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Itapema FM  | 18/08/2010 10h

Documentário remonta final da 3ª edição do Festival de MPB da TV Record

Marcelo Perrone

São imagens que muitos conhecem, mas só quem estava lá - ou assistiu ao vivo pela TV - pode dizer que viu e sentiu o que se passou naquela noite de 21 de outubro de 1967.

No Teatro Paramount, em São Paulo, era realizada a final da 3ª edição do Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. No palco, nas cinco primeiras colocações, uma conjunção rara de talentos em seus 20 e poucos anos.

Em cartaz na Capital, o documentário Uma Noite em 67 transporta o espectador para aquela noite mágica que mudou o curso da MPB. Em um momento de tensão política, surgia a ruptura entre tradição e vanguarda. Gil, acompanhado pelos Mutantes, e Caetano decidiram ver que bicho dava temperar MPB com guitarra elétrica. Nascia o tropicalismo, ponte sonora que ligou o Brasil como a Swinging London dos Beatles.

Os diretores Renato Terra e Ricardo Calil garimparam imagens raras dos bastidores e conversaram com os protagonistas, entre eles Sergio Ricardo, autor da antológica e furiosa performance de Beto Bom de Bola - impedido de cantar pelas vaias, ele jogou seu violão no público.

Edu Lobo
Aos 24 anos, o cantor, compositor, arranjador e letrista inspirado Edu Lobo já era um craque dos festivais - é coautor com Vinicius de Moraes de Arrastão, música vencedora, com Elis Regina, da primeira edição do festival, em 1965. Sua parceira em Ponteio é Marília Medalha, bela e talentosa cantora que a imprensa da época tentou tornar rival de Elis.

Reconhecido por combinar sofisticação musical com temas sociais e políticos, Edu lembra que sempre foi um compositor obsessivo (”nunca uma melodia veio atrás de mim”) e que os festivais mexiam com o público ao ponto de existirem bolsas de apostas (”éramos como cavalos de corrida”).

Gilberto Gil
Por pouco Gilberto Gil não ficou de fora desta noite especial, na qual se consagraria ao lado dos então desconhecidos Mutantes. Nas eliminatórias, Gil sofreu um “apagão” no hotel e foi buscado às pressas por Paulo Machado de Carvalho, dono da TV Record, que o jogou embaixo do chuveiro.

Diz Ricardo Calil:

– Acho que o pânico que acometeu Gil foi causado por suas contradições: participar de uma passeata contra a guitarra e, dois meses depois, se apresentar com guitarra em Domingo no Parque. Gil é um homem conciliador, mas sua música na época foi uma ruptura, inclusive com amigos muito próximos e queridos, como Elis e Dori Caymmi.

Chico Buarque
Nos depoimentos atuais, Chico e os integrantes do grupo vocal MPB 4, que cantaram Roda Vida com ele, lembram que a estrutura harmônica da canção trazia uma “acelerada” final que provocava um efeito apoteótico na plateia.

Chico fala ainda da estranheza ao se ver vestido em um sóbrio smoking enquanto Gil e Caetano subiam ao palco “fantasiados”. Diz também que, depois daquela noite revolucionária de 1967, sentiu ser tachado de “velho” e “conservador” com apenas 23 anos.

Com bom humor, afirma não lembrar das reuniões que lançariam as bases do tropicalismo porque, segundo Caetano lhe diz, comparecia bêbado aos encontros.

Caetano Veloso
Apesar de Alegria, Alegria ser considerada “americanizada”, pelo uso da guitarra elétrica (a cargo do grupo de rock argentino The Beat Boys), Caetano relembra que compôs a canção inspirado em A Banda, que Chico Buarque havia defendido na edição anterior do festival.

Segundo ele, a estrutura da música tem mais a ver com marchinhas lusitanas do que com rock’n'roll. O filme mostra como Caetano dobrou a plateia. Alegria, Alegria começa sob vaias e, a cada entrada do refrão arrebatador, vai somando aplausos até a consagração épica.

Roberto Carlos
Já o grande ídolo da jovem guarda, febre da juventude brasileira nos anos 1960, o futuro Rei Roberto Carlos surpreendeu ao defender um samba: Maria, Carnaval e Cinzas.

Naquele clima incandescente, a presença do astro, tido como um “alienado” pela porção mais politicamente engajada da plateia, era um desafio aos produtores. Havia até torcida organizada para vaiá-lo, lembra o pesquisador musical e crítico Zuza Homem de Mello, consultor do filme, na entrevista com Roberto.

- É mesmo? Se eu soubesse disso nem teria ido - diverte-se hoje o cantor, que impôs seu carisma no palco e fez seus fãs abafarem os protestos.

Entrevista: Ricardo Calil e Renato Terra, diretores do documentário Uma Noite em 67.

Zero Hora - Diferentemente da maioria dos documentários musicais, as imagens de arquivo em Uma Noite em 67 não são meras ilustrações, mas o motor da narrativa. Por que razão exibir as músicas na íntegra?

Ricardo Calil - Na montagem, Renato e eu descobrimos, com a grande ajuda do (produtor) João Moreira Salles e da montadora Jordana Berg, que queríamos fazer um filme que transmitisse a experiência do que foi o festival. A chave fundamental foi usar quase todas as apresentações na íntegra e também usar muito material dos bastidores. Como no caso do Sérgio Ricardo. As pessoas podiam conhecer os poucos segundos do violão jogado à plateia. Mas entendemos que era importante mostrar os seis minutos de vaia que antecederam esse ato - para que as pessoas pudessem sentir tanto a angústia do artista quanto a irracionalidade do público.

Renato Terra - A qualidade musical dessa edição do festival não se repetiu em nenhuma outra. Essa noite foi a síntese da efervescência musical, cultural e comportamental que ocorria naquele momento no Brasil. No início, pensamos em incluir momentos importantes de outros festivais, mas tudo ficaria superficial. O João Moreira Salles nos deu um conselho que guiou o projeto: “Se quiserem contar a história dos Correios, contem a história de uma carta”.

ZH - Entre os depoimentos atuais só fala gente que estava presente naquela noite. Faltou entrevistar alguém?

Calil - Ter depoimentos na primeira pessoa foi uma decisão importante. A gente queria falas íntimas, para que a experiência fosse não só preservada como também enriquecida pela memória dos protagonistas daquela noite. Tentamos entrevistar Geraldo Vandré, mas ele se tornou muito refratário a qualquer tipo de exposição. E também tentamos Rita Lee, que, por razões pessoais, prefere não falar sobre o tempo dos Mutantes.

ZH - E Marília Medalha (que canta Ponteio com Edu Lobo), por que não entrou no filme?

Calil - Falamos com Marília. Ela estará nos extras do DVD, assim como outros entrevistados que infelizmente não conseguimos incluir. Foram mais de 70 horas de entrevistas com mais de 30 pessoas. Na hora da montagem certas peças passam a fazer mais sentido que outras. Alguns depoimentos que são muito ricos isoladamente acabam não conseguindo se encaixar na narrativa que se estabelece.

ZH - No filme se fala de “música de festival” e de arquétipos específicos que dividiam os concorrentes em categorias como “mocinhos” e “vilões”. Isso faz parte da mitologia ou de fato existia um fórmula embalando o evento?

Terra - O conceito música de festival se popularizou com a interpretação e o gestual de Elis Regina em Arrastão (vencedora do festival de 1965). Mas só funcionava quando o público percebia que os elementos da canção eram naturais.

Calil - No caso da música, existia sim uma fórmula: mudanças de ritmo, letras com temas populares, refrões fáceis. Mas quem se guiava apenas pela fórmula não ia muito para frente. Sobre uma fórmula embalando todo o evento, acho que existiam regras boladas pelo produtor Solano Ribeiro para que a competição fosse justa, isenta e profissional. Não acho que dá para usar o termo fórmula, nesse caso.

ZH - Observa-se no teatro um clima de catarse coletiva. O festival era a caixa de ressonância para os protestos contra o regime militar?

Calil - A música funcionava na época como um espelho das divisões do país, com as pessoas adotando ou rechaçando artistas de acordo com suas visões pessoais e ideológicas. Muitas letras tinham um protesto velado contra a ditadura e cantá-las podia funcionar como uma válvula de escape. Mas é preciso levar em conta que em 1967 essas questões ainda não haviam chegado ao paroxismo de 1968, com a mítica apresentação de Pra Não Dizer que Não Falei das Flores (com Geraldo Vandré) e o endurecimento do regime.

ZH - A divisão que o festival provocou entre o novo e o velho, o careta e o moderno, deixou alguma animosidade naquela turma?

Calil - Acredito que não. Tanto Chico quanto Edu revelam que não foi fácil ser tachado de velhos naquela época, em contraposição ao tropicalismo emergente. Mas o tempo mostrou que as obras dos dois era maior do que essa divisão arbitrária - e moderna até hoje.

ZH - Alguns entrevistados parecem guardar mágoas por terem ficado no rodapé da revolução capitaneada por Gil e Caetano.

Calil - Não concordo. O depoimento do Sérgio Ricardo mostra que ele consegue olhar hoje para aquele episódio difícil com leveza e serenidade. E o do Edu Lobo revela ser ele um artista que, por decisão própria, se afastou das armadilhas do sucesso fácil.

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