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Gente  | 07/03/2011 07h10min

O guardião do Rio dos Sinos

Jackson Müller é um homem que não mede riscos para defender uma das principais fontes de água potável do Rio Grande do Sul. E ganhou muitos inimigos por conta disso

Letícia Barbieri  |  leticia.barbieri@zerohora.com.br

Daquela manhã de domingo, 8 de outubro de 2006, ele lembra pouco. Não tinha muito tempo para pensar, para sentir. Diante de quase cem toneladas de peixes mortos e outros tantos ainda agonizando ao longo do Rio dos Sinos, ele só conseguia agir.

Mas do dia seguinte, Jackson Müller lembra bem. Sentado sozinho em um barco, tentando salvar o que já estava perdido, ele desabou.

Dali foram 25 noites em claro, intercaladas por cochilos de uma ou duas horas e dezenas de ordens para que ficasse sentado em sua sala a dar explicações sobre a dimensão do que havia destruído, em poucas horas, o que ele lutou a vida inteira para preservar.

Mais do que os peixes, o Rio dos Sinos agonizava. Leva o nome de Tristeza o álbum que guarda no computador pessoal as primeiras fotos que registraram a mortandade.

- As lágrimas corriam, eu tentava esconder, mas não tinha como. Tantos anos brigando e não consegui evitar aquilo. Não conseguia mais segurar a indignação - recorda Müller.

Biólogo, ele era o diretor-técnico da Fundação Estadual de Proteção Ambiental

(Fepam) e se negou a ficar sentado. Precisava encontrar uma explicação. Jamais voltaria a dormir sem uma resposta, sem dar uma satisfação a si próprio do que acontecera ao rio pelo qual brigou a vida inteira.

Como um verdadeiro guardião do Sinos, Müller mobilizou autoridades, moradores e fez um mutirão para retirar as toneladas de dourados, tainhas e tantas espécies que há anos estudava. Tinha de agir rápido para salvar os que ainda viviam.

- Era o meu rio. Pedi para abraçar a causa, e muitos não compreenderam. Achavam que eu queria aparecer. Mas era o meu rio, como é que eu ia virar as costas para ele? - indigna-se o biólogo.

Ao arregaçar as mangas, voltou a comprar brigas e encontrou a origem do estrago. Em um sobrevoo pelo município de  Estância Velha, deparou com um vazamento gigantesco. Vinha da Utresa, empresa onde hoje ele é interventor judicial. Também foi Müller que coordenou a restruturação do local ao custo de R$ 20 milhões nos últimos quatro anos.

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Respeito pela origem da água

Por causa desse mesmo rio, Jackson Müller acreditava que viveria apenas 38 anos. Chega aos 46 bem impressionado. Discutir poluição, apontar irregularidades, brigar pela água que é de todos não é tarefa simples.

Já lhe rendeu incontáveis ameaças, calúnias, ofensas e até comunidades em redes sociais que exaltam amor e ódio. Anti-econômico, contra o desenvolvimento, causador do desemprego, acusam anônimos.

- Eu só sou contra a poluição. A favor do rio. E a favor do desenvolvimento, mas não a qualquer preço. De uma maneira geral, são os poluidores que não gostam de mim - explica.

A indignação é uma mistura de carinho e respeito profundo pela origem da água que abastece 1,5 milhão de habitantes do Vale do Sinos. De uma água que nasce cristalina, em Caraá, e vira negra, misturada a lixo, esgoto sanitário e descaso de muita gente, em Novo Hamburgo. Mas Müller não se cala. E questiona:

- Está escasso o número de pessoas empenhadas nessa causa, e eu me entristeço. Passo anos em sala de aula explicando a situação. Na mortandade de peixes, em 2006, sabe quantos alunos apareceram para ajudar? Nenhum! O que está acontecendo? Por que essa inércia? Por que esse descaso?


Arroz fora do cardápio

Desde que se entende por gente, o biólogo se relaciona com o rio. A culpa é do pai, diz ele. Foi das pescarias da infância que a relação Jackson Müller e Rio dos Sinos se estreitou. Tem orgulho de dizer que já passou seis dias inteiros dentro do rio.

Em 2001, em uma operação contra a pesca predatória, na retirada das redes, em Taquara, acabou se cortando, e a água, infectada pelo chorume de um lixão clandestino, infeccionou a ferida. Foram dias em coma. Ele daria a vida pelo Sinos. E faz protestos pessoais.

Há 12 anos, Müller não come arroz. Não suporta a ideia de que são necessários 2 mil litros de água de um rio franzino para míseros um quilo de arroz. Mas não faz apologia. Em casa, a mulher come os grãos, e o filho - gestor ambiental aos 21 anos - se arrisca de vez em quando. Mas quem deixa o hábito por um dia ganha um olhar de reconhecimento:

- Para mim, comer arroz é um crime ambiental. O Sinos faz parte da minha vida. Me nego a comer arroz. Esse rio não comporta o plantio de arroz. Não desse tipo.

Para quem já teve a caminhonete cravada de balas quando a luta ainda era apenas contra a poluição, ele não sabia que o pior ainda estava por vir. Mas foi quando a água do rio desapareceu, em 2003, que a briga ficou séria.

- Até ali não tínhamos crise. Foi em 2003 que a água sumiu. O rio baixou a níveis impressionantes e fomos ver o que era. E o problema, em um rio, se enxerga de cima. Pedi a um empresário que me levasse de helicóptero, chegando lá, era tudo arroz, lavouras e mais lavouras. Lá que estava a água - conta.


Truculência e excessos

É com silêncio que os produtores de arroz absorvem o nome Jackson Müller. Lembram bem do tempo em que eram alvo de investigações do homem que chegava escoltado por policiais e, segundo eles, preferia resolver as questões assim mesmo. Mas reconhecem: o cara é forte e influente.

- O problema é que ele já distorceu muito as coisas. Por muito tempo, tudo o que acontecia no Rio dos Sinos ele jogava a culpa em nós. Como é uma pessoa influente, ficava só a versão dele. Chega a ser um exagero. Nós não queremos que falte água, é claro que não - diz José Aroldo Cadorin, produtor de arroz em Santo Antônio da Patrulha e Caraá.

Mesmo quem luta pelo rio tem suas ressalvas quanto à postura ferrenha do biólogo. Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santo Antônio da Patrulha e integrante do Comitesinos - que estuda a bacia do Sinos -, Arnaldo Bühler é um deles.

- Ele tem bastante força, mas é muito radical, truculento. Ele vinha com a polícia e abordava alguém capinando apontando uma arma. Queria mais aparecer do que resolver alguma coisa. Lidar com o povo não é fácil, nós trabalhamos com o diálogo. Ele não tinha esse meio termo - observa Bühler.


Uma luz no fim do túnel

Contratado oficialmente como biólogo do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público (MP), Müller é professor da Unisinos há 20 anos e interventor judicial da Utresa. Já foi secretário do Meio Ambiente de Estância Velha e de Novo Hamburgo e diretor-técnico da Fepam.

Da briga que comprou pelo Rio dos Sinos, ele se orgulha e, finalmente, respira aliviado. Com a concretização de uma Promotoria Regional de Meio Ambiente e uma Delegacia do Meio Ambiente da Polícia Civil unidos em uma força-tarefa da qual também faz parte, ele agora vê uma luz no fim do túnel.

- A cada quatro anos, muda o prefeito, e tudo muda. Precisamos ter uma independência de cor e partido para salvar o rio. O MP tem isso - comemora.

Por oito anos promotor público em Estância Velha, Paulo Eduardo de Almeida Vieira acompanhou o trabalho de Müller, a quem chama de sonhador:

- O Jackson é um cara que se posiciona, e muitas pessoas veem nele um entrave. Hoje, com a promotoria regional, temos algo concreto. Agora, as ações serão coordenadas por um promotor em um combate severo e implacável na questão da degradação ambiental.

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ZERO HORA
Miro de Souza / Agência RBS

Jackson já entrou em coma por causa do rio
Foto:  Miro de Souza  /  Agência RBS


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