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Editorial  | 04/10/2012 06h04min

Estudantes fora da série adequada representam quase um terço de todas as redes no Estado

Com mais de 30% dos alunos nesta situação, Ensino Médio tem o desafio de fazer estudantes perseverarem

Carlos Etchichury e Marcelo Gonzatto  |  carlos.etchichury@zerohora.com.br | marcelo.gonzatto@zerohora.com.br

É noite de segunda-feira e a professora Rejane Gheno prepara-se para discutir conceitos de população e densidade habitacional na turma 33C do Colégio Estadual Júlio de Castilhos — um dos mais tradicionais do Estado.

— Vocês sabem qual é a população total do Brasil?

Silêncio.

Alguém arrisca:

— 140 milhões de habitantes.

— Não — diz Rejane.

— 190 milhões — informa Ana Borges, apelidada de Tia Ana pelos colegas, uma dona de casa de 49 anos que senta ao lado da filha, a adolescente Fernanda, 17 anos.

— São 192 milhões de habitantes — retifica Rejane, perfeccionista, emendando outra pergunta:

— O Brasil é populoso ou povoado?

— Povoado — devolve a atilada Ana.

— Vocês sabem por quê? — quer saber a professora de geografia.

Ninguém responde.

Ela mesma complementa:

— No Brasil, há 22,4 habitantes por quilômetro quadrado. É pouco. No Principado de Mônaco, a relação é de 17.436 habitantes por quilômetro quadrado. É por isso que o país é populoso, mas não é povoado.

Na 33C, os maduros, como Tia Ana, são os mais dedicados. Talvez não seja a regra — nem para o Julinho, com seu universo de 2.167 alunos, e muito menos para o Rio Grande do Sul —, mas, pelo menos na 33C, a maioria dos "tios" e das "tias" age assim.

— Eles são os mais estudiosos e cuidadosos — analisa Rejane, que experimenta a condição de "tia" na aulas da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde é acadêmica e tem colegas com a metade de sua idade.

Estudantes do Ensino Médio fora da série adequada representam quase um terço (30,5%) de todas as redes no Estado. São 123.413 mil alunos. Há dois perfis entre os mais experientes: o repetente contumaz e o que decide retornar aos estudos após um período de abandono. Tia Ana está no segundo grupo. Abandonou os estudos há 14 anos, após completar o Ensino Fundamental, quando Fernanda tinha dois anos.

— É a minha filha mais nova — revela Ana, que também é mãe de Geisa, 30 anos, e Priscila, 28 anos.

Ela abandonou os estudos para cuidar de Fernanda e voltou aos bancos escolares com o mesmo objetivo. Em 2010, ao matricular a filha, decidiu:

— Como eu iria buscá-la todos os dias, resolvi voltar a estudar com ela.

Com o cérebro treinado pela leitura de livros, jornais e revistas, não estranhou o reencontro com os livros.

— A gente faz os temas juntas, depois do almoço. Como as notas da mãe são melhores do que as minhas, ela me ajuda bastante — conta Fernanda.

Mãe e filha pensam em ingressar na faculdade em 2013.

— Quero cursar Design de Moda — informa Fernanda.

— Eu penso em Gestão Ambiental ou Agronomia — complementa Ana.

Em colégios como o Julinho, este perfil de estudante é agrupado em determinadas turmas.

— Os professores são mais tolerantes com estes alunos, que normalmente trabalham durante o dia — confidencia Fernanda Gaieski, vice-diretora do noturno.

Na 33C, dos 35 matriculados, 26 têm mais de 19 anos. Desde abril, a escola oferece jantar, servido antes do início as atividades.

— Notamos que a evasão diminuiu — comemora a vice-diretora.

Outros personagens da turma:

Marco sonhava em voltar a estudar

Sempre que buscava as filhas Juliana e Daniela no Julinho, em 2009, Marco Zamora (à esquerda na foto), 48 anos, olhava para as salas de aula e se via entre os alunos.

— Eu ficava me imaginando aqui dentro, atrás de uma classe, junto com eles... — conta.

Como milhares de jovens gaúchos, entre o trabalho e os estudos, optou pelo primeiro uma década atrás.

— Precisava sustentar a família — recorda Marco, que trabalha 13 horas por dia, como porteiro e zelador.

Com as quatro filhas encaminhadas — é pai também da administradora Gabriela, 23 anos, e de Mônica, 24 anos, formada em Marketing —, decidiu concretizar o sonho. Em 2010, matriculou-se no 1º ano do Ensino Médio.

— Tenho um pouco de dificuldade em língua portuguesa, mas estou indo adiante — avisa.

Após a formatura, antes de pendurar as chuteiras, ou melhor, os livros, Marco quer fazer um curso de técnico em eletrônica.

— Acho que já não tenho pique para fazer faculdade — resigna-se.

Pâmela retornou após dar à luz

O rompimento de Pâmela (à esquerda na foto), 22anos, com os estudos coincide com o nascimento de Isabelly, hoje com cinco anos.

— Ela nasceu em junho. Eu fiquei fora alguns meses, mas não consegui concluir o ano. Mas depois ficou difícil — conta.

Se uma mulher madura tem dificuldades em adequar a vida às necessidades de um bebê, imagine o que se passa com uma adolescente de 16 anos após dar à luz? Diante da rotina de amamentação no peito, madrugadas insones, troca de fraldas, banho de banheira, papinha, Pâmela capitulou:

— Acabei largando o colégio em 2008 e 2009.

Desabituada às lides escolares, Pâmela, que retornou em 2010, penou no 1º ano do Ensino Médio.

— Cogitei até fazer supletivo, mas, pensei: é muito fácil, não tem graça!

Concluiu o 1º e o 2º e, agora, prepara-se para a formatura no final do ano. O raciocínio lógico e a facilidade com números fazem com que Pâmela projete Administração de Empresas ou Ciências Contábeis na faculdade.

Para seu irmão Cristian, na 6ª série do Ensino Fundamental aos 15 anos, Pâmela faz um alerta:

— Quando for mais velho, ele vai se arrepender de ter rodado de ano.

Carlos quer ser engenheiro

Natural de Bom Princípio do Piauí (PI), Carlos Alexandre de Oliveira (à direita na foto), 25 anos, desembarcou em Porto Alegre há três anos. Atraído pela oferta de empregos na construção civil, o pedreiro matriculou-se no Julinho, cursou os dois primeiros anos do Ensino Médio e agora, às vésperas da formatura, projeta trocar de profissão:

— Quero ser engenheiro.

Para quem superou os dois primeiros anos do Ensino Médio chegando em casa à meia-noite e acordando às 5h para levantar parede e revirar cimento, ingressar na faculdade talvez não seja desafio intransponível.

— Se ele não desistiu até agora, não desiste mais — diz Urubatã Estivalet Gomes, professor de biologia do Julinho.

Com experiência de duas décadas no colégio, arrisca um diagnóstico do desempenho dos mais experientes:

— Nas questões teóricas mais abstratas, eles têm certa dificuldade. No entanto, nas questões mais práticas, eles vão melhor.

Jéssica rompe tabu familiar

Filha de uma doméstica e de um funcionário de manutenção, Jéssica Cavalheiro Fialho (à direita na foto) prepara-se para superar um tabu familiar: será a única dos cinco filhos de Cláudia Cavalheiro Fialho e Jorge Porciúncula Fialho, ambos com 54 anos, a concluir o Ensino Médio e, provavelmente, a ingressar numa universidade.

Sorridente, unhas pintadas de dourado, trancinhas no cabelo, duas mechas amarelas em destaque, Jéssica é uma adolescente de 23 anos. Talvez por conta da imaturidade, soma cinco repetências em seu currículo - na 1ª e 7ª série do Ensino Fundamental e no 1º ano do Ensino Médio.

— Quando eu comecei a trabalhar, ficou muito estressante estudar.

Estagiária no Gabinete de Gestão do Palácio Piratini, Jéssica, que recebe R$ 575 para trabalhar seis horas diárias, perdeu oportunidades.

— Fui convidada para ocupar um CC (cargo em comissão), onde eu ganharia três ou quatro vezes mais, mas não tinha Ensino Médio concluído para assumir a vaga — lamenta.

A partir de 2013, Jéssica vai colocar em prática o projeto de ingressar na faculdade. São três as opções: Relações Públicas, Direito e Química. Química?

— Tenho uma amiga que estuda Química e utiliza os próprios cosméticos que produz. Como sou muito vaidosa, gostei da ideia — conta.

Paradigma novo para as escolas

Como oferecer uma aula adequada, daquelas que fisgam alunos, para estudantes com idades e interesses tão díspares no Ensino Médio? Este é um dos desafios que a Secretaria Estadual da Educação (SEC) tem pela frente nos próximo anos.

No Estado, 30,5% dos estudantes (123 mil alunos) do Ensino Médio encontram-se naquela faixa definida como "distorção idade-série". Simplificando: estão atrasados devido à repetência, abandono ou evasão.

Na interpretação da SEC, o fenômeno tem relação com a universalização do acesso ao ensino na década de 90, após a Constituição Federal.

— Estamos vivendo uma contradição: ampliamos o acesso à escola, mas não conseguimos oferecer uma escola que garanta aprendizagem para enormes contingentes populacionais que passaram a ter direito ao ensino. A escola, mesmo pública, ainda é elitista — analisa o secretário da Educação, Jose Clovis Azevedo.

Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Elizabeth Krahe aponta dois aspectos a serem vencidos a médio e longo prazo:

— Precisamos aproximar o mundo da escola e o mundo do trabalho, através de uma adequação curricular, e formar e requalificar professores para lidar com este perfil de alunos. Os professores estão capacitados para trabalhar com alunos de 14 anos a 17 anos, que é o perfil ideal, mas esta não é a realidade do Ensino Médio.

Funciona ou não funciona? Ninguém sabe

O Ensino Médio noturno enfrenta uma dificuldade no país: a falta de dados oficiais sobre o rendimento dos alunos que estudam à noite. O Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep) não contabiliza nenhum tipo de indicador de qualidade, como taxas de evasão e abandono, por turno.

Conforme a assessoria de imprensa do Inep, a única estatística que contempla o horário é o número geral de matrículas. Mas esse dado nem sequer aparece separado por séries.

A Secretaria Estadual da Educação (SEC) também não dispõe de indicadores de qualidade sobre a educação noturna. Conforme a assessoria de comunicação, o Estado utiliza a base de dados do Inep.

Uma das poucas pistas sobre essa modalidade de ensino no Estado vem de uma pesquisa, divulgada pelo Ministério da Educação em 2008, que traz dados de matrículas por série no período de 1998 a 2002 e contou com a participação da professora da Faculdade de Educação da UFRGS Vera Peroni.

O trabalho mostra que, no último ano avaliado, o número de matrículas caiu 40% entre a 1ª e a 3ªséries do Ensino Médio, revelando "situações de evasão, abandono e repetência, relativamente maiores nas escolas desse turno de funcionamento".

— A falta de dados sobre esse turno é um problema — afirma Vera.

ZERO HORA
Lauro Alves / Agencia RBS

Mãe e filha (ao centro) são colegas da mesma turma no Colégio Estadual Júlio de Castilhos
Foto:  Lauro Alves  /  Agencia RBS


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