Rebelião de sargentos na Base Aérea
Dione Kuhn
Motim impede bombardeio / A rebelião / Onde conferir a memória do episódio / Movimento uniu gaúchos e goianos / Um general escondido no Palácio Piratini
Motim impede bombardeio

Acervo Museu Hipólito José da Costa, Reprodução/ZH

   Uma ordem expedida pela Aeronáutica, na madrugada do dia 28 de agosto, para que aviões fizessem rasantes sobre o Palácio Piratini provocou uma rebelião de sargentos e suboficiais na Base Aérea de Canoas. No quarto dia da série sobre a Legalidade, Zero Hora reconstitui o episódio.

   A mensagem era cifrada, mas não deixava dúvidas: "Autorizado efetuar vôos de intimidação sobre o palácio".
   A ordem para o ataque aéreo ao Palácio Piratini, transmitida pelo Estado-Maior da Aeronáutica na madrugada do dia 28 de agosto de 1961, transformou por 24 horas a Base Aérea de Canoas no epicentro da crise desencadeada com a renúncia do presidente Jânio Quadros e o veto dos ministros militares à posse do vice-presidente João Goulart.
   Caberia ao 1º Esquadrão do 14º Grupo de Aviação (1º/14) executar a operação. Dos 18 aviões Gloster Meteor estacionados no hangar, apenas 12 tinham condições de operar. Cada caça podia carregar uma bomba de 500 libras ou duas de 250 libras, mais a carga de munição para os canhões. Ao repassar a missão aos pilotos, o comandante do esquadrão de caça, major Cassiano Pereira, disse que os vôos seriam de intimidação, mas caso o líder do movimento legalista, Leonel Brizola, continuasse com suas pregações, a ordem era de bombardear o palácio.
   A decolagem estava prevista para as 6 horas do dia 28 de agosto. Brizola soube da mensagem do bombardeio ainda na madrugada, por meio de um radioamador. A notícia deixou a multidão entrincheirada no Piratini sob tensão. As luzes do palácio e dos arredores da Praça da Matriz foram apagadas para dificultar a identificação do alvo pelos pilotos.
   Quando os Gloster Meteor estavam armados, um grupo de sargentos do esquadrão entrou escondido no hangar, esvaziou os pneus dos caças e desligou as bombas. Na pista de decolagem foram colocados sacos de areia. Tão cedo os aviões não decolariam. Não demorou para a notícia do bombardeio se espalhar pela base.
   O então primeiro-sargento Álvaro Moreira de Oliveira decidiu deixar o Esquadrão de Pessoal, onde servia, para ver o que estava acontecendo no hangar. Próximo ao cassino dos oficiais, recebeu uma ordem para parar sob pena de levar um tiro. A ameaça partiu do capitão Danton Pinheiro Machado, um dos oficiais que pregava o cumprimento das ordens da cúpula militar. Levado para o gabinete do comandante da base, tenente-coronel Honório Pereira de Magalhães, Álvaro acabou fugindo e se juntando aos demais colegas amotinados. Desesperado, com os olhos vermelhos, sem habilidade para contornar aquela crise, Honório acabou entregando o comando e deixando o Estado.
   Não havia líderes na rebelião. Cada sargento começou a tomar suas próprias iniciativas para impedir o bombardeio. Alceu Boeira Ramos, hoje primeiro-tenente da reserva, 76 anos, foi um dos primeiros a ir até o QG do 3º Exército, na tarde do dia 28, relatar o que estava acontecendo na base.
   O aspirante a oficial Avelino Iost – também tenente-coronel da reserva, 75 anos – incumbiu a mulher, Iléa, de ir até a prefeitura de Canoas pedir ao prefeito José de Medeiros, um coronel da reserva, que interferisse na crise.
   De uma reunião rápida entre um grupo de sargentos, foi decidida a indicação de três que iriam até o palácio comunicar o que estava acontecendo. À noite, saíram rumo a Porto Alegre o primeiro-sargento Álvaro Moreira de Oliveira, o segundo-sargento Ney de Moura Calixto – primo-irmão de Brizola – e o suboficial Moacyr Paluskeivizs. Os três foram levados pelo colega Golberi Dias, que depois retornou. Chegaram ao palácio com a roupa amarrotada, a barba por fazer e metralhadoras a tiracolo. Depois de ouvir o relato, Brizola encaminhou-os ao QG, onde foram recebidos pelo general Machado Lopes.
   – Aquela ordem de bombardeio era loucura. Todo mundo tinha parente, amigo, colega que morava perto do palácio – conta Álvaro, 76 anos, também primeiro-tenente reformado.
Mesmo que os rasantes fossem apenas para intimidar Brizola, a ação poderia ser interpretada como uma provocação. Os prédios da Praça da Matriz estavam tomados de brigadianos portando fuzis e metralhadoras. Qualquer ato individual de um deles poderia provocar a reação dos pilotos.
   A situação só começou a ser controlada no dia seguinte, quando chegaram as tropas do 3º Exército à base. Os sargentos amotinados ficaram horas debaixo de sol, aprisionados. Só na tarde do dia 29 começaram a ser libertados.

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A rebelião

 

• Por volta das 5h do dia 28 de agosto, o comandante da 5ª Zona Aérea de Canoas, brigadeiro Aureliano Passos, reúne-se no Quartel-General (QG) do 3º Exército com os generais Machado Lopes, Antônio Carlos Muricy e Sílvio Santa Rosa para relatar as ordens que havia recebido do Estado-Maior da Aeronáutica e julgara preocupantes. Entre as determinações estava a de fazer vôos rasantes sobre o Palácio Piratini como forma de intimidar Leonel Brizola e fazer com que ele se calasse.

• Na manhã do mesmo dia, o major Álcio da Costa e Silva, responsável pelo serviço de comunicações do QG, recebe ligação do general Orlando Geisel, do gabinete do ministro da Guerra, Odílio Denys. O comandante do 3º Exército, José Machado Lopes, recebe o recado e se dirige à estação de rádio. Entre as determinações está a de calar imediatamente Brizola, pondo fim "à ação subversiva".

• A operação exigiria a concentração e o deslocamento de tropas e outras medidas, como empregar a Aeronáutica, "realizando, inclusive, o bombardeio, se necessário". O rádio informa ainda que está a caminho do Rio Grande do Sul uma força-tarefa da Marinha. Geisel encerra a transmissão comunicando que o ministro da Guerra confia no cumprimento do dever do 3º Exército.

• Após o recado, Machado Lopes transmite o seguinte comunicado: "Cumpro ordens apenas dentro da Constituição vigente". O general deixa a sala da estação sem falar com ninguém. Muricy é quem recebe a resposta de Geisel: "General Machado Lopes, onde esta ordem é inconstitucional?"

• No final da manhã, Machado Lopes e o general Sílvio Santa Rosa seguem para o Palácio Piratini, onde é declarado apoio à tese de Brizola. Na noite anterior, o comandante do 3º Exército havia recebido em seu gabinete dois emissários do palácio: o auditor de Guerra Lauro Schuch e o procurador-geral do Estado, Floriano D'Ávila. No encontro, o general tinha pedido que Brizola moderasse os "atos de exaltação revolucionária" e a devolução da Rádio Guaíba.

• Na Base Aérea o dia 28 vai avançando em clima de insubordinação. O brigadeiro Aureliano Passos pede a Machado Lopes que envie tropas do Exército à base para contornar a crise e restabelecer a ordem. Sargentos e suboficiais haviam impedido a decolagem de aviões carregados com bombas. O brigadeiro, que era contrário ao movimento de Brizola, deixa o comando da zona área e segue para Rio.
• Frustrado o ataque ordenado pelo ministro da Guerra, os caças Gloster Meteor voaram para a base de Cumbica (SP) por determinação da Aeronáutica.
• No lugar de Passos assume o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro. Na base aérea o major Mário Oliveira substitui o comandante Honório Pinto de Magalhães, que também havia deixado o comando. Mário e Alfeu deram solidariedade ao movimento de Brizola. Outro oficial que esteve ao lado da Legalidade foi o capitão Alfredo Ribeiro Daudt.

 

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Onde conferir a memória do episódio

Banco de Dados/ZH - 30/11/1961
   Passada a crise da renúncia de Jânio Quadros, o general fluminense José Machado Lopes, que no comando do 3º Exército deu respaldo ao movimento legalista liderado por Leonel Brizola, recebeu uma série de homenagens, entre elas o título de cidadão gaúcho.
   Uma espada banhada a ouro, com duas bainhas, foi também entregue, no dia 14 de novembro de 1961, ao oficial por um grupo de representantes da sociedade gaúcha. No mesmo dia o general doou a espada para o Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Passados 40 anos, a espada encontra-se guardada dentro de um cofre do museu, longe da vista do público.
   O Museu da Brigada Militar, instalado no quartel-general da corporação, na Rua da Praia, abriga armamentos, uniformes e capacetes utilizados durante agosto e setembro de 1961. No acervo há também a partitura do Hino da Legalidade (letra da poetisa Lara de Lemos e música do ator Paulo Cesar Pereio) e edições de 1961 das revistas do Globo e Cruzeiro. A cobertura jornalística da última insurreição gaúcha também pode ser vista no Museu de Comunicação Hipólito José da Costa.
   O espaço entre a Praça da Matriz e o Palácio Piratini, onde milhares de gaúchos se concentraram para defender a posse de João Goulart, desde 1986 é denominado Largo da Legalidade. Uma placa em homenagem aos 25 anos do movimento está localizada nos jardins da Praça da Matriz, em frente ao palácio.
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Movimento uniu gaúchos e goianos

Reprodução/ZH
   A Campanha da Legalidade capitaneada pelo governador Leonel Brizola ecoou a 1.847 quilômetros de distância.
Goiás, governado por Mauro Borges (PSD), foi o único Estado que não só deu apoio incondicional ao movimento gaúcho como armou uma operação de resistência à decisão dos ministros militares de vetar a ascensão de João Goulart à Presidência da República.
   Nada foi combinado com seu colega do Sul. No dia 25 de agosto de 1961, Borges encontrava-se num almoço com o governador de São Paulo, Carvalho Pinto, quando soube da renúncia de Jânio Quadros. Foi um dos últimos a ver o ex-presidente na Base Aérea de Cumbica.
   Quando soube da manifestação dos ministros militares, passou a anotar compulsivamente em uma caderneta as estratégias para um plano de mobilização no seu Estado. Borges fazia análises da situação política, trabalhando com quatro perspectivas: permanência de Ranieri Mazzilli (presidente da Câmara que havia assumido a Presidência na ausência do vice-presidente da República João Goulart, que regressava da China), implantação de uma ditadura militar, retorno de Jânio e posse de Jango.
   No dia 28 de agosto, auge da crise, Borges traçou um plano geral de ação, imaginando que os militares não deixariam mesmo Jango substituir Jânio. Entre as linhas de ação que deveria tomar estavam esclarecer o povo sobre a situação do país por meio de comunicados nos jornais e rádios, intensificar o preparo da defesa de Goiânia com ou sem a colaboração do Exército e dar ordens ofensivas contra as tropas leais aos ministros militares em Brasília.
No dia 29 de agosto, Goiás e Rio Grande do Sul se comunicaram pela primeira vez por meio da Rede da Legalidade. Brizola fez um pronunciamento agradecendo a colaboração do povo de Goiás e explicando a adesão do 3º Exército ao movimento.
   – Naquele momento Goiás se ligou ao Rio Grande. Só esses dois Estados resistiram. No Rio Grande o movimento foi muito bonito, cheio de energia, e teve o apoio do 3º Exército. Nós aqui ficamos sozinhos, sujeitos a uma série de pressões e violências – relembra o o ex-governador e hoje coronel da reserva, 81 anos.
Borges avalia que dificilmente teria sucesso na sua empreitada. Contava com o apoio popular, mas não tinha o poderio militar a seu lado, como teve o Rio Grande do Sul.
   – Por mais que o povo quisesse ajudar, não tínhamos armamento suficiente – diz.
Posteriormente, Mauro Borges recebeu o título de cidadão gaúcho. Ainda no mandato de Jango, rompeu com o presidente por motivos políticos. Em 1964, respaldou o golpe militar. Mesmo assim não escapou de represálias, sendo perseguido e confinado em sua fazenda pelas atitudes tomadas em 1961.
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Um general escondido no Palácio Piratini

   Um dos generais que em 1964 viria a apoiar a instauração do regime militar esteve durante a Campanha da Legalidade escondido no Palácio Piratini.
Amaury Kruel, na época sem comando e residindo no Rio, foi um dos primeiros a ser sondado por Leonel Brizola sobre a posição da cúpula militar de impedir a posse de João Goulart.
Fazia parte da estratégia do governador ter a seu lado um oficial de prestígio que pudesse prontamente assumir o comando militar da operação desencadeada no Estado. Kruel aceitou se deslocar para o Rio Grande do Sul, partindo do Aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP), conforme combinado previamente com o governador gaúcho.
   À paisana, com a farda na bagagem, desembarcou na cabeceira da pista do Aeroporto Salgado Filho, onde foi recebido pelo subchefe da Casa Militar, major Emílio Neme.
Kruel foi nomeado chefe da Casa Militar do novo governo no dia 5 de setembro, dois dias antes da posse, em pleno vôo que levava Jango de Porto Alegre para Brasília. Anos antes, o general havia liderado o manifesto de um grupo de coronéis contra João Goulart – então ministro do Trabalho do governo Getúlio Vargas – por ter duplicado o valor do salário mínimo.
Kruel, que posteriormente ocupou o cargo de ministro da Guerra, em 1964 se colocou ao lado do Exército na destituição de Jango.
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