no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. A de Florianópolis foi trazida em 1911, quando a empresa inglesa Western Telegraph Company Limited – a famosa “cabo submarino” – instalou-se na cidade. Com o fechamento, em 1975, o relógio foi doado para o município. Fabricado na Inglaterra, tem qualidade comparada à do Big Ben de Londres.

 

A partir de hoje sob o roçar dos ponteiros gente continuará passando pelo vão central. Para ouvir música, deliciar-se com a gastronomia típica ou fazer compras. Gente que, como cantou o poeta, nunca deixará o seu mercado público. Diferente do mar. Antes tão vizinho, agora distante, lá longe, separado por uma imensa área aterrada.

 

À

Um tour pela ala sul

A estrutura construída na década de 1930 está renovada e abrigará 36 boxes com opções de bares, restaurantes, peixarias, quitandas e utensílios para o lar. Oficialmente, inauguram hoje a ala sul e a ala norte. Mas como a segunda está aberta ao público desde o ano passado, destacamos o que você vai encontrar na ala sul, cuja reforma terminou nesta semana. Os boxes começam a atender às 11h de hoje. Mas apenas 22 funcionarão de imediato, os demais começarão ao longo de 30 dias. Veja como explorar as novidades:

ALA SUL

ALA NORTE

Banheiros

* Não informaram

De volta pra casa

 

 

São memoráveis as histórias guardadas pelos assíduos frequentadores do Mercado Público de Florianópolis. Com a expectativa do reencontro, eles falam do desejo de que no novo e moderno espaço seja mantido o calor das relações humanas e sociais que caracterizam o  bom e velho DNA do local

Aqui me tens de regresso

 

Não se sabe quem copiou quem. Se a Brahma, que montou o Camarote número 1 na Marquês do Sapucaí, ou a turma do Kiko Ortiga, que fundou o Camarote do Zezinho, em homenagem ao famoso bar do Zezinho, ali, na cara de quem entrava pela porta em frente ao camelódromo. Certo é que dali a turma que se reunia nas manhãs de sábado e nos finais de tarde para conversar e tomar cerveja carrega na memória momentos inesquecíveis do antigo Mercado Público.

— Um dia eu estava ali, sentado, e vi uma mulher de traços asiáticos entrar. Era uma senhora sorridente, de rosto familiar, com o corpo marcado por cicatrizes: era Kim Phuc, que teve sua fotografia eternizada aos nove anos durante a Guerra do Vietnã — conta Kiko.

O destino de outros famosos, como Astor Piazzolla e Domenico de Massi, e de artistas e desportistas quase sempre era o Box 32. Mas, pela proximidade, todos eram obrigados a passar os olhos pelo Camarote do Zezinho. Para frustração dos clientes, Zezinho ficou de fora da lista de comerciantes que venceram a licitação para ter box garantido no novo Mercado.

Kiko reconhece o esforço da prefeitura em devolver o local em sua totalidade aos moradores. Destaca, ainda, a promessa de cobertura do Vão Central Luiz Henrique Rosa e o nivelamento do piso, assim como o fim do boicote aos cartões de crédito, rejeitados pelos comerciantes — inaceitável para uma cidade turística e do porte de Florianópolis.

Mas ele tem preocupações. Uma delas é quanto à preservação do DNA do antigo Mercado, que tinha no calor humano, nascido das relações sociais, um espírito inigualável:

— Aquilo era uma comunidade, encontrávamos amigos e parentes e nem todos iam para beber um chope, mas certos de que ali encontrariam conhecidos. O Mercado se constituiu como de todas as tribos e nós queremos que continue assim, não apenas parte de comerciantes e dos consumidores.

Dai ao povo o que é do povo

 

Zezinho menino conheceu os corredores do Mercado Público pelas mãos da mãe, dona Alcina, e das tias, Alda Jacinto e Alice Maria, a Lili. Mais de 40 anos depois, José Carriço, hoje professor de Educação Física e um dos mais fanáticos torcedores da Escola de Samba Os Protegidos da Princesa, guarda na memória o cheiro da maresia que caracterizava o lugar. Frequentador há 35 anos, está na expectativa de reencontrar o clima de confraternização que une a gente do samba, as torcidas de Figueirense e Avaí, as elites políticas e as camadas populares.

Zezinho Carriço representa bem o espírito dos frequentadores do Mercado. De um lado, a consciência de que o lugar precisava melhorar — acomodação, higiene, ampliação de horários, variedade de produtos. De outro, o receio de que a elitização possa afastar os moradores. Para ele, o novo modelo levou símbolos importantes, como elevadores suspensos nos bares, banheiros onde a catraca era liberada com moedinhas, caderneta de anotações das despesas.

— Torço para que os novos comerciantes saibam que o Mercado Público é, acima de tudo, do povo.

Acertou o clique, mas errou no milhar

 

Três negativos na máquina e uma lâmpada que estoura no Vão Central do Mercado Público. Ao virar-se, o homem que voltava de uma partida de futebol no Orlando Scarpelli percebeu que a imagem parecia um sol ao anoitecer. Decidiu fotografar. Era o ano de 1999, e, um tempo depois, a direção da Caixa Econômica Federal enviou uma fotógrafa para Florianópolis. A moça precisava de uma imagem para ilustrar o bilhete da extração que iria homenagear os 100 anos do Mercado Público.

— Ela deu azar, pois pegou uma semana de chuva. Foi quando a conheci no Bar do Alvim, preocupada que estava, pois não tinha foto — recorda Édio Mello, que tinha os negativos em casa.

Mello cedeu o negativo para a Caixa. Não recebeu centavo algum. Mas não parece desconsolado. A foto ilustrou o bilhete. Entre risos, conta que só não se perdoa por ter acreditado que poderia ganhar na loteria:

— Gastei o que tinha e ainda convenci amigos e familiares a comprar um bilhete — diz.

A cidade e o Mercado

 

O Mercado Público exerceu um papel estratégico no abastecimento de Florianópolis. A cidade foi uma das poucas a ter dois mercados públicos. Um funcionou de 1851 a 1896, na Praça da Matriz, quando foi demolido. O outro funciona de 1896 até hoje, tendo recebido uma nova ala em 1931.

Nova maneira de gerir o patrimônio

 

Regras mais rígidas devem evitar alterações irregulares no prédio histórico.

 

Incompleto desde novembro de 2013, quando a ala Norte foi fechada para reforma, o Mercado Público deixou saudade em muitos de seus clientes assíduos. Nesta quarta, eles recebem de volta a ala Sul, com peixarias, bares e empório, depois de mais de um ano de obras.

 

Além da festa de reinauguração, das paredes pintadas e da estrutura melhor nos boxes, o que se espera é uma organização à altura da história do Mercado. Representantes dos comerciantes e da prefeitura têm a responsabilidade de cuidar e de fiscalizar o funcionamento do mix de serviços disponíveis nas duas alas.

 

Para comprar o peixe diário, a rota da caminhada matinal do seu Erasmo Antunes, 92 anos, não deve passar mais pelo terminal Cidade de Florianópolis — a partir de agora, ele retorna para a ala Sul. Curioso, o manezinho, que conhece o Mercado desde o tempo em que as peixarias não tinham refrigerador, reservou alguns minutos para ver os últimos preparativos da festa de abertura.

 

— Lembro que a primeira vez que vim aqui, eu tinha sete anos e estava acompanhando minha mãe. Era um comércio diferente, mas algumas mudanças são necessárias e ajudam a melhorar. Espero que todos entendam isso e ajudem a preservar — diz Erasmo.

 

Para garantir essa preservação, houve alterações na forma de administrar o Mercado. Já desde a abertura da ala Norte, em junho do ano passado, a Secretaria Municipal de Administração mantém uma gerência no prédio, que faz reuniões periódicas com a Associação de Comerciantes do Novo Mercado Público. O objetivo é evitar problemas comuns antes da reforma, como construções de puxadinhos, remendos e outros tipos de obras sem qualquer fiscalização, que desfiguraram um patrimônio tombado.

 

— Os comerciantes têm que fazer a parte deles, e nós, da prefeitura, a nossa. Fazemos reuniões e fiscalizamos cada mudança dentro do Mercado. Quatro proprietários de box já foram advertidos e um, multado na ala Norte por alterações sem permissão — explica o secretário Municipal de Administração, Gustavo Miroski.

 

 

Domingo também é dia de Mercado

 

Motivo de resistência para muitos permissionários de boxes e um pedido de boa parte da população, a abertura do Mercado Público aos domingos se encaminha para uma solução amigável. A partir de setembro, o prédio deve funcionar um domingo por mês. Com apoio da prefeitura, os dias escolhidos terão atrações culturais para atrair a população. A primeira data para o teste já está definida: 6 de setembro.

 

— Ainda estamos conversando com os comerciantes, mas 100% dos donos de bares e restaurantes já garantiram que vão abrir no domingo. Vamos respeitar a decisão de cada proprietário, mas acredito que, se for viável financeiramente, todos vão querer participar — adianta Aldonei de Brito, dono de box na ala Norte e presidente da Associação dos Comerciantes do Novo Mercado Público.

 

Outra mudança anunciada por Brito é a organização dos eventos no vão central. Se antes cada proprietário contratava um músico, agora, todos os eventos terão que passar pela aprovação da associação e não poderão ocorrer dois ao mesmo tempo, para evitar poluição sonora no espaço.

 

 

Em obras até novembro

 

Se as alas esperam apenas pelos permissionários para a montagem do mobiliário dos boxes, a situação do vão central é diferente. Apenas em maio a prefeitura finalizou o processo de licitação para escolha da empresa que fará a reforma e instalação de um teto no local. A obra deve custar R$ 4,2 milhões e tem prazo de conclusão até 20 de novembro deste ano. A preparação do piso foi acelerada para a inauguração da ala Sul, mas o teto, que será retrátil, ainda depende da chegada do material.

 

— O material é importado e vem da Alemanha. Mesmo assim, estamos confiantes e tudo estará pronto antes da chegada do verão. Além disso, essa fase da montagem ocorrerá sem interferência nos eventos do Mercado — afirma Rafael Hahne, secretário Municipal de Obras.