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Entrevista  | 09/11/2012 21h55min

"Formam-se profissionais com deficiência em todas as áreas e em todos os níveis, da pré-escola à pós-graduação", afirma Fernando Becker

Professor da Faculdade de Educação da UFRGS defende a formação de qualidade e a promoção do pensamento científico

Fernando Becker tem uma carreira de mais de 40 anos dedicados à educação. Pesquisador de epistemologia, ramo da filosofia que estuda o conhecimento, o professor da UFRGS aprofundou seu interesse pela matemática a partir de uma pesquisa realizada nos anos 1980, quando conclui seu doutorado em Psicologia Escolar. À época, Fernando Becker acompanhou professores de diferentes áreas, desde a Educação Básica até a pós-graduação.

A investigação revelou que as principais falhas no ensino vinham justamente dos educadores que deveriam ensinar a disciplina que trata de conteúdos como geometria e aritmética. Ao invés de transmitir às crianças o conhecimento científico, os educadores disseminavam o senso comum. Resultado de uma investigação mais profunda sobre o problema, recentemente Fernando Becker lançou o livro Epistemologia do professor de matemática (Vozes, 496 páginas). Confira a seguir o que o professor tem a dizer sobre os problemas e soluções do ensino da matemática, tema de sua última publicação.

Como surgiu a pesquisa que resultou neste livro?

Fernando Becker — O livro atual surgiu da ideia que eu venho elaborando desde os anos 1980 com o meu doutorado, em que o professor pensa o conhecimento científico com epistemologia do senso comum, o que fere profundamente a qualidade do conhecimento científico. O conhecimento científico é universal e necessário, o senso comum é particular e contingente, não há como confundir esses dois. São conhecimentos que se complementam, mas são profundamente diferentes. Nessa pedagogia há um ritual quase religioso em cima da matemática, ou seja, o aluno tem que se submeter à verdade dogmática, não tem que questionar, mas tem que repetir continuamente até aquela verdade colar na sua mente.

O ensino de matemática não tem uma base pedagógica voltada ao diálogo?

Becker — Ele não tem a base epistemológica que a matemática merece. A matemática é uma ciência construída com rigor impressionante, milenar. E o professor ensina como senso comum. No preparo do professor nas pedagogias ou nas licenciaturas isso se trabalha muito superficialmente. Formam-se profissionais com deficiênica em todas as áreas e em todos os níveis, da pré-escola à pós-graduação. Se ele não teve na sua formação uma crítica sistemática própria de uma epistemologia científica ele vai continuar com as noções de senso comum. Como é que o senso comum pensa? A gente pode perguntar para um analfabeto de onde vem a inteligência humana, ele vai dar respostas de senso comum. E é impressionante como, por exemplo, em uma entrevista um professor com PHD em uma grande universidade europeia deu respostas de senso comum para as perguntas da pesquisa. A questão mais problemática é a ideia de que o bom matemático é aquele que já nasce matemático.

O senhor poderia citar alguma tentativa de ensinar matemática através do senso comum?

Becker — O professor expõe (o conteúdo) no quadro negro, o aluno copia, vai para casa e recebe uma série de exercícios para repetir, repetir, repetir. A concepção é de que você observa a exposição do professor e repete à exaustão. Esse professor que eu citei dá a receita de como se aprende matemática. Diz ele que são três momentos. Primeiro: fazer exercícios, muitos exercícios. Segundo: fazer mais exercícios. Terceiro: fazer tanto exercício até se estrebuchar. Ora, isso é senso comum. Acontece que a maior parte dos alunos que conseguem isso não aprende matemática. Qual é a explicação que o professor encontra? Já que a receita dele de aprender matemática não funciona, ele culpa o aluno, desde a preguiça até a indolência, a indisciplina, a pais separados, até a debilidade mental. Enquanto que a verdadeira causa que defendemos é que o aluno não aprendeu porque repetir não faz ele compreender. Ele tem que compreender e então exercitar.

Quais são as causas da ideia de que a matemática só se aprende através da repetição?

Becker — Não se cobra uma pedagogia diferente. Tem um orientador pedagógico na escola e alunos com o aprendizado muito precário de matemática. Se ele não tem uma crítica epistemológica, o que ele vai fazer? Vai orientar o professor a cobrar mais, ao invés de mudar a prática. E o aluno vai continuar não aprendendo. Certas capacidades não são inatas, elas não vêm da genética.

Mas a genética também tem algum papel nesse processo?

Becker — Sim, porque tudo o que nós somos é porque a genética abriu o caminho. Agora, não basta a genética abrir caminho, porque se a gente não faz nada as coisas não acontecem. Digamos que todo mundo seja inteligente. Essa inteligência vai depender do que o bebê faz, das condições de ação do bebê, do que a criança pequena faz, dos intercâmbios com outras crianças, da variedade dos brinquedos, com a presença do adulto na sua vida. O cérebro vai respondendo e se organizando na medida em que o indivíduo age sobre o meio. Primeiro age sobre as coisas; depois age sobre a variedade de símbolos que a cultura expõe. Depois entra na escola, e a escola traz mais uma quantidade de coisas. Se a criança tem oportunidade de agir sobre a variedade de instâncias da sociedade, o cérebro dela vai construindo redes neurais, conjuntos estruturais que permitem que o pensamento dê conta de coisas cada vez mais complexas e numerosas.

O professor de matemática da Educação Básica muitas vezes tem a formação apenas em pedagogia. Como essa questão afeta o ensino?

Becker — Existem patamares diferentes do mesmo problema. Os professores, principalmente do Ensino Fundamental, têm uma baixíssima formação para entender coisas básicas, como as operações aritméticas elementares. Como a formação é precária o professor realmente tem um problema de saber aquilo que ele ensina, ele não tem domínio sobre os conteúdos. O passo seguinte seria compreender esse conhecimento como um conhecimento científico, um conhecimento que tem leis, critérios de verdade, de certeza, que são as questões que a epistemologia trata. O que se vê é que o professor não tem a mínima compreensão e nunca teve a oportunidade de estudar isto, saber isto, discutir isto, elaborar essa compreensão de que tipo de conhecimento é este que ele está ensinando e quais suas exigências, para que ele seja coerente e não comece a falsear esses mesmos conhecimentos.

Por que é tão difícil chegar a esse raciocínio aritmético em matemática?

Becker — Essas crianças não tiveram um meio que exija dela, um meio que põe à disposição brinquedos que ajudem a criança a brincar, que desafie a criança a responder a perguntas cada vez mais complexas, que ajude ela a organizar os seus brinquedos. Por exemplo, uma das coisas que o adulto tem que fazer é chamar a criança para organizar, guardar seus brinquedos e guardar de acordo com certa ordem, sempre ajudando até ela conseguir fazer por si mesma.

A criança tem que ser ensinada a ter lógica e um pensamento organizado?

Becker — Isso ela faz sozinha, não adianta ensinar lógica. A gente ajuda ela a organizar as coisas dela, é assim que ela exerce a sua lógica, não adianta ensinar lógica que ela não vai entender nada, é tempo perdido. A mesma coisa é ensinar aritmética pra uma criança de cinco anos, é tempo perdido, é uma violência.

Esse auxílio de que ela precisa para ser organizada contraria a ideia de a matemática ser algo natural?

Becker — É exatamente isso, contradiz que a matemática é algo natural. Por que tem gente que chega à vida adulta, perto dos 40 anos e não consegue operar matematicamente, enquanto tem analfabeto que opera tudo de cabeça? O meio exigiu dele. Uma professora pesquisou crianças que vendiam jogo do bicho no centro de Recife e essas crianças operavam direitinho. Elas sabiam que os adultos cobravam se elas vendiam jogo e davam o troco errado. Os garotos mostravam uma habilidade extraordinária para operar soma, subtração, multiplicação e divisão. E na escola se davam mal, por isso o título do livro dela, Na vida 10, na escola zero (Cortez, 184 páginas). Elas não entendiam a linguagem da escola, então também tem esse aspecto que a docência tem que cuidar: não basta saber um conteúdo, tem que saber traduzir esse conteúdo na lógica ou na linguagem que a criança e o adolescente entendem.

Quais os exemplos de professores que conseguiram ensinar matemática de uma maneira que fosse atraente para os alunos?

Becker — Foi muito raro, mas teve professores inclusive que trabalham com aquilo que a gente chama de pedagogia ativa, ou seja, organizando coisas. Um professor de matemática tratava de calcular volumes, então levava para sala de aula pequenas caixas d’água, enchia, esvaziava, fazia as medidas de largura, comprimento, profundidade e calculava o volume, posteriormente utilizando os indicadores de quantos litros havia no recipiente. Inclusive ele falava da satisfação dessas crianças ao estudar desse jeito.

Como o senhor vê a situação do ensino de matemática no Brasil? O senhor consegue ser otimista?

Becker — Eu acho que melhora. Tem eventos de ensino de matemática no Brasil em que há grande esforço de professores para conseguir melhorar o ensino, então eu diria que há esforços importantes. O problema é saber se esses esforços estão chegando à escola. Por que uma coisa são os esforços dos pesquisadores, dos estudiosos, e outra coisa são as políticas públicas. Parece que o poder público não entendeu qual é o problema.

Falta raciocínio matemático para os políticos?

Becker — Falta. E falta compreender que a formação docente está precária. Eu fui três vezes ao Chile em 2009 e 2010 à convite de universidades, e eles têm um curso que se chama Pedagogia em Matemática. Então o futuro professor não sai de um curso de matemática e vai fazer três ou quatro disciplinas na pedagogia, como acontece praticamente em toda formação de professores no Brasil. Ele está aprendendo como se ensina matemática e como se pode tratar a matemática sobre o ponto de vista didático-pedagógico em função das capacidades do aluno. A impressão que eu tenho no Brasil é de que os governantes não têm ideia de qual é o problema. Quando eles inventam algum projeto a gente vê que eles não estão antenados, eles não sabem do que estão falando.

DIOGO FIGUEIREDO - ESPECIAL
Fernando Gomes / Agencia RBS

Em livro lançado este ano, Fernando Becker analisa a relação do professor de matemática com o conhecimento científico
Foto:  Fernando Gomes  /  Agencia RBS


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