Paulo
Divo
Wânio
Rita
D
epois de dois anos e meio de trabalho, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) entrega o relatório que reúne as informações apuradas sobre violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. No documento da Comissão Estadual de Santa Catarina, que foi encaminhado à CNV, consta o nome de quatro catarinenses que foram presos durante a ditadura militar e nunca tiveram seus restos mortais encontrados.
Cada uma das vítimas, a seu próprio modo, tem como maior marca a ausência: ausentes da vida de suas famílias. Em um primeiro momento, distantes porque escolheram lutar contra a ditadura. Depois, por não existirem informações sobre seus paradeiros. Hoje, porque o tempo mostrou que não saíram com vida da batalha que escolheram enfrentar.
"Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça". As duas frases resumem o atual trabalho da Comissão Nacional da Verdade e de seus braços nos Estados e municípios.
A apuração feita pela Comissão Nacional da Verdade trata-se de um reforço institucional para uma procura muito mais antiga, tocada por familiares e ex-militantes de grupos políticos de resistência à ditadura. A busca pela história de parentes ou amigos desaparecidos durante o regime militar começa semanas após a reabertura política do país, em 1985.
Eles que eram também militantes da AP, do PCB, do M3G e da VPR, organizações que a ditadura militar julgava que não deviam existir, assim como outros partidos que não o do governo, ou ideias de esquerda, ou a contestação ao novo poder estabelecido.
O trabalho de busca do passado até hoje não conseguiu revelar todos os excessos cometidos no período da ditadura.
É por meio do acesso às investigações da Comissão Estadual da Verdade de Santa Catarina e da busca pessoal dos familiares dos desaparecidos que a reportagem do DC conta a história de cada um desses catarinenses, que, mesmo com tantos esforços, nunca foram encontrados. Também mostra o impacto que a perda causou nos familiares. Pessoas que ficaram sem pais, irmãos ou maridos devido às suas escolhas ideológicas.
O
baú cheio de livros cai com um estrondo na água. Mas, ao contrário do que esperava quem o atirou, não afunda. Seguiu boiando rio abaixo com obras consideradas subversivas pelo novo poder que comandava o Brasil desde 31 de março de 1964. Guardado ficou apenas um pequeno, de bolso e capa vermelha. O Livro Vermelho, de Mao Tsé-Tung, cuja posse poderia render alguns dias na cadeia e algumas sessões de interrogatório. Uma recordação arriscada para Edimar Wright, mulher de Paulo Stuart Wright, marido apaixonado, mas ausente.
A cena descrita acima ocorreu alguns dias após a cassação de Wright, então deputado estadual pelo Partido Social Progressista (PSP).
A atuação dele na organização de 27 cooperativas de pescadores artesanais do litoral catarinense foi vista como próxima demais ao comunismo pelo Centro de Informações da Marinha, uma espécie de serviço secreto militar.
Vendo-se perseguidos pelos militares, Wright e Edimar foram obrigados a se separar. Não havia mais espaço para o político cassado em Florianópolis. Para evitar represálias, Wright entrou na clandestinidade.
SEPARAÇÃO E EXÍLIO
Edimar foi para o pequeno município de Almirante Tamandaré (PR), viver em uma chácara da família com os dois filhos, Leila e João Paulo, de três e um ano de idade, respectivamente.
Wright escapou de Florianópolis coberto por uma lona, atrás de um jipe. Fugiu para o Rio de Janeiro, onde se abrigou na embaixada do México.
Ficha de Paulo Stuart Wright encontrada do DOPS de Curitiba
Dali, partiu para o exílio naquele país, mas também passou por Cuba e até pela China, onde conheceu o primeiro-ministro Chou En Lai. Em Cuba, passou por treinamento de guerrilha e aprendeu a atirar.
Não se sabe ao certo a data em que o ex-deputado retornou clandestinamente ao Brasil, mas teria ocorrido por volta do ano de 1965. Ele passou a viver escondido. Um relatório da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops) de Curitiba sob o título “Atuação de comunista”, de 13 de outubro de 1968, relata que Wright foi visto em Joaçaba quatro dias antes.
Nesse momento, ele já era dirigente nacional do movimento revolucionário Ação Popular (AP). Trabalhava reagrupando operários, sindicalistas, agricultores e outros grupos que se dispusessem a lutar contra a ditadura.
A PRISÃO
O dia 4 de setembro de 1973 marca a última vez em que foi visto.
Documento militar alerta para a volta de Wright ao Brasil
O catarinense ia participar de mais um dos vários encontros clandestinos com militantes, ato que fazia em todo o país, semanalmente. Estava marcado para as 13h30min daquele dia um “ponto” (reunião breve para troca de informações) com Osvaldo Rocha e Pedro Calmon, ambos da AP. No trem que ia do bairro Barra Funda, em São Paulo, ao município de Santo André, os militantes desconfiaram da presença da polícia no mesmo vagão.
Pelo menos dois foram presos. Rocha, que hoje é dentista em Goiás, contou em depoimento anos mais tarde que foi torturado seguidas vezes naquela tarde e, depois, levado para a sala do pau de arara:
– A sala estava molhada, tinha sido recém-lavada, e lá encontrei o blusão de tricô grosso, azul escuro, de gola olímpica, que o Paulo usava frequentemente e vestia naquela tarde.
Polícia Federal aponta Wright como parte do comando da AP
Passados alguns meses da detenção de Wright, o governo negava até mesmo tê-lo prendido, apesar dos relatos de outros militantes, que chegaram a levar comida para o preso no DOI-Codi, sem nunca terem sido autorizados a vê-lo. O corpo nunca apareceu. Os militares nunca assumiram a sua morte.
Por volta da mesma época, o irmão de Paulo, Jaime Wright, pastor presbiteriano, recebeu um telefonema anônimo em sua residência, em São Paulo. Uma voz que não se identificou disse apenas: “Paulo caiu”. Sobre o gramado do quintal da casa, encontrou jogados os documentos de seu irmão desaparecido.
MEMÓRIAS NO PRESENTE
Companheiro de exílio de Paulo Stuart Wright, o padre Alípio de Freitas revelou ao filho do ex-deputado, João Paulo, um episódio em que os catarinenses discutiam à mesa com Fidel Castro, Che Guevara e Raúl Castro, atual presidente de Cuba, a situação política do país do qual tiveram que fugir.
Histórias que João Paulo sempre quis ouvir contadas pelas palavras do pai. O filho de Wright, hoje com 51 anos, tinha um ano quando começou a perseguição pelos militares. Guarda na memória apenas três momentos com o pai.
O primeiro é uma conversa entre ele e sua irmã, Leila, em que Wright explicava as razões para a ausência. Não lembra das justificativas, só do assunto. No segundo, João vai sozinho com o pai participar de um “ponto”, um encontro com outro militante da Ação Popular. Lembra que a outra pessoa não apareceu. E de ter pensado que o pai era ruim de se esconder, porque cumprimentava todo mundo que passava pela rua, mesmo sem conhecer. A terceira lembrança pode se referir a um dos principais fatos que envolvem o grupo em que Paulo militava. O filho recorda de ter a sensação da discussão de um “assunto grandioso”: um avião que teria explodido e dado uma espécie de vitória pontual contra a ditadura.
João Paulo guarda recordações da juventude dos pais
Pode se tratar do atentado ao aeroporto de Guararapes, em Recife (PE). Atribuído à AP, não foi um avião que explodiu, mas uma mala-bomba. Suspeita-se que o alvo seria o então “candidato” à Presidência, marechal Costa e Silva, que chegaria a Pernambuco para compromissos de campanha pelo aeroporto, mas mudou de rota e pousou em outra cidade. Duas pessoas morreram e 14 ficaram feridas.
RECORDAÇÕES
João Paulo guarda fotos antigas, livros, objetos e documentos da história do pai. Entre eles duas maracas, uma espécie de chocalho, que Wright trouxe de Cuba como presente para o filho ainda bebê.
Encostado à parede da sala, está um piano que foi reformado há dois anos. Um presente apaixonado de Wright para Edimar Rickli antes de se casarem. Ele estudava nos EUA, mas enviou o dinheiro para a namorada comprar o “mimo”. Voltou em 1956 ao Brasil, mesmo ano em que se casou, em dezembro.
Maracas que Wright deu de presente ao filho bebê
A religião criava, na cabeça de Wright, dois caminhos distintos. Por um lado, obrigava a presença junto à família. No outro, a ajuda aos desfavorecidos e perseguidos. Acabou optando pelo segundo. E impôs à esposa uma série de outras pressões.
Para os envolvidos na batalha contra a ditadura, não condizia com a vida de uma esposa de um líder da Ação Popular o “burguês” piano ou o fato de Edimar ter comprado uma casa em Curitiba, que ela alugava para ter uma fonte de renda. A esposa era criticada como alguém alheia às reais necessidades do país. O terreno daquela casa é o mesmo onde hoje está construída a residência em que João Paulo vive com a esposa e dois de seus três filhos, duas meninas e um menino. A compra desse terreno é um símbolo de como o desaparecimento de alguém da família afeta a vida no dia a dia. Após ser cassado, o pai de João teve que se esconder e buscar asilo. Mas a Kombi da família continuava em nome de Paulo Stuart Wright.
Edimar tentou vender o veículo para conseguir ir com algum dinheiro para o Paraná, mas precisava do marido para concluir a transferência para o novo dono.
A solução foi um amigo da família se passar pelo ex-deputado foragido. Ele entrou com Edimar no cartório para completar a venda e, por alguns instantes, foi Wright, mesmo com o risco de ser preso por engano. O dinheiro virou a residência em Curitiba.
UM GRANDE HOMEM
No início de década de 1970, apenas os recursos do aluguel não estavam sendo suficientes para sustentar os dois filhos e Edimar teve que tomar uma decisão difícil. Em um acordo do qual João Paulo desconhece os termos, sua mãe foi obrigada pelos militares a se divorciar de Paulo Stuart Wright. Em troca, foi autorizada a voltar a trabalhar. Foi apenas em 1985 que os filhos começaram a conhecer um pouco mais sobre a real atuação do pai.
Wright e o filho, ao fundo a Kombi da família
Até então, ouviam apenas de sua mãe que o pai era “um grande homem”.
Com o apoio da Assembleia Legislativa catarinense, começaram as homenagens ao ex-deputado. A família conseguiu reverter o divórcio, mas nunca a tristeza da mãe pela perda do esposo. Edimar faleceu em 1987. Dez anos depois, em 1997, a irmã de João, Leila, foi assassinada, aos 36 anos, durante um assalto.
Do núcleo da família Wright, João Paulo será o único a encontrar o corpo do pai se o último esforço de sua busca tiver êxito. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) coletou amostras de seu DNA, que serão agora comparadas com a de ossadas encontradas em uma vala clandestina de São Paulo onde já foram localizados outros presos políticos.
Entre as 1.049 ossadas encontradas na vala de Perus, no cemitério Dom Bosco, localizado na periferia da cidade, pode estar a de Paulo Stuart Wright.
O
ano era 1964 e a cidade Criciúma, Sul de Santa Catarina. Divo Fernandes de Oliveira tirou uma correntinha de ouro da pequena Alba, colocou no próprio pescoço e disse para a esposa e a filha que voltaria com uma televisão para elas.
Foi a última vez que passou pela casa em que vivia com a mulher, Naide Medeiros de Oliveira, e com a filha adotiva, Alba.
Estava a caminho de um comício no Rio de Janeiro, na praça em frente à estação de trem Central do Brasil. Realizado no dia 13 de março de 1964, o ato foi marcado pelo anúncio do presidente João Goulart, o Jango, de que faria reformas de base.
Ao lado de Jango no comício, Leonel Brizola defendeu o fechamento do Congresso Nacional e a convocação de uma Assembleia Constituinte, em um discurso mais radical, para a “formação de um governo popular e nacionalista.”
As posições de ambos teriam pesado entre os fatores que levaram ao golpe militar, apenas 18 dias à frente dessa data.
Divo era um dos militares com postura mais à esquerda que estavam lá. Mesmo aposentado pela Marinha, ele trabalhava como taifeiro – expressão que define aquele que já chega ao serviço militar com alguma habilidade prática, como motoristas, cozinheiros e alfaiates.
Era também um soldado do PCB. Mas não se sabe ao certo qual era o real papel de Divo dentro da sigla. Devido ao trabalho de ir de porto em porto, navegando em barcos mercantes ou militares pelo país, a melhor função seria distribuir o jornal da legenda: o Voz Operária. Ainda no RJ, a poucos dias do golpe militar, Divo participou da revolta dos marinheiros, iniciada na noite de 25 de março de 1964. O grupo comemorava o aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, instituição considerada ilegal pela Marinha. O comando das Forças Armadas deu ordem de prisão para os 2 mil militares presentes.
Filha conseguiu provar que Divo foi vítima da ditadura
No ato, os marinheiros declararam apoio às reformas de base anunciadas pelo presidente. Para acabar com a revolta, um acordo foi costurado, mas os marinheiros acabaram presos em um quartel, desrespeitando a "trégua". Só saíram de lá com o perdão presidencial de Goulart.
Presente nos dois momentos de tensão pré-golpe, Divo foi um dos primeiros presos políticos da perseguição após a queda de Jango. Sem ter conseguido voltar para casa desde que viajara para o comício, o marinheiro foi levado para a Penitenciária Lemos Brito no Rio de Janeiro, acusado de posse ilegal de arma e contrabando.
Da cela em que estava, desapareceu. Chegou a receber uma visita do cunhado, também membro da Marinha, que levou notícias para sua esposa em Criciúma. Quando foi a vez de Naide visitá-lo, já em 1965, o marido não estava mais. Recebeu informações desencontradas dos oficiais da instituição. Para uns, teria fugido. Para outros, foi transferido para o presídio Bangu I.
Casamento de Divo e Naide
O MISTÉRIO DO DESAPARECIMENTO
Alba Valéria dos Reis, 52 anos, tinha três anos quando viu o pai, Divo, pela última vez, na despedida antes da viagem dele ao Rio de Janeiro.
Tem como principal recordação a espera. Os dias aguardando que Divo retornasse. Não seria a primeira vez que a ausência de alguns dias se tornaria uma de semanas. Só que o reencontro nunca aconteceu.
— Eu perguntava para minha mãe: “E o pai? Ele vai vir quando?”. “Já vai voltar. Ele vai voltar”, ela respondia. “Mas quando?” E esse quando está até hoje — recorda Alba.
A mãe, Naide, nunca contou a ela o que de fato aconteceu. No início, dizia apenas que o pai estava viajando. E chorava muito, lembra Alba. O assunto era discutido em casa, mas nunca na frente das crianças. Cinco anos depois do desaparecimento do marido, em 1970, Naide tentou acesso à pensão por ser esposa de militar.
Ela estava como beneficiária de Divo. Foi informada pelos oficiais, no entanto, que só poderia fazer o requerimento com um atestado de óbito ou teria que esperar 10 anos do desaparecimento para entrar com uma declaração de ausência. Não deu tempo.
Naide faleceu em 1975. E levou o que sabia para o túmulo. O assunto ficou esquecido até 1978, quando Alba encontrou entre os pertences da mãe rascunhos de cartas. Naide relatava ao marido que Alba desconhecia todo o “sofrimento deles e a sua prisão.”
Vivendo com o irmão da mãe e a esposa dele, Alba procurou a tia para perguntar o que era aquela história de seu pai ter sido preso. O tio, José Carlos Medeiros, disse que isso tinha ocorrido por Divo trazer perfumes e lenços nos navios da Marinha: contrabando. Ainda sob o período do regime militar, mandaram que ela esquecesse o assunto e não falasse disso com ninguém.
Mas a questão não saiu de sua cabeça. A mãe sempre falava bem de seu pai, apesar de ele nunca estar presente.
Documento da aposentadoria de Divo com a foto de sua esposa
As duas informações não batiam. Alba retomou a busca oito anos mais tarde, já casada, morando em Balneário Camboriú, pouco após a reabertura política.
Ela e o marido, Nilton Reis, começaram a procura pelo passado de Divo. Juntaram dinheiro ao longo de um ano, deixaram os filhos com parentes e partiram na busca por Florianópolis, São Francisco do Sul e depois Rio de Janeiro. Descobriram na Capital catarinense que, apesar do nome de seu pai constar entre os alistados em 1911, a página com a sua inscrição na Marinha tinha sido arrancada.
No Rio, em 1989, Alba encontrou os únicos pertences que tem hoje do pai: uma caderneta de poupança, um talão de cheques, o título eleitoral e o documento de inscrição no Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos.
Foi uma espécie de reencontro. Nesse evento, acabava a busca. A única compensação pela perda do pai por parte do Estado brasileiro foi uma indenização de R$ 100 mil, que recebeu após o julgamento de que seu pai, sim, foi uma vítima da ditadura.
Os recursos viraram a casa onde mora hoje, em Balneário Camboriú.
Isso aconteceu anos mais tarde, na década de 90. Ela foi procurada por um grupo de familiares e ex-militantes que a ajudou a buscar o reconhecimento de que seu pai sofreu abusos por parte do regime militar, e encerrar de forma oficial ao caso. Para conseguir dar andamento a esse processo, colocar o nome de Divo como um dos mortos e desaparecidos do período, teve que fazer uma certidão do óbito.
No documento emitido junto a um cartório estão todas as informações que Alba tem sobre o paradeiro e a morte de seu pai. No espaço de “Falecido” XXXXXX, no espaço de “Causa Morte” XXXXXX e no espaço do local em que foi enterrado, ao lado do termo “O Sepultamento”, novamente, XXXXXX.
Certidão de óbito emitida 31 anos após falecimento de Divo
E
ra um dia bem diferente em relação aos outros daquela nova vida no Chile, em 1973. Wânio José de Mattos começou a chorar com uma notícia que parece corriqueira. Havia uma senhora brigando por mais comida para as mulheres e as crianças, no lado do Estádio Nacional reservado para elas e seus filhos, no campo improvisado de prisioneiros políticos.
– É a minha mulher – desabafou, sem tê-la visto ainda, triste por saber que ela também estava presa, feliz por descobrir que Maria das Dores, sua mulher, estava viva.
Estava certo. Wânio chegou ao Chile no dia 14 de janeiro de 1971. Trabalhava como professor universitário. No Brasil, tinha sido preso em abril de 1970. Nascido em Piratuba, Oeste de Santa Catarina, era capitão da Polícia Militar de São Paulo.
Mas foi expulso da corporação após uma denúncia. Só conseguiu ir para o Chile depois da negociação de troca de presos brasileiros pelo embaixador suíço, sequestrado numa ação realizada pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), organização a que o catarinense pertencia. Estavam no mesmo avião os catarinenses Wânio e João Batista Rita.
A mulher e a filha foram para o país vizinho em seguida, com visto de turista. Viveram com dificuldades financeiras, mas em paz, durante o governo de Salvador Allende. Até as vésperas do golpe, em setembro de 1973, quando Allende foi deposto e morto após o golpe do general Augusto Pinochet.
Antes, percebendo a tensão de que algo também estava para mudar no Chile, exilados brasileiros passaram a se reunir na casa de Wânio e combinar esforços para sair do país. A esposa de Wânio cobrava que fossem embora. O perigo aumentava a cada dia passado em Santiago. Não deu tempo de fugirem.
Ficha de Wânio encontrada no DOPS de Curitiba
Após a tomada do poder por Pinochet, os militares invadiram a residência dos dois e ambos foram levados.
No lado dos homens, Wânio era quem menos comia na cela. Reduziu sua porção para que sobrasse mais aos outros. Com o passar das semanas, parecia cada vez mais fraco, sem que fossem interrompidos os interrogatórios, realizados em português, e a tortura. A sequência fez surgirem pontadas de dor no lado direito do abdômen, aumentando a cada dia.
Otto Brockes e Samuel Baba, ambos médicos e presos políticos na mesma cela que o catarinense, tentavam disfarçar a profissão. Mas a situação impedia. A rigidez na barriga indicava uma apendicite ou uma hemorragia interna. Pediram aos carcereiros autorização para levá-lo à enfermaria e operar por conta própria. Não receberam.
No lado feminino, alguns dias depois, um oficial entregou a Maria das Dores os óculos e a aliança de Wânio. Assustada, ela perguntou por que aquilo.
– Ele não vai precisar mais – foi a única resposta que recebeu.
UMA FILHA TIRADA DA MÃE
Wânio ficou 10 dias sem receber atendimento médico. E não se sabe se recebeu algum após ser levado pelos carcereiros, em 13 de outubro de 1973. O catarinense faleceu três dias depois. O relatório Rettig, feito no Chile por uma Comissão da Verdade sobre os abusos da ditadura militar de Pinochet, informa que a transferência para um hospital de verdade foi negada. Somente após o fim dos trabalhos da comissão, em 1992, a família soube das condições de sua morte. Dezenove anos depois.
Aos 52 anos, Roberta Romaniolo de Mattos não tem nenhuma lembrança do pai com vida. Mora em Londrina (PR), depois de ter passado a infância no Chile, na França e em São Paulo, onde chegou com oito anos. Ela não esconde o receio de saber toda a história do sofrimento passado por seu pai.
– Eu tenho o telefone do Otto, mas até hoje eu não me sinto preparada emocionalmente para falar com ele – diz.
Roberta viu ao longo de sua vida o sofrimento da mãe nos vários momentos em que ressurgiam as lembranças do pai. Tinha para formar a imagem de Wânio em sua cabeça apenas as palavras de Maria das Dores, uma “mulher muito apaixonada.”
Roberta perdeu a mãe em 2001. Só cinco anos depois voltou a ter contato com a história da família no Chile, quando conheceu Samuel Baba, o último exilado político a voltar ao Brasil, em 2006, também morador de Londrina. Da boca dele ouviu as partes mais dolorosas da história. E chorou. Muito.
Soube da última vez em que seu pai foi visto. Depois de muita insistência por parte dos colegas de cela, os guardas aceitaram levá-lo ao hospital improvisado dentro do Estádio Nacional. O catarinense foi levado sendo arrastado no chão sujo da cela.
Por pouco, as ditaduras não tiraram da vida de Roberta também sua mãe. Algum tempo após ser presa, Das Dores ouviu de um militar chileno, em espanhol, a seguinte frase aqui traduzida: “Como pode uma puta brasileira ter uma filha tão linda? E eu, um general, tenho só dois meninos”. A menina foi retirada do colo da mãe e levada.
Das Dores berrou aos prantos três noites seguidas. Arranhava, em desespero, as paredes da cela em que estava presa. A ponto de perder as unhas dos dedos. Não era a primeira vez que tentavam lhe tirar a filha. Quando estava grávida de cinco meses, após a prisão do marido, foi obrigada pelos militares brasileiros a ficar em uma sala com um som incessante, no máximo volume, embaixo de cobertores, para abortar. Adoeceu, mas não perdeu Roberta.
Não iria perder dessa outra vez. Para interromper o desespero da presa, sua filha foi devolvida. Das Dores exigiu que ela ficasse com uma amiga da família. A vizinha da casa em que moravam: Estér.
Wânio recebe perdão presidencial para voltar ao Brasil depois de morto
Foi pessoalmente deixar a filha com a mulher. Algumas horas depois de deixar a menina, um veículo militar encostou na frente da casa da chilena. Bateram na porta atrás de Roberta. Mas a criança já estava na casa vizinha. A mãe ainda desconfiava das intenções daquele general, e alertou a amiga.
Em cada porta ao lado que os militares chilenos a buscavam, ela já estava na outra, passada por cima do muro que conectava os fundos das residências. Até o final da rua, quando começou a voltar e parou, novamente, na casa de Estér.
Quando Das Dores foi solta pelos militares, em novembro daquele mesmo ano, foi buscar Roberta. Levou a filha da casa da amiga para um avião, que lhe foi ofertado, junto com outros presos políticos. Embarcou sem saber para onde estava indo. Temia que fosse o Brasil. Não era. Estavam rumo a Paris.
O
estudante João Batista Rita tinha 22 anos quando foi preso, em 10 de abril de 1970, na Ilha do Presídio, localizada no meio do rio Guaíba, próximo à Capital do Rio Grande do Sul. Sua irmã, Aidê, gastava os recursos que tinha e os que não tinha para visitá-lo na cadeia. Não via o irmão como um criminoso.
Rita passou quase um ano lá, período em que foi torturado para confessar quem eram os outros envolvidos em um assalto a uma agência do Banco do Brasil, do qual era acusado. Foram sessões semanais de tortura, às vezes diárias. Momentos em que era levado para a Delegacia de Ordem Política e Social (Dops).
Nas visitas, sempre fazia questão de receber a irmã com um sorriso no rosto, apesar das marcas de choques no corpo e dos dedos machucados, pelas agulhas colocadas embaixo das unhas.
Rita tentou contar apenas aquilo que os militares já sabiam. Omitiu, por exemplo, que era um contato para formação de novos núcleos do M3G (Marx, Mao, Marighela e Guevara), organização na qual militava, e que a ideia do movimento era a luta armada para derrubar o regime militar. Os assaltos a banco eram uma forma de organizações clandestinas conseguirem recursos para financiar a resistência.
Apelidado de “Catarina” ou então “Ritinha”, ele só deixou o presídio na troca negociada entre militantes e militares, em que foi devolvido o embaixador suíço no Brasil Giovanni Bucher. Sequestrado pela organização clandestina Vanguarda Popular Revolucionária, o diplomata rendeu a liberdade de 70 presos, que deixaram o país rumo ao Chile em 1971.
Depoimento de João Rita dado sob tortura em Porto Alegre
Exilado no país vizinho, o catarinense nascido em Braço do Norte, no Sul do Estado, foi um dos brasileiros que percebeu o início das transformações no país que levaram a um golpe semelhante ao ocorrido no Brasil. Escapou da ditadura de Pinochet indo para a Argentina. Mas lá foi sequestrado em dezembro de 1973 e levado para o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do Rio de Janeiro. Chegou em uma ambulância, com o rosto inchado e a cabeça ensanguentada. Seus sequestradores, na Argentina, falavam português. Desapareceu a partir desse ponto: janeiro de 1974.
"UM MONTE DE GENTE VOLTOU. O NOSSO IRMÃO NÃO"
– A gente foi vendo o pessoal voltando pela televisão. O Brizola voltou. Um monte de gente voltou. E o nosso irmão não. Ali foi uma desilusão – conta Romilton Batista Rita, 55 anos.
O irmão explica que a ficha só caiu quando o pai faleceu, em 1979. A família esperava que Rita viesse assumir a posição de homem da casa. Mas ele não tinha mais como voltar.
A maior parte dos parentes não acompanhou o sofrimento de Rita, com exceção da irmã Aidê. Sem envolvimento político, o pai, Miguel Rita, era mecânico. Trabalhou muito para sustentar os oito filhos. E criou as crianças sozinho depois da morte precoce da esposa.
— Eu era muito menino e nunca reparei que o João só chegava de madrugada. Sempre sem se identificar — conta Romilton, lembrando também que as visitas à casa da família eram geralmente seguidas por alguma batida policial. Nessas ocasiões, Rita sempre trazia algum presente para os parentes menores, em quantidade maior que o número de irmãos para que eles distribuíssem para as outras crianças do bairro.
Romilton Rita não tem mais fotos do irmão desaparecido
A família não entendia a atuação do irmão em Porto Alegre. Pelas informações que tinham recebido após sua prisão e o exílio, ele era um assaltante de banco. Até começarem a chegar cartas do Chile.
Entre as linhas em que perguntava da família, Rita escrevia com uma tinta improvisada, feita de um limão espremido. Escondidos, vinham relatos sobre a situação política no Chile e depois na Argentina, além de detalhar a sua militância. Apenas Aidê sabia ler: o segredo era colocar o papel contra algum foco de luz. O parente exilado contou que estava feliz, apesar das dificuldades de viver em fuga. Só que, um dia, as cartas pararam de chegar.
Um ano mais tarde a família recebeu notícias. Após cobranças de parentes de militantes perseguidos sobre o paradeiro dos desaparecidos, apoiados pelos políticos do MDB — o partido de oposição à Arena, legenda da ditadura —, o Ministro da Justiça divulgou, naquele dia 6 de fevereiro de 1975, uma lista com o que seriam as informações que tinha sobre os perseguidos.
Ficha de João Rita na Justiça Militar durante a ditadura
Dos 27 nomes, apenas João Batista Rita era dado como morto. Dizia o texto oficial: “Supostamente morto em ação de guerrilha na Bolívia”. Joaquim Pires Cerveira também está na lista. Aparece como exilado para a Algéria em 1970, apesar de ter sido sequestrado ao mesmo tempo que Rita na Argentina. “Verdades” distantes do que de fato aconteceu.
O processo formado na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos — órgão criado no governo FHC para indenizar as famílias dos perseguidos na ditadura –, informa que Rita foi preso em Buenos Aires, em 1973, mas morto por militares no Rio de Janeiro, assim como Cerveira.
No livro Memórias de uma Guerra Suja, o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra confessou a cremação clandestina de perseguidos políticos. No depoimento, ele nomeia o catarinense como um dos que foram “desaparecidos” pela ditadura.
Home